No país dos homens íntegros

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Em 1984, a República do Alto Volta foi rebatizada pelo seu presidente Thomas Sankara – uma das maiores lideranças africanas, comparado na América Latina à figura de Che Guevara – como Burkina Faso ou o país dos homens íntegros, seu significado em morê e dioula, duas das principais línguas do país.  O “País dos homens íntegros”, tem como capital a cidade de Ouagadougou que significa “respeito aos mais velhos”. (Chore!)  Ouaga (Uagá) é uma cidade de mais de 1,5 milhões de habitantes, extremamente agitada como toda metrópole e com uma vida cultural bastante intensa. Se você é um daqueles que acha que respira diversidade por beber no Baixo Augusta e que é super descolado por morar em Santa Teresa, esqueça. Andando por Ouaga você vai descobrir que qualquer senhor tuareg é muito mais descolado que você.

Não dá para andar uma quadra em Ouaga, sem sentir uma vontade imensa de que mesmo com o seu péssimo francês alguém te ofereça um trabalho por aqui.

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Desde o dia 27 de fevereiro à convite do FESPACO, Janaína Oliveira e eu (do FICINE) estamos em Burkina Faso para participar da Jornada Cinematográfica da Mulher Africana de Imagem (JCFA), para estabelecer parcerias com produtores, críticos e cineastas africanos, além de realizar  entrevistas com cineastas deste país que tem uma profunda relação com o cinema… mesmo! Perguntando ao garçom de nosso hotel se todo mundo de Ouagadougou, a capital do país, sabia o que era o FESPACO, ele respondeu desdenhosamente que sim e que já tinha ido algumas vezes à abertura do festival. Saindo às ruas, a situação se repete. Há, inclusive, uma praça em homenagem ao cinema: a Place des Cineastes, atrás dela se enfileiram as estátuas de quatro cineastas. Um lugar que tem estátua de cineasta, vivo! Você já pode imaginar este lugar.

O FESPACO é um dos mais tradicionais festivais de cinema do mundo e colocou Burkina Faso na rota dos festivais internacionais. O país também se empenhou em formar grandes cineastas como Idrissa Ouedraogo, cujos filmes foram exibidos no Brasil em mostras como a Mostra de Cinema de São Paulo e o Festival do Rio. Ouedraogo foi vencedor do Urso de Berlim em 1993 e de Cannes em 1990. Um dos seus filmes mais conhecidos pelo público brasileiro é seu curta metragem no filme 11 de setembro. Na sua história, um menino crê ter visto Osama Bin Laden escondido numa das ruas de Ouaga e pretende encontrá-lo pois está interessado em receber uma recompensa para comprar remédios para a sua mãe.

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Chegamos em Ouagadougou no dia do lançamento de Grisgris de Saleh Haroun no Instituto Francês. Grisgris narra a história de um bailarino que se vê envolvido com um grupo de bandidos após tentar ajudar o padrasto a pagar a conta do hospital. No meio do caminho surge uma moça bonita que altera o destino da história. Assistir o filme num dos típicos cinemas de Ouaga não tem preço. Muitos dos cinemas do país, que tem uma extensa parte desértica, são anfiteatros ao ar livre.

Saleh Haroun do Chade e Soulémane Démé de Burkina Faso, respectivamente, diretor e protagonista do filme estavam presentes e participaram de um debate com o público ao final da sessão, onde se debateu desde os reflexos da influência da dominação colonial no audiovisual até questões sobre a representação do islamismo. Outras celebridades como Gaston Kaboré e o próprio Idrissa Ouedraogo também estavam por lá, além de um grande número de atores, diretores, estudantes, críticos (eles têm uma associação bem forte, mas isso fica para outro post) e produtores de cinema, descolados, estrangeiros e duas freiras. Com a lotação esgotada, uma pequena multidão ficou para o lado de fora do cinema.

