Foi publicado o Dossiê Cultura Fílmica Plural da Revistra Periodicus – Universidade Federal da Bahia. A produção foi organizada por Amaranta César (Doutorado em Cinema e Audiovisual pela Universidade de Paris III / Professora adjunto de Cinema e Audiovisual da UFRB), Carol Almeida (Doutorado em Comunicação na UFPE/ Pesquisadora independente), Janaína Oliveira (Doutorado em História Social da Cultura, PUC-Rio/ IFRJ/FICINE), Kênia Freitas (Doutorado em Comunicação e Cultura pela UFRJ / Pesquisadora independente) e Tatiana Carvalho Costa (Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação UFMG / Professora no curso de Cinema e Audiovisual no Centro Universitário UNA),
“A discussão tradicional da cinefilia, com seus cânones e desdobramentos no campo do cinema – e que reverberam na realização, na prática crítica, na curadoria, no ensino e na pesquisa sobre filmes – fundou-se quase exclusivamente na perspectiva de um “sujeito universal”: branco, masculino, cis e hétero normativo e, portanto, na maior legitimidade do olhar desse sujeito. Uma cultura fílmica plural abarca reflexões que se recusam a hierarquizar as muitas cosmovisões e as poéticas diversas possíveis de articulação em imagens e sons e na elaboração de teorias e pensamentos.”
Em junho de 2022, foi lançado o catálogo do fotógrafo Walter Firmo junto da exposição que acontece no Instituto Moreira Salles. A produção conta com a participação dos curadores Sergio Burgi e Janaina Damaceno Gomes e do diretor artístico do IMS, João Fernandes.
Além de entrevistas do artista com os curadores, há uma conversa entre Walter Firmo e o jornalista Nabor Jr presente no catálogo. Incluindo uma cronologia do fotógrafo assinada por Andrea Wanderley.
O fotógrafo Walter Firmo possui em suas produções olhares para a cultura negra brasileira. Demonstrando a importância de registrar pessoas negras a partir do seu viés político e reflexivo em suas fotografias. Com a perspectiva de que não há neutralidade quando se refere ao ato de fotografar.
Os minicursos do FICINE estão de volta! Vamos abrir nossas atividades do semestre com o minicurso “QuilomboCinema”, ministrado pela professora e pesquisadora Tatiana Carvalho.
“QuilomboCinema” propõe uma abordagem à cultura fílmica e à realização audiovisual por meio da noção de aquilombamento em sua dimensão conceitual, a partir das formulações de Maria Beatriz Nascimento e Abdias do Nascimento, e seus desdobramentos para a compreensão da dimensão disruptiva da atuação de pessoas negras no Cinema Brasileiro Contemporâneo.
Serão abordados filmes em curta, média e longa-metragem e trabalhos em pesquisa, critica, curadoria e outros campos de reflexão por meio do pensamento de intelectuais negres brasileires e de outros países que tensionam o lugar do “sujeito universal” e apontam possibilidades de descolonização na cultura, numa aplicação desse pensamento para as práticas no e com o cinema e o audiovisual.
Quando: O módulo I acontecerá nos dias 7 a 10 de março, das 19h às 22h. O módulo II nos dias 14 a 17 de março, das 19h às 22h.
Onde: Pela plataforma Zoom.
Valores: R$ 120,00 cada módulo, R$200,00 os dois módulos.
Revolucionário, indócil, anticolonial, rebelde, militante. Esses são alguns dos adjetivos que com frequência são usados para falar de Med Hondo. Ainda que todos possam ser atribuídos ao diretor, nenhum deles é capaz de abarcar completamente a obra deste que é um dos cineastas mais talentosos que a história dos cinemas já conheceu. Isso porque, antes de mais nada, sua obra é singular e também complexa. Integrante da geração que funda o que se convencionou chamar de cinema africano, Hondo destaca-se pela intensidade e potência de sua forma de pensar e viver o cinema. “O cinema tem um papel importantíssimo na construção da consciência das pessoas”, afirmava Hondo e seus filmes realizam, a todo instante, gestos nesse sentido.
Como nos conta Amaranta César no texto precioso presente neste catálogo, Hondo já esteve por aqui no Brasil. Foi uma visita única e histórica, num momento em que, no Brasil, uma primeira geração de parte dos cineastas que viriam posteriormente a alterar a paisagem no cinema nacional ingressava no curso de cinema da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). É também verdade que alguns dos filmes — notadamente Soleil Ô, Sarraounia e, mais recentemente, Mes Voisins — já circularam de forma esporádica em algumas mostras no país. Mas esta é a primeira vez que uma programação centrada em seus filmes acontece por aqui.
Atendendo ao convite irrecusável da historiadora e pesquisadora Astrid Kusser Ferreira, nos articulamos para pensar essa proposta curatorial que ora resulta na Sem Fronteiras1. O título, que se inspira nas falas de Hondo sobre sua própria vida e sobre a história do continente africano, funciona aqui como um caminho possível na irradiação de reflexões sobre os filmes em suas temáticas, nas escolhas formais, nos diferentes gêneros e experimentações explorados pelo cineasta.
Sem Fronteiras fala das tramas indissociáveis entre vida e obra, entre cinema e mundo, que fez com que esse cineasta nascido em uma família de escravizados no atual território da Mauritânia, se juntasse ao panteão de referências fundamentais no universo das imagens em movimento2. São fronteiras que foram se dissolvendo no trajeto da Mauritânia para o Marrocos e, posteriormente, para a França. Do trabalho como cozinheiro para o de ator de teatro e depois para diretor de cinema, sem deixar nada para trás. Agregando as experiências múltiplas de uma vida pan-africana e ativista em seus filmes e também com suas falas sempre contundentes e precisas sobre o mundo do cinema.3
A ideia expressa no título fala também da compreensão por Hondo de que as bordas nacionais impostas à força pelos colonizadores ao continente africano estendem-se às dimensões epistemológicas que separam as artes e delimitam os cânones. Ele, então, não só recusa essas fronteiras como também as subverte e complexifica, ao misturar elementos do teatro, da dança ou da performance em narrativas cinematográficas que podem compor ficções com aspectos de documentário (ou vice-versa), usando musicais e animações ou, ainda, com bricolagens experimentais ampliadas nos processos de edição, sem medo de fazer do cinema, muitas vezes, uma ferramenta pedagógica. Tudo é possível para realização dos desejos de contar as histórias, pois o cinema sem fronteiras de Med Hondo é um cinema griot.
