Med Hondo, Sem Fronteiras

Revolucionário, indócil, anticolonial, rebelde, militante. Esses são alguns dos adjetivos que com frequência são usados para falar de Med Hondo. Ainda que todos possam ser atribuídos ao diretor, nenhum deles é capaz de abarcar completamente a obra deste que é um dos cineastas mais talentosos que a história dos cinemas já conheceu. Isso porque, antes de mais nada, sua obra é singular e também complexa. Integrante da geração que funda o que se convencionou chamar de cinema africano, Hondo destaca-se pela intensidade e potência de sua forma de pensar e viver o cinema. “O cinema tem um papel importantíssimo na construção da consciência das pessoas”, afirmava Hondo e seus filmes realizam, a todo instante, gestos nesse sentido.

Como nos conta Amaranta César no texto precioso presente neste catálogo, Hondo já esteve por aqui no Brasil. Foi uma visita única e histórica, num momento em que, no Brasil, uma primeira geração de parte dos cineastas que viriam posteriormente a alterar a paisagem no cinema nacional ingressava no curso de cinema da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). É também verdade que alguns dos filmes — notadamente Soleil Ô, Sarraounia e, mais recentemente, Mes Voisins — já circularam de forma esporádica em algumas mostras no país. Mas esta é a primeira vez que uma programação centrada em seus filmes acontece por aqui.

Atendendo ao convite irrecusável da historiadora e pesquisadora Astrid Kusser Ferreira, nos articulamos para pensar essa proposta curatorial que ora resulta na Sem Fronteiras1. O título, que se inspira nas falas de Hondo sobre sua própria vida e sobre a história do continente africano, funciona aqui como um caminho possível na irradiação de reflexões sobre os filmes em suas temáticas, nas escolhas formais, nos diferentes gêneros e experimentações explorados pelo cineasta.

Sem Fronteiras fala das tramas indissociáveis entre vida e obra, entre cinema e mundo, que fez com que esse cineasta nascido em uma família de escravizados no atual território da Mauritânia, se juntasse ao panteão de referências fundamentais no universo das imagens em movimento2. São fronteiras que foram se dissolvendo no trajeto da Mauritânia para o Marrocos e, posteriormente, para a França. Do trabalho como cozinheiro para o de ator de teatro e depois para diretor de cinema, sem deixar nada para trás. Agregando as experiências múltiplas de uma vida pan-africana e ativista em seus filmes e também com suas falas sempre contundentes e precisas sobre o mundo do cinema.3

A ideia expressa no título fala também da compreensão por Hondo de que as bordas nacionais impostas à força pelos colonizadores ao continente africano estendem-se às dimensões epistemológicas que separam as artes e delimitam os cânones. Ele, então, não só recusa essas fronteiras como também as subverte e complexifica, ao misturar elementos do teatro, da dança ou da performance em narrativas cinematográficas que podem compor ficções com aspectos de documentário (ou vice-versa), usando musicais e animações ou, ainda, com bricolagens experimentais ampliadas nos processos de edição, sem medo de fazer do cinema, muitas vezes, uma ferramenta pedagógica. Tudo é possível para realização dos desejos de contar as histórias, pois o cinema sem fronteiras de Med Hondo é um cinema griot.

É por esse motivo que a Mostra tem em West Indies: les nègres marrons de la liberté (numa tradução livre Índias Ocidentais: os negros quilombolas da liberdade) o foco irradiador das reflexões e dos diálogos cinematográficos propostos na programação.Musical que condensa e atualiza quatro séculos da história colonial no Caribe, o filme canaliza de forma singular a potência criativa de Hondo que, além de dirigir, escrever o roteiro adaptado a partir da peça de teatro do dramaturgo martinicano Daniel Boukman — “Les Négriers” — e participar da produção, também projetou os números musicais4. West Indies não reconhece as fronteiras coloniais, nem as do cânone do cinema. “Uma explosiva combinação de inovação e virtuosidade”, como diz o pesquisador de cinema burkinabé Aboubakar Sanogo, que na Mostra funciona como elo para as conexões deste lado de cá da diáspora5.

Ecoando esse gesto provocativo e irradiador do filme, a curadoria foi pensada como forma de ampliar os diálogos com a obra do realizador. Para isso, atua em dois caminhos. Num primeiro, selecionando um conjunto de sete filmes entre a África e as diásporas que se relacionam de formas distintas com algumas temáticas que transitam no universo de Hondo. Questões como a imigração se refletem, por exemplo, nos dois curtas de início de carreira do pioneiro dos cinemas africanos, Paulin Soumanou Vieyra. Em C’était il y a 4 ans (1954) e Afrique sur Seine (1955), Vieyra trata das experiências do exílio dos africanos na França, assuntos que seriam amplificados por Hondo ao imenso em Soleil Ô (1970), Mes Voisins (1971) e Les Bicots-Nègres vos voisins (1974).

Já temas como a atualização da escravidão contemporânea como memória viva da cultura da plantation, são postos em relação com os manifestos fílmicos de Zózimo Bulbul aqui no Brasil, na denúncia aguçada dos racismos estruturais herdados do escravismo, em suas obras emblemáticas Alma no Olho (1973) e Abolição (1988) ou, ainda, na perseguição aos negros nos EUA apontados tão sagazmente por Now! (1965) do cubano Santiago Álvares. Já os ecos de resistência que sobrevivem na cultura cotidiana da diáspora — que, tão lindamente, são apresentados nos musicais de West Indies — encontram possibilidade de relação com a musicalidade, ritmo e performance de Los del baile (Nicolás Guillén Landrián, 1965) e Oggun (Gloria Rolando, 1991).