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O público acompanhou atentamente do filme, torcendo para os seus heróis e condenando os vilões. Alguns levantaram-se das cadeiras em alguns momentos para expressar ainda mais a sua alegria, apreensão ou indignação. Claro, como em todos os lugares sempre há alguém com um celular na mão, mandando uma mensagem desnecessária para alguém, mas ainda assim isso ocorreu menos que nos cinemas do Rio. O que encanta nas exibições em Ouaga é que aqui parece que o cinema ainda mantém a sua aura, a sua magia e a arquitetura dos teatros juntamento com a participação do público são os responsáveis por isso.

Siga os próximos posts para saber mais sobre o cinema de Burkina Faso e acompanhar nossas entrevistas com cineastas, produtores e atores que participaram do JCFA. Entrevistamos também o Soulémane Démé! Ele é o cara!

Veja o trailer de Grisgris!

Ciné Guimbi: cinema e resistência em Burkina Faso

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Não é só no Brasil que espaços dedicados à exibição de filmes são fechados e transformados em igrejas, estacionamentos e shoppings. Em Burkina Faso, assim como em outros países da África, este triste processo também anda amplamente em curso.

Burkina Faso, país situado no centro-oeste africano e pouco conhecido dos brasileiros, é uma referência quando falamos em cinema africano. Acontece em sua capital o maior festival do continente, o FESPACO (Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ougadougou). É também terra natal de cineastas renomados (Gaston Kaboré, Dany Kouyaté, Moustapha Dao, Idrissa Ouedraogo só para citarmos alguns) e o centro de uma nova onda de jovens cineastas saídos de escolas de cinema locais. Contudo, ainda assim, em Burkina os espaços de cinemas também deixam gradualmente de existir.

Por lá, o fechamento das salas de cinema coincidem com o fim de um processo histórico marcado pela presença maciça do Estado na gestão da indústria cinematográfica, incluindo no que diz respeito à distribuição de filmes e manutenção de salas. No ano de 2003, foi extinta a Sociedade Nacional de Exploração Distribuição Cinematográfica de Burkina  Faso (SONACIB), instituição criada nos anos 1970 durante os primeiros momentos da forte nacionalização do setor. Com o fim da SONACIB, a maioria das salas de projeção foram vendidas à iniciativa privada, que as transformaram em supermercados, garagens de ônibus, templos religiosos.

Um caso emblemático deste processo é o que acontece na antiga capital do país, a cidade de Bobo-Dioulasso. Lá, o fechamento da SONACIB levou à extinção as duas últimas salas que ainda resistiam, deixando seus 600.000 habitantes sem espaços adequados à projeção de filmes. Assim, desde 2005, não existem salas de cinema na cidade. Esta situação estimulou a Associação de Apoio ao Cinema de Burkina Faso (Association de Soutien au Cinéma du Burkina Faso), composta por realizadores e profissionais de imagem, a iniciar um movimento pela restauração de um antigo cinema ao ar livre da cidade de Bobo, o Ciné Guimbi.

Construído em 1956, o Ciné Guimbi faz parte do história do cinema em Burkina Faso. Os filmes lá exibidos incentivaram gerações de cineastas, como ressalta o cineasta Gaston Kaboré, ao falar da importância das sessões no Guimbi para a sua. “A meu ver, o Cine Guimbi é um elemento mítico do patrimônio cinematográfico nacional. Entre 1964 e 1970, eu assisti filmes nesta sala que ajudaram a fundamentar os conceitos básicos sobre a sétima arte durante a minha adolescência”, diz o diretor que nasceu em Bobo-Dioulasso.

Kaboré faz parte da Associação de Apoio ao Cinema de Burkina Faso . Criada em 2011, a Associação tem por objetivo buscar meios, financeiros inclusive, para a manutenção e expansão do cinema em Burkina. E ainda que seja uma organização sem fins lucrativos, ela chama para si a responsabilidade de encontrar parcerias e  também gerir o fundo de apoio à produção cinematogrática, criado na mesma época. É neste cenário que se enquadra a campanha Il faut sauve le cine Guimbi (“É preciso salvar o cinema Guimbi”), que luta pela revitalização do cinema e é umas das iniciativas centrais da Associação no momento.