É por esse motivo que a Mostra tem em West Indies: les nègres marrons de la liberté (numa tradução livre Índias Ocidentais: os negros quilombolas da liberdade) o foco irradiador das reflexões e dos diálogos cinematográficos propostos na programação.Musical que condensa e atualiza quatro séculos da história colonial no Caribe, o filme canaliza de forma singular a potência criativa de Hondo que, além de dirigir, escrever o roteiro adaptado a partir da peça de teatro do dramaturgo martinicano Daniel Boukman — “Les Négriers” — e participar da produção, também projetou os números musicais4. West Indies não reconhece as fronteiras coloniais, nem as do cânone do cinema. “Uma explosiva combinação de inovação e virtuosidade”, como diz o pesquisador de cinema burkinabé Aboubakar Sanogo, que na Mostra funciona como elo para as conexões deste lado de cá da diáspora5.
Ecoando esse gesto provocativo e irradiador do filme, a curadoria foi pensada como forma de ampliar os diálogos com a obra do realizador. Para isso, atua em dois caminhos. Num primeiro, selecionando um conjunto de sete filmes entre a África e as diásporas que se relacionam de formas distintas com algumas temáticas que transitam no universo de Hondo. Questões como a imigração se refletem, por exemplo, nos dois curtas de início de carreira do pioneiro dos cinemas africanos, Paulin Soumanou Vieyra. Em C’était il y a 4 ans (1954) e Afrique sur Seine (1955), Vieyra trata das experiências do exílio dos africanos na França, assuntos que seriam amplificados por Hondo ao imenso em Soleil Ô (1970), Mes Voisins (1971) e Les Bicots-Nègres vos voisins (1974).
Já temas como a atualização da escravidão contemporânea como memória viva da cultura da plantation, são postos em relação com os manifestos fílmicos de Zózimo Bulbul aqui no Brasil, na denúncia aguçada dos racismos estruturais herdados do escravismo, em suas obras emblemáticas Alma no Olho (1973) e Abolição (1988) ou, ainda, na perseguição aos negros nos EUA apontados tão sagazmente por Now! (1965) do cubano Santiago Álvares. Já os ecos de resistência que sobrevivem na cultura cotidiana da diáspora — que, tão lindamente, são apresentados nos musicais de West Indies — encontram possibilidade de relação com a musicalidade, ritmo e performance de Los del baile (Nicolás Guillén Landrián, 1965) e Oggun (Gloria Rolando, 1991).
O outro caminho escolhido para os Diálogos Sem Fronteiras (título na programação das sessões que trazem as obras para além das de Hondo) foi convidar três cineclubes para reagir a três filmes de Hondo com as curadorias feitas em relação às suas trajetórias com as cinematografias negras contemporâneas no Brasil. O gesto, aqui, se relaciona com outra dimensão do trabalho de Med Hondo que nos inspira: o da coletividade. Localizados em diferentes estados do país, os Cineclubes Atlântico Negro (Rio de Janeiro), Mário Gusmão (Bahia) e Bamako (Pernambuco/Rio Grande do Sul), construíram suas sessões com total liberdade de escolha em relação West Indies, Soleil Ô e Sarraounia. Indicar os filmes para o diálogo e a seleção dos cineclubes, foi o limite da minha curadoria aqui6, com base no entendimento de que ampliar as formas e processos curatoriais são também gestos de descolonização. Os deslocamentos que o contato com sua obra proporciona se refletem aqui, então, no modo de pensar e realizar a curadoria, saindo de uma dimensão focada em um olhar singular para a pluralidade de vozes, como nos coros de Soleil Ô e Mes Voisins ou nas danças de West Indies e na força dos exércitos de Sarraounia.
Outro gesto em relação a uma curadoria plural está na presença da companhia de teatro carioca Confraria do Impossível na programação. Com uma trajetória que articula incursões audiovisuais e formas múltiplas de dramaturgia, a Confraria reagiu à obra de Hondo com a criação do curta metragem Híbrido (2021), feito especialmente para a Mostra, e com a realização de uma performance no encerramento da parte presencial do programa no Museu de Arte Moderna do Rio.
No prólogo de Les Bicots-négres, vos voisins, Med Hondo pergunta “o que o cinema significa para nós?”. Essa interrogação, menos que uma busca por resposta, é mais um convite para ação: uma convocação permanente de luta por um mundo melhor. Um mundo de liberdades políticas, mas também dos imaginários. Imaginários não mais definidos em oposição ao do colonizador, mas em relação às suas múltiplas singularidades irredutíveis, como nos diz o escritor Édouard Glissant em sua Poética da Relação, cujo pensamento também atravessa essa proposta curatorial. “O verdadeiro trabalho da descolonização terá sido de superar esse limite” e existirmos em relação a nós mesmos, saindo da periferia de nossas próprias vidas, deixando para trás as fronteiras.7
1. Astrid, que também possui um excelente artigo sobre West Indies que foi traduzido para o português especialmente para a integrar o quadro de referências do catálogo da Mostra, intitulado “Este navio vai afundar!” Políticas da Memória e Ontologia Afro-diaspórica em West Indies – Les nègres marrons de la liberté, de Med Hondo.