O outro caminho escolhido para os Diálogos Sem Fronteiras (título na programação das sessões que trazem as obras para além das de Hondo) foi convidar três cineclubes para reagir a três filmes de Hondo com as curadorias feitas em relação às suas trajetórias com as cinematografias negras contemporâneas no Brasil. O gesto, aqui, se relaciona com outra dimensão do trabalho de Med Hondo que nos inspira: o da coletividade. Localizados em diferentes estados do país, os Cineclubes Atlântico Negro (Rio de Janeiro), Mário Gusmão (Bahia) e Bamako (Pernambuco/Rio Grande do Sul), construíram suas sessões com total liberdade de escolha em relação West Indies, Soleil Ô e Sarraounia. Indicar os filmes para o diálogo e a seleção dos cineclubes, foi o limite da minha curadoria aqui6, com base no entendimento de que ampliar as formas e processos curatoriais são também gestos de descolonização. Os deslocamentos que o contato com sua obra proporciona se refletem aqui, então, no modo de pensar e realizar a curadoria, saindo de uma dimensão focada em um olhar singular para a pluralidade de vozes, como nos coros de Soleil Ô e Mes Voisins ou nas danças de West Indies e na força dos exércitos de Sarraounia.

Outro gesto em relação a uma curadoria plural está na presença da companhia de teatro carioca Confraria do Impossível na programação. Com uma trajetória que articula incursões audiovisuais e formas múltiplas de dramaturgia, a Confraria reagiu à obra de Hondo com a criação do curta metragem Híbrido (2021), feito especialmente para a Mostra, e com a realização de uma performance no encerramento da parte presencial do programa no Museu de Arte Moderna do Rio.

No prólogo de Les Bicots-négres, vos voisins, Med Hondo pergunta “o que o cinema significa para nós?”. Essa interrogação, menos que uma busca por resposta, é mais um convite para ação: uma convocação permanente de luta por um mundo melhor. Um mundo de liberdades políticas, mas também dos imaginários. Imaginários não mais definidos em oposição ao do colonizador, mas em relação às suas múltiplas singularidades irredutíveis, como nos diz o escritor Édouard Glissant em sua Poética da Relação, cujo pensamento também atravessa essa proposta curatorial. “O verdadeiro trabalho da descolonização terá sido de superar esse limite” e existirmos em relação a nós mesmos, saindo da periferia de nossas próprias vidas, deixando para trás as fronteiras.7

1. Astrid, que também possui um excelente artigo sobre West Indies que foi traduzido para o português especialmente para a integrar o quadro de referências do catálogo da Mostra, intitulado “Este navio vai afundar!” Políticas da Memória e Ontologia Afro-diaspórica em West Indies – Les nègres marrons de la liberté, de Med Hondo.

2. Não fosse a hegemonia eurocêntrica do cânone dominante do cinema, não há dúvida de que Hondo seria mundialmente reconhecido.

3. As informações biográficas sobre a vida do cineasta são retomadas e referenciadas em maiores detalhes nos textos que compõe este catálogo.

4. “Ballets imaginés par Med Hondo” (Balés imaginados, por Med Hondo), lemos nos créditos ao final do filme.

5. Sanogo trabalhou intensamente com Hondo nos últimos anos da sua vida, realizando diferentes mostras e seminários sobre a obra do diretor. Atualmente está finalizando um livro sobre sua cinematografia a ser lançado em breve. Sobre a citação, ver “By Any Means Necessary: Med Hondo”, disponível em https://www.filmcomment.com/article/by-any-means-necessary-med-hondo/.

6. Essa dinâmica se conecta ainda a outras reflexões e iniciativas que venho desenvolvendo no sentido de refletir sobre os processos curatoriais em cinema no país. Parte dessas reflexões podem ser encontradas em artigo “Politics of the Gaze”, que publiquei no início de 2021 na revista Seen, editada pelo Blackstar Film Festival. Disponível:https://www.academia.edu62362925Politics_of_the_Gaze_Janai_na_Oliveira_for_Seen

7. GLISSANT, Édouard. Poetics of Relation. Michigan: The University of Michigan Press, 2019, p.17

Texto publicado originalmente no Catálogo da Mostra Sem Fronteiras: O cinema de Med Hondo – 2021

Link: https://www.mostramedhondo.com/copy-of-a-mostra-1

Janaína Oliveira

Janaína Oliveira é pesquisadora e curadora. Doutora em História, professora no IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro), e foi Fulbright Scholar no Centro de Estudos Africanos na Universidade de Howard, em Washington D.C., nos EUA.Desde 2009, desenvolve pesquisa sobre as cinematografias negras e africanas, atuando também como curadora, consultora, júri e painelista em diversos festivais e mostras de cinema no Brasil e no exterior. Em 2019 realizou a mostra “Soul in the eye: Zózimo Bulbul’s legacy and the Contemporary Black Brazilian Cinema” no IFFR – International Film Festival Rotterdam. Foi também consultora de filmes da África e da diáspora negra para o Festival Internacional de Locarno (2019-2020). Atualmente é curadora do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul (RJ), do FINCAR (Festival Internacional de Realizadoras / PE) e da Baobácine Mostra de Filmes Africanos de Recife. Faz parte da APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro). É idealizadora e coordenadora do FICINE, Fórum Itinerante de Cinema Negro (www.ficine.org) e foi a programadora do Flaherty Film Seminar (Nova York) em Julho de 2021.



Publicado por FICINE

O FICINE tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

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