Hoje, no local do Guimbi, há apenas o terreno murado, com a tela para projeção e vestígios bancos, todos feitos de cimento. Há também atrás da tela, um esqueleto da antiga sala de projeção.

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A proposta de revitalização pretende adquirir o terreno e nele construir duas salas de cinema cobertas, com capacidade de 172 e 323 lugares respectivamente. Além de representar o resgate de um patrimônio histórico de Bobo, a Associação entende que, uma vez restaurado, o Ciné Guimbi possa se tornar um centro de referência cultural para a sociedade local. Abrigando em sua programação, além da programação de filmes semanal, também outras atividades tais como a formação de crianças e adolescentes na área do audiovisual (“educação da imagem”, como eles dizem no projeto), e  iniciativas inclusivas multidimensionais para mulheres e outros grupos. .

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Para além da programação cotidiana de filmes e atividades sócio-educativas,  há também a proposta da realização de ao menos dois grandes eventos de cinema. Um festival anual, o Guimbi Festival, realizado em parceria com diversos festivais mundiais. E, bienalmente, o Guimbi será o núcleo do FESPACO em Bobo (o FESPACO é parceiro do projeto desde 2013).

E para aqueles que desacreditam da viabilidade do projeto, os organizadores da proposta de revistalização garantem que as experiências bem sucedidas dos cinemas em salas de Ouagadougou e em cidades secundárias mostram que existe sim público para o cinema comercial em Burkina Faso. E mais: segundo eles, o caso do Ciné Guimbi é um símbolo da grave ameaça que paira sobre os cinemas na África. De tal forma que contribuir para o seu resgate é uma ação que visa manter um patrimônio que é ao mesmo tempo local e universal.

Nós do FICINE louvamos a iniciativa da Associação de Apoio ao Cinema de Burkina, na expectativa que não só o Ciné Guimbi volte a funcionar, mas que por todos os lugares onde salas de cinema estejam sendo fechadas, haja algum tipo mobilização para reversão destas situações.

Abaixo, assista algumas falas dos que vivenciaram os momentos áureos do Ciné Guimbi.

Spot Cinéma Guimbi – Les anciens se souviennent from Cinémas d’Afrique on Vimeo.

*Agradecemos a Association de Soutien au Cinéma du Burkina Faso pelas fotos e o material de projeto que serviu de base para este post.

Leia mais aqui sobre o projeto “Il faut sauve le Cine Guimbi”. Divulgue! Apoie!

Sobre o fim da SONACIB, indicamos o artigo de Gervais Hein “Burkibna: la SONACIB privatisée”, no site Africultures.

7º Festival Lagunimages (2013) – Benim: cinema, culturas urbanas e o Brasil (Parte 2)

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Em sua 7ª. edição, o Festival Lagunimages (Festival internacional de filmes, televisão e documentário do Benim) dirigido por Noudeou Noëlie Houngnihin, teve o Brasil como país convidado.

Na programação de filmes brasileiros destacaram-se produções que mostram as relações e os encontros entre o Brasil e o continente africano como “Pedra da Memória” (2011) de Renata Amaral e “Ori” (1989) de Raquel Gerber. Interessante notar que a mostra brasileira foi marcada por estes filmes de realizadoras mulheres num festival impulsionado pela determinação de outras duas mulheres: Christianne Chabi Kao e Noudéou Noélie Houngnihin.

O primeiro foi escolhido como filme de abertura do festival nos apresentando o rico diálogo estético e musical entre as manifestações culturais beninenses e brasileiras dos rituais religiosos e também da cultura popular. “Pedra da Memória” também registrou o encontro entre o babalorixá Euclides Talabyan da Casa Fanti Ashanti em São Luís do Maranhão com o sacerdote vodun Dah Daagbo Avimadjenon em Ouidah, no Benim. Acompanhamos as rimas visuais, musicais e de gestos em que uma dança no Benim se torna uma outra no Brasil, e em certo momento não sabemos mais ao certo de que lado do Atlântico estamos.