2. Não fosse a hegemonia eurocêntrica do cânone dominante do cinema, não há dúvida de que Hondo seria mundialmente reconhecido.
3. As informações biográficas sobre a vida do cineasta são retomadas e referenciadas em maiores detalhes nos textos que compõe este catálogo.
4. “Ballets imaginés par Med Hondo” (Balés imaginados, por Med Hondo), lemos nos créditos ao final do filme.
5. Sanogo trabalhou intensamente com Hondo nos últimos anos da sua vida, realizando diferentes mostras e seminários sobre a obra do diretor. Atualmente está finalizando um livro sobre sua cinematografia a ser lançado em breve. Sobre a citação, ver “By Any Means Necessary: Med Hondo”, disponível em https://www.filmcomment.com/article/by-any-means-necessary-med-hondo/.
6. Essa dinâmica se conecta ainda a outras reflexões e iniciativas que venho desenvolvendo no sentido de refletir sobre os processos curatoriais em cinema no país. Parte dessas reflexões podem ser encontradas em artigo “Politics of the Gaze”, que publiquei no início de 2021 na revista Seen, editada pelo Blackstar Film Festival. Disponível:https://www.academia.edu62362925Politics_of_the_Gaze_Janai_na_Oliveira_for_Seen
7. GLISSANT, Édouard. Poetics of Relation. Michigan: The University of Michigan Press, 2019, p.17
Texto publicado originalmente no Catálogo da Mostra Sem Fronteiras: O cinema de Med Hondo – 2021
Janaína Oliveira é pesquisadora e curadora. Doutora em História, professora no IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro), e foi Fulbright Scholar no Centro de Estudos Africanos na Universidade de Howard, em Washington D.C., nos EUA.Desde 2009, desenvolve pesquisa sobre as cinematografias negras e africanas, atuando também como curadora, consultora, júri e painelista em diversos festivais e mostras de cinema no Brasil e no exterior. Em 2019 realizou a mostra “Soul in the eye: Zózimo Bulbul’s legacy and the Contemporary Black Brazilian Cinema” no IFFR – International Film Festival Rotterdam. Foi também consultora de filmes da África e da diáspora negra para o Festival Internacional de Locarno (2019-2020). Atualmente é curadora do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul (RJ), do FINCAR (Festival Internacional de Realizadoras / PE) e da Baobácine Mostra de Filmes Africanos de Recife. Faz parte da APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro). É idealizadora e coordenadora do FICINE, Fórum Itinerante de Cinema Negro (www.ficine.org) e foi a programadora do Flaherty Film Seminar (Nova York) em Julho de 2021.
Grace Passô é uma atriz. Grace Passô é uma atriz, dramaturga. Ela é atriz, dramaturga, diretora. Grace Passô é cineasta. Grace Passô é uma mulher negra no Brasil. Grace Passô é um corpo-pensamento que escreve com imagens, transfigurando os códigos da linguagem no teatro, no cinema, em experimentos sonoros a partir de uma consciência do que alguém como ela é num mundo como o de hoje e num país como o nosso. Ela compreende que “a construção da identidade é algo que sempre está em movimento, através e com o tempo”. Para ela “a consciência da sua própria identidade, ela vem com muitos embates também. Ao longo da vida o ser vai identificando ao que ele pertence”. Com essa lucidez sobre a complexidade do que somos, do que ela é no mundo, ela leva para o teatro, o cinema e para onde mais ela criar a vibração de um corpo-pensamento que se posiciona com a consciente dos códigos transtemporais que a atravessam.
Com duas décadas no teatro, sua carreira como diretora no cinema é recente. Vaga Carne, filme de estreia e co-dirigido com Ricardo Alves Jr., foi lançado em 2018. Como atriz no cinema, o percurso se inicia em 2011, no longa “O Céu sobre os Ombros”, de 2011 e dirigido por Sérgio Borges. Nos longas-metragens, ela se destacou na parceria com os realizadores da Filmes de Plástico em “Temporada”, de 2018 e dirigido por André Novais Oliveira, e “No Coração do Mundo”, de 2019, dirigido por Gabriel Martins e Maurílio Martins.
Apesar de recente, sua carreira como diretora no cinema é intensa. Em 2020 foram 3 curtas-metragens e um experimento sonoro, sem abandonar o ofício de origem: a dramaturgia. A homenageada dessa 20ª edição da Goiânia Mostra Curtas esteve nestes dois últimos meses, com duas peças em cartaz, virtualmente, e uma obra/experimento sonoro na 34ª Bienal de São Paulo. A obra da Bienal, “Ficções Sônicas” é realizada em parceria com Barulhista e integra um projeto que se desdobra também em uma performance para teatro filmado e em um novo filme – cuja primeira versão provocada pela curadora Janaina Oliveira estreou na edição deste ano do Flaherty Film Seminar (EUA).
Em uma conversa que tivemos em 2018[1] , Grace conta do encontro com os primeiros trabalhos do cineasta André Novais Oliveira, em especial o filme Fantasmas, de 2011. “Eu me identifiquei profundamente”, disse, comparando a operação chamada por ela de “decodificação ou transfiguração” de um universo e dos elementos simbólicos ao seu redor que André apresentava ao que ela mesma havia feito em sua primeira peça encenada pelo Grupo Espanca!, Por Elise, de 2009. Para ela, o que se articulava no cinema de André e na sua própria dramaturgia era “uma curiosidade aguçada de uma pessoa que estava tentando desvendar, desmontar, se aproximar daquele universo de códigos”, para “observar e de ver como fazer surgir dali alguma coisa sem uma imposição de mundo; como escutar esse mundo”. Essa transfiguração se reafirma, nessa sua recente carreira no cinema, como uma das linhas de força estruturantes de sua criação. Aqui na Mostra, podemos vê-la em duas de suas posições que nos trazem uma exuberância que se dilata a cada personagem, a cada experimento com as imagens. Como atriz, ela está no curta “Sem Asas”, de 2019 e dirigido por Renata Martins. Como diretora, temos na programação “Vaga Carne”, de 2019, e “República”, de 2020.
Na parceria com Renata Martins, Grace empresta seu corpo-escritura para uma história cheia de delicadezas e desvios. Uma família negra – Jussara, a mãe (Grace Passô), o pai (Melvin Santana) e o filho Zu (Kaik Pereira) -, vista em situações de seu cotidiano, encara os perigos que condicionam a sua existência e a existência de tantas outras mulheres, homens e crianças como os do filme. Renata Martins afirma articular com essa história a “iminência da perda” num país em que jovens negros não estão seguros. Premiada por sua atuação, Grace articula as camadas de sutileza e de afeto que o filme, em seu registro realista, demanda, ajudando a expandir o imaginário coletivo organizado em torno de um conjunto restrito de possibilidades para um corpo como o dela nas telas. Com montagem de Cristina Amaral, o filme estabelece uma ginga com as camadas de violência na representação das vivências que constroem a condição de mulher e de negra, criando um desvio para a existência possível.
Vaga Carne é uma peça, um livro, um filme. Nela e nesses desdobramentos, Grace afirma articular “uma metáfora que aborda as matérias e a existência humana que vão ganhando um discurso sobre sua própria realidade”[2] e explicita um “corpo como uma construção social”. A personagem é uma voz com capacidade de habitar a matéria e os corpos. No tempo da peça e do filme, a voz chega ao corpo de uma mulher e se transfigura numa urgência: é preciso compreender o que e quem é esse corpo-espaço, essa mulher no espaço-mundo ao redor. Como transcriação da peça, o filme mantém a convocação do texto: a personagem-voz interpela o público, num chamamento à participação na tarefa de nomeação e de reconhecimento daquele sujeito, daquela identidade.
República é um filme concebido e dirigido em 2020 em um apartamento e em isolamento social no meio de uma pandemia. Mais que um filme sobre a experiência de isolamento e do contexto pandêmico, é um filme sobre uma condição subjetiva num país atravessado por um conjunto sempre presente de traumas históricos. Em uma discussão sobre “narrativas de deslocamento” da diáspora negroatlântica, o sociólogo britânico de origem jamaicana Stuart Hall insiste na posicionalidade dos sujeitos que se inscrevem, com seus discursos, na cultura: “Todos nós escrevemos e falamos desde um lugar e um tempo particulares, desde uma história e uma cultura que nos são específicas. O que dizemos está sempre ‘em contexto’, posicionado”[3]. Grace é uma mulher negra, brasileira, vivendo num país de permanentes crises sociais e políticas. República nasce em um momento de agudez dessas crises, de atravessamentos que escancaram as feridas da colonialidade e em meio a uma pandemia. Ao dizer do processo de criação para este filme[4], a diretora e atriz conta de um desejo de falar sobre o país a partir da “palavra Brasil no máximo de seu simbolismo”, compreendendo com muita lucidez o nosso momento histórico. A dramaturga e cineasta nos provoca a pensar, a partir do seu corpo herdeiro da diáspora, a vivência de dois traumas coletivos que se sobrepõem neste nosso agora: as consequências dos deslocamentos negroatlânticos que se fazem presentes transtemporalmente na experiência negra brasileira e a vivência-latência de corpos ameaçados e confinados pela presença ameaçadora de um vírus com potência letal. Em República e na sua muito coerente produção no trânsito interartes, Grace Passô nos acolhe e, nas palavras de Leda Maria Martins, “mira o de perto e alcança o infinito em nós”.
[1] entrevista publicada no catálogo da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2019) – edição em que foi homenageada.
[2] em entrevista para a reportagem “Grace Passô: entre síntese e profundidade”, por Gustavo Rocha para jornal O Tempo. 20/12/2018
[3] HALL, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.24, p.68-75, 1996 p. 68, grifos do autor
[4] Conversa sobre o filme realizada em agosto de 2021 durante o processo de pesquisa para a escrita de Grace Passô: escrever com o corpo, inventariar imagens fabulantes, em parceria com Soraya Martins para Suplemento Pernambuco, publicado em outubro de 2021.
Tatiana Carvalho Costa– Professora e pesquisadora
Texto publicado originalmente no site da 20ª Goiânia Mostra Curtas – Homenagem a Grace Passô
Entre os dias 11 de Outubro e 21 de Outubro deste ano, estão abertas as inscrições para minicursos da 14a edição do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul.
O Minicurso Fotografia e Memória será com a filósofa e doutora em Antropologia pela USP Janaina Damaceno, presencialmente, nos dias 29 e 30/10, no Centro AfroCarioca. O objetivo desse curso é abordar a produção visual de fotógrafos negros que retrataram o cotidiano da comunidade negra no período de segregação racial nos Estados Unidos e do Apartheid na África do Sul, refletindo sobre como seu ativismo visual foi fundamental para denunciar a existência do racismo em tais países.
Já o minicurso Crítica de Cinema, com pesquisadora e crítica de cinema Kênia de Freitas será online, pela plataforma Zoom, nos dias 25, 27 e 29 de outubro e 01 e 05/11. Aqui, a proposta é formar e treinar olhares sobre o cinema e também pensar as formas de estruturação do pensamento crítico para os interessados em atuar no campo da crítica cinematográfica em seus diversos formatos.
Em Julho de 2021 aconteceu a 66ª edição Flaherty Film Seminar. O seminário começou na década de 1950 – antes da era das escolas de cinema – quando a viúva de Robert Flaherty, Frances, reuniu um grupo de cineastas, críticos, curadores, músicos e outros entusiastas do cinema na fazenda Flaherty em Vermont. Por mais de sessenta anos, o Seminário Flaherty foi firmemente estabelecido como uma instituição única que busca encorajar cineastas e outros artistas a explorar o potencial da imagem em movimento. Novas técnicas e abordagens cinematográficas apresentadas pela primeira vez no seminário têm feito seu caminho rotineiramente para o cinema mainstream.