Durante a primeira exibição, pescadores de Togbin, uma vila da Route de Pêche que estavam presentes reconheceram o ritual e a música registrados no filme e cantavam juntos a canção enquanto assistíamos ao filme. Naquele momento, parecia que magia do filme, da música e da dança realmente havia invadido o local da projeção para além da tela. Tal como a própria realizadora, Renata do Amaral, referiu-se à “Pedra da Memória”, tratou-se de “fazer o caminho inverso da Árvore do Esquecimento” – da árvore em Ouidah em que os escravos deveriam dar voltas para esquecerem de sua origem e identidade antes e embarcar para o Brasil, para “fomentar reconhecimentos”. Ou talvez, como uma outra árvore de um terreiro em Salvador, descrita por Roger Bastide, em que as raízes atravessam o Atlântico e que faz com que os cantos e danças reverberem de um lado a outro do oceano.

Também foi impactante a projeção do filme “Ori” (1989) de Raquel Gerber, com a narração da historiadora e militante negra Beatriz Nascimento, que permitiu ao público beninense conhecer manifestações da cultura afro-brasileira, as histórias de resistência dos quilombos e do movimento negro no Brasil. No evento “Periferia no centro da produção cinematográfica brasileira: uma história de continuidade e de rupturas”, foram projetados trechos do filme “Videolências” do coletivo Núcleo de Comunicação Alternativa (NCA) da zona sul de São Paulo, mostrando as reflexões e desafios de grupos de jovens da periferia que produzem vídeos populares sobre a própria realidade local, questionando a representação da periferia no cinema e na televisão. Destacamos também a projeção do filme “À Sombra de um delírio verde” (2011) de Cristiano Navarro, Ann Bacaert e Nicolas Muñoz que trouxe a violenta realidade enfrentada pelos Guarani- Kaiowá no Mato Grosso do Sul, em nome do mercado de etanol e do desenvolvimento dito sustentável que tem massacrado os povos indígenas.

Tal “desenvolvimentismo” também tem lugar no Benim, como observou Noëlie, após ver o filme: em breve, todas as comunidades de pescadores da Route de Pêche, que liga Cotonou à Ouidah, serão expulsas para dar lugar a um grande empreendimento que prevê a pavimentação de uma grande estrada e a construção de complexos hoteleiros de luxo.

Ressaltamos, mais uma vez, a importância deste festival que prioriza o acesso do público beninense a filmes africanos, diaspóricos e outras produções internacionais, além de desenvolver atividades de formação e sensibilização no campo do audiovisual, como nas relevantes ações voltadas para o público infantil e juvenil.

O Festival Lagunimages ocorre quase sem subvenção ou apoio financeiro, contando com o empenho e dedicação de duas mulheres – Christianne Chabi Kao e Noudéou Noélie Houngnihin. Além disso, a associação e a organização do festival conta com o trabalho e engajamento de muitos voluntários. Para a 7a edição contou com o apoio inestimável de: Adjovi Christpeutou, Amoussouvi Odile, Annette Balogoun, Badarou Aboubacar, Bouraima Manzoukoth, Brice Guehou, Brigitte Mäntele, Djidonou Orlane, Elfried Eyebiyi, Joel Chabi Kao, Jules Koukpode, Justin Nobime, Lionel Hounsou, Marcel Houndonougbo, Marcelle Marcos, Miriam Chodaton, Ozeas Guedezoume, Rachelle Chabi Kao, Rosalie Daahgue e Thierry Houssou.

E que venham as próximas edições!


*Imagem: Route de Pêche – caminho de Cotonou à Ouidah, onde há várias comunidades de pescadores, como as de Fidjirossé e Togbin onde ocorreram algumas projeções do Festival.