A pesquisadora e curadora Janaína Oliveira realizou a programação do seminário, sendo a primeira brasileira e sexta latino-americana a participar da curadoria ao longo dos 66 anos do evento. O tema desta edição é sobre a ideia de Opacidade, trazendo de forma inaugural para a discussão de cinema a ideia do escritor Édouard Glissant.
OPACIDADE
Incerteza, fragmentação, opacidade. Vivemos um tempo onde a transparência das convicções e definições e o desejo por total entendimento das diferenças que historicamente guiaram as imagens do mundo ocidental não funcionam mais. No cinema, os limites entre o centro e a margem foram perdidos e dissolvidos. Hoje, o problema crítico não pode ser mais o de realinhar o centro, e sim as nossas percepções das margens. Mais do que nunca, os limites geográficos tradicionais dos cinemas se mostraram insatisfatórios, na medida em que as conexões culturais e históricas são continuamente retrabalhadas. Imagens em movimento requerem tanto cineastas quanto expectadores para negociar o que não é entendido: não existe ponto cego; nunca houve. Os pontos são opacos, e eles nos compelem a fabricar novas ferramentas para descrever o que vemos, sentimos e pensamos.
A 66ª edição do Flaherty Film Seminar nos inspirará a olhar de modo desafiador os pontos opacos do cinema. Como sugere o filósofo e escritor Édouard Glissant, os trabalhos apresentados irão “clamar pelos direitos à opacidade para todos” em suas irredutíveis singularidades. Opacidade é uma força que se desdobra, criando possibilidades abertas e infinitas de existência cinemática, especialmente para sujeitos que tenham sido excluídos ou menos valorizados nas telas convencionais. O Seminário será uma oportunidade para experienciar a imagem em movimento em sua potência, beleza e, mais que tudo, em sua ordinariedade. Como um convite ao deslocamento ou à provocação, ele aponta para um futuro aberto, para liberdades estéticas, formais, culturais, onde o questionamento é priorizado acima das respostas encontradas.
Tradução: Leo Gonçalves
Programação dos Filmes
Sábado, 10 de julho, 11h
Programa 01
Serpent Rain, Denise Ferreira da Silva & Arjuna Neuman المختبر (In Vitro), Larissa Sansour & Søren Lind
Sábado, 10 de julho, 15h
Programa 02
Fantasmas (Ghosts), André Novais Oliveira Over the Rainbow, Athi-Patra Ruga & KOPE | FIGGINS The Klan comes to town (The Klan comes to town), Deanna Bowen Vaga Carne, Grace Passô
Domingo, 11 de julho, 11h
Programa 03
The Land, Robert Flaherty Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa! (Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: This Land Is Our Land!), Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu & Roberto Romero
Domingo, 11 de julho, 15h
Programa 04
Temporada (Long Way Home), André Novais Oliveira
Segunda-feira, 12 de julho, 11h
Programa 05
Jamal (A Camel), Sudanese Film Group Jagdpartie (Hunting Party), Sudanese Film Group Missing Time, Morgan Quaintance The Paul Good Papers at Notasulga, Deanna Bowen
Segunda-feira, 12 de julho, 15h
Programa 06
Alone, Garrett Bradley AKA, Garrett Bradley
Terça-feira, 13 de julho, 11h
Programa 07
Fatôme Creole, Isaac Julien True North, Isaac Julien Fatôme Afrique, Isaac Julien Paradise Omeros, Isaac Julien
Terça-feira, 13 de julho, 15h
Programa 08
Konãgxeka: O Dilúvio Maxakali (Konãgxeka: The Maxakali Flood), Isael Maxakali & Charles Bicalho Yãy tu nunãhã payexop: encontro de pajés (Yãy tu nunãhã payexop: shamans meeting), Sueli Maxakali Soot Breath // Corpus Infinitum, Arjuna Neuman & Denise Ferreira Da Silva
Quarta-feira, 14 de julho, 11h
Programa 09
Africa, Dzungli, Baraban I Revolucija (Africa, the Jungle, Drums and Revolution), Sudanese Film Group Miss Congo, Athi-Patra Ruga Frantz Fanon: Black Skin, White Masks, Isaac Julien & Mark Nash
Quarta-feira, 14 de julho, 15h
Programa 10 Opera Infinita, Denise Ferreira da Silva & Jota Mombaça
Quinta-feira, 15 de julho, 11h
Programa 11Lessons of the hour, Isaac Julien
Quinta-feira, 15 de julho, 15h
Programa 12
South, Morgan Quaintance She comes back on Thursday, Andé Novais Oliveira
Sexta-feira, 16 de Julho, 11h
Programa 13
Deanna Bowen Artist Talk
Sexta-feira, 16 de Julho, 15h
Programa 14
Another Decade, Morgan Quaintance O Segundo antes da coragem (The Second Before Courage), Grace Passô & Wilssa Esser 4 Waters – Deep Implicancy, Arjuna Neuman & Denise Ferreira Da Silva
Sábado, 17 de Julho, 11h
Programa 15
Insan (Human being), Sudanese Film Group Yãmĩyhex: as mulheres-espírito (Yãmĩyhex: the women-spirit), Sueli Maxakali & Isael Maxakali
Sábado, 17 de julho, 15h
Programa 16
America, Garrett Bradley Nation Estate, Larissa Sansour Public Service Announcement, Athi Patra Ruga REPÚBLICA (REPUBLIC), Grace Passô
Domingo, 18 de Julho, 11h
Programa 17
A Space Exodus, Larissa Sansour sum of the parts: what can be named, Deanna Bowen In the Future They Ate from the Finest Porcelain Larissa Sansour & Søren Lind …After He Left, Athi-Patra Ruga Ficções Sônicas, Grace Passô
A aula-oficina ministrada por Kênia Freitas propõe-se a discutir os desdobramentos estético-políticos do afrofuturismo no audiovisual. A apresentação é voltada para a formação do público interessado em pensar e/ou conhecer as artes e narrativas negras contemporâneas, em suas possibilidades educacionais, culturais e políticas.