**Fui convidada pela Associação Lagunimages a participar da 7ª. edição do festival, que ocorreu entre os dias 5 e 8 de dezembro, como conselheira de programação da filmografia brasileira e tive honra de ser eleita madrinha do Lagunimages 2013. Agradeço imensamente a todos da Associação Lagunimages, em especial a diretora Noudéou Noëlie Hougngnihin e a presidente Christiane Chabi Kao, pelo gentil convite, pela acolhida e tudo mais. Meus agradecimentos também à Embaixada do Brasil no Benim, ao Sr. Embaixador Arnaldo Caiche d’Oliveira, ao João Paulo Marão e Gabriela Oliveira. Também agradecemos todos os realizadores e produtores que cederam os filmes para o festival: Renata Amaral, Raquel Gerber, Cristiano Navarro, Daniel Fagundes e Núcleo de Comunicação Alternativa.

***O Ficine agradece à colaboração da Casa das Áfricas.

7º Festival Lagunimages (2013) – Benim: cinema, culturas urbanas e o Brasil (Parte 1)

O Festival Lagunimages – « Festival Internacional de Filmes, Televisão e Documentário do Benim” – foi criado em 2000 pela cineasta belgo-congolesa Monique Mbeka Phoba. Desde sua primeira edição, o festival bianual se afirmou como um evento em que os documentários de realizadores africanos têm destaque especial. Trata-se também do primeiro festival deste gênero criado no Benim. Em seu formato, há ênfase à produção de filmes do próprio continente africano, sendo que parte da programação responde a um tema eleito, além de incluir também parte da filmografia de um país convidado. Em 2007, após a partida de Monique, foi criada a Associação Lagunimages, com sede em Cotonou, com o intuito de dar continuidade à realização do evento, tendo como presidente a realizadora Christiane Chabi Kao.

Em sua 7ª. edição, sob direção de Noudeou Noëlie Houngnihin, o tema escolhido foi “culturas urbanas” e o país homenageado foi o Brasil. Assim, em 2013, o festival responde à crescente e rápida urbanização no continente africano, bem como a diversidade de expressões artísticas que ganham a cena como o grafite, o hip hop e o slam. Entre Brasil e o Benim, por sua vez, são tantos “fluxos e refluxos” que ligam estes dois países – a história do tráfico de escravos, dos retornados Agudas, das religiões e culturas – que a ideia do festival era estabelecer uma nova ponte que atravessasse o oceano Atlântico através do cinema. É digno de nota também, que atualmente, as telenovelas brasileiras são extremamente populares no Benim e em toda África do Oeste, tratava-se então de propor outras imagens da realidade brasileira.

Um dos grandes méritos do festival é a democratização do acesso aos filmes, num país que não possui mais salas de cinema – assim como tem ocorrido no Brasil, muitas salas beninenses transformaram-se em igrejas pentecostais. A maior parte das projeções de filmes ocorreram em praças públicas e mercados de Cotonou, lugares de grande circulação da população local: a Place de Martyrs, mercado de Godomey, a aldeia de pescadores em Fidjirossé, a Universidade Abomey Calavi e escola públicas. Nesta edição além de Cotonou, o festival teve também sua programação estendida às cidades de Allada e Parakou.

Destacamos a fundamental importância do trabalho de formação e de iniciação ao cinema a à cultura realizado pela associação nesta edição: atelier dedicado ao trabalho de atores diante da câmera por Lorris Coulon no CIRTEF (Conseil International de Radios-Télévisions d’Expression Francesa) de Cotonou; atelier de realização e produção de documentário para televisão para alunos do ISMA (Institut Supérieur des Métiers de l’Audiovisuel) ministrada pelo documentarista suíço Felix Karrer; atelier de iniciação à realização de ficção e documentário curta-metragem para jovens da escola Océan ministrada pela equipe Lagunimages; atelier de Slam pelo poeta slammeur Kamal e um atelier de dança urbana e flash-mob.

A Associação também desenvolve um trabalho de cine-clube em escolas pilotos, dentre estas o Collège Ocean, voltado para crianças e jovens e que eles pretendem estender para outras escolas. É a partir desta atividade que se realizou o atelier de iniciação ao curta-metragem para as crianças, para que elas pudessem vivenciar o processo de realização de um filme – da ideia inicial da concepção à escritura do roteiro, passando pela filmagem, até a pós-produção. Dois filmes curta metragens de 5 minutos foram produzidos pelas crianças e exibidos no festival: “Les tricheurs” ( Os trapaceiros, 2013) sobre situação da “cola” e da trapaça dos alunos em sala de aula e “Les inquietudes de Ornella e Larissa”(As inquietações de Ornella e Larissa, 2013) que traz uma crítica das crianças à falta de limpeza do ambiente escolar.

Uma parte da programação foi dedicada à produção recente beninense com os filmes curta-metragens dos alunos da ISMA : “Juste un regard” de Olivier Zinsou, “Le prix à payer” de Maxime Kossivi Tchinkoun, “Doudejdi” de Evelyne Hessou e “Rencontres virtuelles” de Ayeman Aymar Esse. Na Universidade de Parakou, foi exibido o filme “Si Gueriki” (2002) do cineasta beninense Idrissou Mora Kpaï, considerado atualmente um dos principais documentaristas africanos, que recebeu o prêmio Prince Claus em 2013.

Dentre os filmes da temática cultura urbana foram exibidos filmes como o documentário “Fangafrika: le voix de sans voix”(2007) realizado pelo coletivo Staycalm que mostra a riqueza e a energia da cena hip hop na África do Oeste, com as apresentações e entrevistas com inúmeros rappers destes de Burkina Faso, Senegal, Benim, Mali, Camarões, e outros. Também estiveram na programação “Il va pleuvoir à Conakry” (2007) de Cheik Fantamadi Camara que mostra um drama de conflito de gerações, entre modernidade e tradição; e “Ouaga Saga” (2004) de Dani Kouyaté, uma comédia que a mostra vida de jovens na cidade de Ouagadogou.

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Nada a perder ou a fotografia de Rotimi Fani-Kayodé (parte 2)

Esta é uma tradução livre de Traces of Ecstasy, uma manifesto do fotógrafo Anglo-Yorubá Rotimi Fani-Kayodé, publicado em 1987, quando o autor contava com 32 anos. Você encontra a primeira parte da tradução aqui.

Traços de ênfase

“Uma consciência histórica têm sido de fundamental importância no desenvolvimento de minha criatividade. A história africana e dos negros têm sido constantemente distorcida. Mesmo na África, minha educação foi dada em inglês, em escolas católicas, como se a língua e a cultura do meu povo, os Yorubá, fossem inadequadas para o desenvolvimento saudável dos jovens. Mas ao explorar a história e civilização Yorubá, eu redescobri e reavaliei partes da minha experiência e entendimento do mundo. Eu vi paralelos entre o meu próprio trabalho e o dos artistas Osogbo que resistiram às subversões culturais do neocolonialismo e que celebravam o rico e secreto mundo de nossos ancestrais.

Permanace verdade, contudo, que as grandes civilizações Yorubá do passado, como muitas outras culturas não-europeias, ainda são enviadas pelos ocidentais à museus de arte e cultura primitivas. A cosmologia Yorubá, comparável em sua complexidade e sutilezas aos mitos filosóficos grego e oriental, é tratada como nada além de uma superstição bizarra que, por milagre, inspirou a criação de alguns dos mais sensíveis e delicados artefatos da história da arte. A arte moderna Yorubá (entre a qual eu situo a minha própria contribuição) tem chegado, muitas vezes, a alcançar altos valores nas galerias de Nova Iorque e Paris. Ela é premiada por seu apelo exótico. De modo similar, as versões modernas das crenças Yorubá carregadas pelos escravos para o novo mundo têm se tornado, na forma de carnaval, mera atração turística. E eu sou inevitavelmente tocado por isso.