Sobre NoirBLUE: deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018), Nome de Batismo: Alice (Tila Chitunda, 2017), Maré (Amaranta Cesar, 2018) e Galinhas no Porto (Caioz e Luís Henrique Leal, 2018)
Tatiana Carvalho Costa com colaboração de Layla Braz
É preciso a imagem para recuperar a identidade. Tem-se que tornar-se visível. Porque o rosto de um é o reflexo do outro. O corpo de um é o reflexo do outro. E em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade.
(Beatriz Nascimento)
A Mostra Contemporânea Brasileira traz alguns dos mais provocativos curtas-metragens realizados por diretores e sobretudo diretoras negras na atualidade. E a potência desses filmes se manifesta nas diversas formas de invenção de lugares de resistência e de pertencimento à negritude na linguagem e a partir dela.
Safira Moreira (Travessia, 2017), Tila Chitunda (Nome de Batismo: Alice, 2017) e Ana Pi (NoirBLUE: deslocamentos de uma dança, 2018) constroem narrativas que reinventam percursos da memória coletiva e criam outras possibilidades de existência como “autorreferencial sujeito do dizer” nas imagens, reafirmando, com o Cinema, a negritude positivada defendida por Aimé Césaire:
[A Negritude] é uma maneira de viver a história dentro da história, a história de uma comunidade cuja experiência parece, em verdade, singular, com suas deportações de populações, seus deslocamentos de homens de um continente a outro, suas lembranças distantes, seus restos de culturas assassinadas. […] busca de nossa identidade, afirmação do nosso direito à diferença, aviso dado a todos do reconhecimento desse direito e do respeito à nossa personalidade coletiva. (CÉSAIRE, 2010, p. 109-113)
Ampliando a ideia de “personalidade coletiva” e diversa, junto delas, Rubens Passaro (Universo Preto Paralelo, 2017) conecta as imagens da memória da escravização aos discursos sobre torturas no período da Ditadura Militar no Brasil, nos chamando atenção para a atualidade do fascismo e das imposições de uma necropolítica, enquanto Ulisses Arthur (Corpo Style Dance Machine, 2017) faz um exercício de rememoração de uma história recente de LGBTs, também sobrepondo temporalidades, para dar a ver particularidades da identidade negra e queer.
A exibição deste conjunto de filmes reverbera e amplifica uma crescente (ainda que insuficiente) presença de negras e negros no fazer do cinema brasileiro. Festivais, mostras e cineclubes ao longo deste ano se dedicaram mais ou menos intensamente a obras produzidas por esses (novos?) sujeitos, a reboque do que tem sido bravamente defendido há uma década pelo Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul e pelo CachoeiraDoc. Em Belo Horizonte, destacamos o FESTCURTASBH que, em sua 20ª edição e curadoria de Heitor Augusto, trouxe um apanhado amplo e diverso de obras realizadas por pessoas negras e promoveu um seminário que traçou o percurso da presença dessa filmografia na história do Cinema Brasileiro. Neste mesmo ano, o 50º Festival de Brasília recebeu o maior número de inscrições de filmes de negras e negros de sua história, um ano após a polêmica com Vazante (2017), e premiou o protagonismo negro atrás e à frente das câmeras. Em outros campos artísticos, a discussão sobre a representação e a representatividade da negritude também se intensifica. Em Minas Gerais, testemunhamos movimentos de aquilombamento artístico com a SegundaPRETA e a proeminência negra no Festival Internacional de Teatro – FITBH 2018. E São Paulo sediou, no MASP e no Instituto Tomie Ohtake, uma das mais importantes exposições de artes visuais sobre o tema na América Latina, a Histórias Afro-Atlânticas.
Cinema por e cinema com
Compreendemos e agimos em função da urgência na defesa de um lugar para o cinema feito por pessoas negras. Mas entendemos também que, neste momento histórico em que despontam fascismos, é importante olharmos para os gestos aliados – ainda que saibamos que “o aliado não é uma categoria estável”. Em parte dos filmes selecionados, há apontamentos acerca dos modos de fazer cinema com pessoas negras. Tomamos emprestado o termo “cinema com” da ensaísta e curadora Carla Maia, em sua definição do “caráter relacional das obras” feitas com mulheres:
Parece crucial na elaboração de um pensamento em torno de um cinema com, e não sobre: apostar na indeterminação, investir na aliança entre estética e política enquanto possibilidade de reinvenção de um campo sensível do qual os “sem-parte” podem, finalmente, tomar parte, numa redistribuição dos lugares de quem fala e quem é ouvido. O cinema – sobretudo o documentário, supomos – pode favorecer a criação de cenas dissensuais, e ao expor “situações de palavra”, permitir que a igualdade pressuposta entre os seres seja sempre colocada à prova, na medida em que confere visibilidade aos corpos e alcance às vozes daqueles/as que compõem a “parte que falta”.
(MARTINS, 2018, p. 169 – grifos da autora)
Em uma das sessões programadas para esta edição do forumdoc.bh2018, estão reunidas obras que trazem a potência da direção executada por pessoas negras – NoirBLUE: deslocamentos de uma dança (2018) e Nome de Batismo: Alice (2017) – e as possibilidades do diálogo deste cinema feito “com”, em gestos de escuta e co-criação executado por pessoas brancas – Maré (2018) e Galinhas no Porto (2018).
NoirBLUE: deslocamentos de uma dança (2018)
Apagamentos, reinvenções
“Não sei quando começamos a ter lembranças”. A primeira frase no voice over de Galinhas no Porto (2018), de Caioz e Luiz Henrique Leal, é acompanhada da imagem de uma paisagem com um mar ao fundo. A voz menciona as primeiras fotografias do século XIX e quem jamais pôde ser visto nelas. “Há galinhas no porto” era o código para a chegada de navios negreiros que desembarcavam ilegalmente na segunda metade do século XIX numa praia próxima à cidade de Recife. No final do século XX, a região virou um dos pontos turísticos mais desejados do país: Porto de Galinhas.
Fomos empurrados para o porão, totalmente nus, os homens foram amontoados de um lado e as mulheres de outro, o porão era tão baixo que não podíamos nos levantar éramos obrigados a nos agachar ou sentar no chão, dia e noite eram iguais para nós o sono sendo negado devido ao confinamento dos nossos corpos. Ficamos desesperados com o sofrimento e a fadiga. (LARA, 1988, p. 272)
O jovem Mahommah Gardo Baquaqua foi traficado para o Brasil nos anos 1840. Ao longo de sua vida, ele manteve diários que foram reunidos em uma publicação lançada no Brasil somente em 2017. O trecho acima é lido em um dos fragmentos de fala no filme. No espaço onde possivelmente Mahommah teria desembarcado, o presente do filme nos mostra uma sucessão de estátuas, brinquedos e souvenires em formas de galinhas. A câmera observa discretamente o homem negro que percorre a praia, a área de comércio e de ruínas onde ele delimita os possíveis espaços de confinamento de outros corpos negros em séculos anteriores. Ele se posta em meio a turistas em embarcações de visita às paisagens. Ao sobrepor digressões sobre a brutalidade da escravização de pessoas negras a esse movimento de um único corpo negro no presente daquele território desmemoriado, o filme restitui à paisagem a violência de seu passado. Um gesto de redenção?
Galinhas no Porto (2018)
A câmera em Galinhas no Porto observa. Em Maré, ela se torna cúmplice. Essa proximidade é potencializada pela construção de uma temporalidade que faz coexistirem a ação física dos corpos e uma camada do que age invisível sobre o espaço, sobre esses corpos e sobre o próprio tempo do e no filme.
Somos apresentadas ao mangue e a uma oferenda a uma senhora-tempo, entidade que o habita. Seria ela a força que o atravessa? Na lida com as castanhas de dendê, uma mãe tenta convencer as filhas a irem para o colégio. “Elas querem ir embora para Salvador”, pensa a mãe em voz alta. “Dizem que as escravidão já acabou. Quem disse que acabou? Continua aí. Não vê quem não quer”, afirma, a pilar as castanhas. Olhada de baixo para cima, a não-atriz e sua fala ganham a força das socadas no pilão. As irmãs Patrícia e Diguinha, uniformizadas, desviam-se do caminho e adentram o mangue. Entramos com elas. A mais velha ensina a mais nova sobre o trabalho e os humores do lugar: “então, você é a rainha do mangue”, ironiza Diguinha. Mas a mãe quer inventar uma nova vida para as filhas, diferente da vida que inventaram para ela.
As meninas parecem divididas entre a vontade de ir e um chamamento para a permanência. E elas não voltam para casa. Da janela, a mãe observa a ausência, recolhendo duas maritacas para junto de seu peito. A noite cai, a maré sobe. As forças agem no tempo, naquele espaço, e o filme se abre para elas, a compartilhar conosco imaginários e crenças. “Adeus, camarada, adeus, adeus que eu já vou m’embora, pelas ondas do mar eu vim, pras ondas do mar eu vo’mbora”. Acompanhamos a cantoria e um progressivo acender de lamparinas nas casas e nas ruas. “Ô, Iemanjá, ekô, ekô, Oxum obá”. Amaranta César é hábil na construção poética da procissão-resgate encenada pelas mulheres na bela paisagem da comunidade quilombola do Vale do Iguape. Na noite, senhora-tempo-mangue espera, fazendo fogo em seu cachimbo. “Diguinha, Diguinha”, ouvimos, enquanto vemos a menina a caminhar ao lado dela na luz do dia. Cantos de lamento marcam o retorno das mulheres, sem Diguinha, na manhã. Acompanhamos as personagens de perto. A câmera, cúmplice das não-atrizes, apresenta uma coerência com um processo do que já chamamos aqui de um “cinema com” (MARTINS, 2015). A fábula encenada faz aparecer na tela o desejo que vem do conjunto de mulheres que inventam o filme.
Maré (2018)
De observadora e cúmplice, a câmera assume o olhar de mulheres negras que buscam as imagens de si no território da memória ancestral. Nome de Batismo: Alice (2017) e NoirBLUE, deslocamentos de uma dança (2018) lidam, em primeira pessoa, com uma ideia de retorno ao continente africano. Nos dois, as diretoras-protagonistas Tila Chitunda e Ana Pi lidam, cada uma à sua maneira, com o não-lugar da interseção diaspórica nos corpos. Tila enfrenta as reverberações de uma migração decorrente da guerra pela independência de Angola nos anos 1960. Ana Pi lida com a secular passagem de um povo pela Porta do Não-Retorno.
A história de seu nome, Alice – dado em homenagem à sua avó –, é a razão encontrada por Tila para a ida a Angola. Nascida no Brasil e filha imigrantes, ela viaja com a mãe para a terra natal materna. Numa estrutura cronológica, o filme parte da decolagem para outro continente e nos leva, com a câmera-olho de Tila, pelo percurso às ruas, estradas, cidade e aldeia até a despedida para o retorno ao Brasil.