Outro aspecto da história – o da sexualidade, por exemplo, tem me afetado profundamente. A história oficial tem negado a validade das relações e experiências eróticas entre os membros do mesmo sexo. Como no campo da política e da economia, “as invencionices” dos historiadores das relações sociais e sexuais foram prontamente amparadas pela Igreja. Mas à despeito de todas as tentativas da Igreja e do Estado em suprimir a homossexualidade, é claro que relações sexuais enriquecedoras entre membros do mesmo sexo sempre existirão. Elas são parte da condição humana, ainda que o conceito de identidade sexual seja uma noção recente.

Há um capítulo sombrio da história europeia que não me foi ensinado na escola. Eu só descobri muito mais tarde que os nazistas criaram as mais extremas formas de homofobia existentes nos tempos modernos e tentaram exterminar homossexuais nos campos de concentração. Isso não veio exatamente como uma surpresa, mas como mais um exemplo da longa tradição europeia da repressão violenta da alteridade. Isso me toca tão de perto quanto o conhecimento de que milhões de meus antepassados foram mortos ou escravizados, a fim de garantir a hegemonia política, econômica e cultural europeia sobre o mundo.

Por esta razão, eu sinto que é essencial resistir a todas as tentativas que desencorajam a expressão de uma identidade. No meu caso, minha identidade foi construída a partir de meu próprio senso de alteridade, seja cultural, racial ou sexual. Os três aspectos não estão separados dentro de mim.

Fotografia é o instrumento pelo qual me sinto mais à vontade para me expressar. É a fotografia, portanto – negra, africana, homossexual – não apenas um instrumento mas uma arma útil caso seja preciso resistir à ataques à minha integridade e à minha existência.

Não é nenhuma surpresa descobrir que o trabalho de alguém é evitado ou ativamente desencorajado pelo Establishment. A burguesia homossexual tem dado mais apoio a este tipo de trabalho – não porque os artistas negros tenham se notabilizado, mas porque a bunda negra vende quase tão bem quanto um pau negro. Como resultado do interesse homossexual, tive diversos portifólios impressos em editoras gay e um livro de nus publicados pela GMP. Houve também alguma atenção dada ao meu trabalho erótico por galerias hétero que recebem financiamento por parte das autoridades locais mais progressistas.

Mas no geral, ambas, galerias e editoras têm se sentido mais seguras com o meu trabalho étnico e devido à tradição liberal clássica, elas vão levar em conta algumas das minhas imagens – aquelas menos abertamente ameaçadoras e ultrajantes. Assim, o negro pode até ser bonito, desde que ele se mantenha dentro de um referencial branco.

Contudo, eu tenho tido as mais desconcertantes respostas ao meu trabalho vindas de certos grupos auto-conclamados vanguarda. Na exposição Misfits na Oval House (que ocorreu para coincidir com a inauguração de uma placa para comemorar o nascimento do Lord Montgomery de Alamein), fui convidado, junto com outros artistas, a remover meu trabalho por ele ter atraído uma publicidade desfavorável. Nós nos recusamos, naturalmente. Infelizmente, a imprensa estava muito ocupada rendendo homenagem ao Monty, então a reputação da Oval House foi salva e nos foi negada uma publicidade gratuita.

Quanto à África, se eu pudesse realizar uma exposição em Lagos, por exemplo, eu suspeito que ocorreriam vários motins. Eu certamente seria acusado de ser um contrabandista de valores ocidentais decadentes e corruptos.

Algumas vezes, porém, eu penso que se eu levar meu trabalho para as áreas rurais, onde a vida está ainda vigorosamente em contato consigo mesma e com suas raízes, a recepção seria mais construtiva. Talvez eles pudessem reconhecer meus deuses da varíola, meus sacerdotes transexuais, minhas imagens de homens negros desejáveis em estado de frenesi ou a tranquilidade da comunhão com o mundo espiritual. Talvez eles tivessem menos medo de se deparar com os mais obscuros segredos obscuros da África, aqueles segredos pelos quais alguns de nós procuram ter acesso à alma.”