“Nossas visitas chegaram, lhes esperamos por muito tempo”, cantam os parentes. Apesar da calorosa acolhida, no caminho para Bié, território Ovimbundo de onde vem sua família, Tila se frustra ao tentar reconhecer o desejado pertencimento: “me sinto estrangeira neste lugar”, ela diz em voice over enquanto aponta a câmera para a paisagem que passa pela janela do carro. “É frustrante estar aqui e não compreender o que dizem os mais velhos”, ela afirma voltando seu olhar para os parentes que conversam em umbundo, dialeto do “local de nossas origens”. A câmera reafirma a presença dela naquele território mas encarna o olhar estrangeiro que observa, com curiosidade, uma terra distante. Ao não conseguir se encontrar com a África imaginada, Tila se decepciona e nos apresenta o paradoxo da construção identitária diaspórica: qual é, afinal, nosso afro-pertencimento?
Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos e “autenticidade’, pois há sempre algo no meio [between]. Não podemos retornar a uma unidade passada, pois só podemos conhecer o passado, a memória, o inconsciente através de seus efeitos, isto é, quando este é trazido para dentro da linguagem e de lá embarcamos numa (interminável) viagem. Diante da “floresta de signos” (Baudelaire), nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias (“relíquias secularizadas”, como Benjamim, o colecionador, as descreve) ao mesmo tempo em que enquadrinhamos a constelação cheia de tensão que se estende diante de nós, buscando a linguagem, o estilo, que vai dominar o movimento e dar-lhe forma. (HALL, 2003, p. 26-27 apud CHAMBERS, Iain, 1990. p. 104)
Longe de verdade buscada por Tila Chitunda, Ana Pi encara performaticamente a ideia de pertencimento. NoirBLUE é o azul de tão preto. A expressão racista é apropriada e positivada pelo percurso de Ana com seu manto azul e sua dança em ruas, calçadas e ruínas de países da África Subsaariana de onde, séculos passados, partiram milhões de pessoas pela Porta do Não-Retorno rumo ao novo mundo.
Nome de Batismo: Alice (2017)
Para Dionne Brand (2002, p. 18-19), essa “Porta”, “real e metafórica”, tem status de “uma mítica” para pessoas negras descendentes de africanos escravizados e espalhadas pelas Américas. Essa mítica define a ambivalência de nossa existência e de nosso pertencimento que, para ela, está “alojado em uma metáfora” e que nos obriga a “ser um tipo de ficção”. Ainda segundo a autora, “viver na Diáspora Negra é, eu acho, viver como uma ficção – uma criação dos impérios e também uma autocriação. É como ser um ser vivendo dentro e fora de si mesmo”. Ana Pi olha, com a câmera, para os espaços em que reconhece ou constrói seu pertencimento. “E eu grite: acarajé! Me perguntaram: mas você fala iorubá?”, conta com sua voz doce e pausada. A temporalidade estabelecida por sua narração deixa escorrer, para o filme, as camadas dessa identidade-ficção. O suceder de espaços e a menção desordenada a eles monta um mosaicado território-memória. Ana também aponta a câmera para si e para a construção que faz de si nesse lugar. Ao filmar outros corpos que também performam para a câmera ela entra em quadro. “Signature” é a dança mas é também seu gesto no e com o filme.
O artista goiano Dalton Paula, cuja série de pinturas A Cura compõe este catálogo, realizou dois retratos para a já mencionada exposição Histórias Afro-Atlânticas: João de Deus Nascimento e Zeferina. O retrato de João de Deus foi criado sem uma referência visual: imagens dessa figura histórica da resistência negra não existiam. Um dos curadores da exposição, Hélio Menezes, explica que parte da obra de Dalton é inspirada na estética dos ex-votos e “têm uma relação direta, portanto, com uma espécie de cura – os ex-votos têm essa função, de serem deixados nas laterais das igrejas, nos altares, pedindo a cura”.
Em A Cura, Dalton traz corpos negros com referências a territórios de pertencimento, em ações de cura física e simbólica ou ainda de iniciação. Os olhos dos personagens estão fechados, numa possível introspecção e transcendência, num agenciamento de outras presenças para além do visível. João de Deus Nascimento e Zeferina têm os olhos abertos, numa altivez para o presente da ação. Dalton complexifica a relação com a espacialidade e a temporalidade das negruras, numa gama diversa e complementar de potências. Com uma heterogeneidade de auto-representações e de experiências com a negritude, as buscas e invenções nos filmes presentes na seleção aqui comentada parecem apontar para esses gestos – atentos e complexos – de estabelecer resistência e cura pelas imagens, ampliando as fissuras em um modo histórico de narrativas excludentes e de opressão.
CESAIRE, Aimé. Discurso sobre a Negritude. Belo Horizonte: Nandyala, 2010
BRAND, Dionne. A map to the door of no return: notes on belonging. Toronto: Vintage Canada, 2001.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
LARA, Silvia Hunold. Biografia de Mahommah G. Baquaqua. Revista Brasileira de História, v.8, nº 16,. São Paulo, 1988. p. 269-284.
MARTINS, Carla Ludmila Maia. Sob o risco do gênero: clausuras, rasuras e afetos de um cinema com mulheres. 2015. 285p. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015
A professora, crítica e curadora Kênia Freitas ministra a masterclass “Histórias dos cinemas por meio da crítica” do curso Críticas de Cinema, realizado pela Escola Itaú Cultural entre 8 de setembro e 15 de dezembro de 2021.
Pensar a história do cinema por meio da crítica é ao mesmo tempo um exercício de revisão e ampliação do cânone crítico e de questionamento dos enunciados universais e unívocos, tanto no cinema quanto na crítica. Ressituar o fazer crítico a partir dos seus locais de enunciação, pontos de vistas e construções de mundo torna-se um dos objetivos dessa revisão histórica.
Em um momento de reconfiguração cultural das dinâmicas sociais, raciais, de gênero e sexualidade, práticas de uma nova cultura fílmica – mais horizontal e diversa – se afirmam cada vez mais.