Foto de Rotimi Fani-Kayodé por Robert Taylor.

Nada a perder ou a fotografia de Rotimi Fani-Kayodé (parte 1)

“Homens negros do Terceiro Mundo ainda não revelaram, nem para seu próprio povo, nem para o Ocidente um fato chocante: eles podem desejar um ao outro.” Rotimi Fani-Kayodé.

Faz um tempo que eu queria escrever um post sobre o Rotimi Fani-Kayodé, um dos meus fotógrafos prediletos. E num momento em que ser gay tornou-se crime na Nigéria, acho que lembrar de Kayodé vem muito a calhar. Ele nasceu em 1955, em Lagos, de uma família bastante poderosa. Basta lembrar que seu pai, o advogado Victor Fani-Kayode “Fany Power”, uma importante liderança Yorubá,  foi quem apresentou à Inglaterra a emenda sugerindo a independência de seu país. Cedo partiu para a Grã-Bretanha com a família, onde se refugiaram dos perigos da Guerra da Biafra (1967-1970). Rotimi começou a fotografar ainda na universidade, realizando um trabalho experimental de bastante impacto. Seus modelos prediletos eram homens, negros e a maior parte de suas fotos tematizavam a questão gay, o racismo, a religiosidade Yorubá e a colonialidade. Aos que comparam o seu trabalho com o de seu amigo Mapplethorpe, o próprio Kayode dá uma resposta no texto logo abaixo. Para ele este tipo de fotografia não passava de “mistificação.”  Ele foi polêmico também ao relacionar a religiosidade com a sexualidade gay em suas fotos, o que despertou a ira de sua comunidade. Além disso, o fato de ser gay o tornava um pária entre os Yorubá. Rotimi morreu em 1989, de ataque cardíaco e complicações do SIDA. Abaixo, traduzi a primeira metade de seu manifesto, Traces of Ecstasy, escrito em 1987. Na próxima semana, publico a segunda parte do texto e comento mais sobre o seu trabalho.

Traços de ênfase (I)

Tem sido o meu destino terminar como um artista com um gosto sexual por outros homens jovens. Como resultado disso, surgiu uma certa distância entre mim e minhas origens. A distância é ainda maior dado eu ter deixado a África como um refugiado 20 anos atrás.

Eu sou um outsider em três sentidos: no sentido da sexualidade; em termos do deslocamento geográfico e cultural; e no sentido de não ter me transformado no profissional respeitável e casado que meus pais desejavam. Tal posição me dá o sentimento de ter muito pouco a perder. E isso produz um senso de liberdade pessoal frente às convenções.

Para alguém que conseguiu conquistar a sua criatividade a despeito das pressões, isto teve um efeito liberador. Abriram-se áreas da criatividade que talvez permanecessem para sempre esquecidas. Ao mesmo tempo, aqueles traços de valores mais antigos permaneciam, possibilitando a  realização de novas leituras (do que era tradicional) a partir de um vantajoso ponto de vista não usual. Os resultados dessas relações (e do meu trabalho) desorientam (o expectador).

Na arte africana tradicional, a máscara não representa a realidade material: ao contrário, o artista esforça-se em aproximar-se da realidade espiritual através de imagens sugeridas por formas humanas e animais. Eu acho que a fotografia pode querer alcançar o mesmo nível de interpretação imaginativa da vida. Minha realidade não é aquela que frequentemente nos é apresentada nas fotografias ocidentais. Como um africano trabalhando num meio ocidental, eu tento dar uma dimensão espiritual às minhas fotografias, tornando ambíguos os conceitos de realidade e fazendo com que eles estejam abertos à reinterpretação. Isto requer o que os sacerdotes Yorubá e os artistas chamam de uma técnica de ‘êxtase’.

Estética e eticamente, eu procuro traduzir minha raiva e meu desejo em novas imagens que implodam percepções convencionais e que revelem mundos ocultos. Muitas dessas imagens são vistas como sexualidade explícita ou mais precisamente, homossexualidade explícita. É intencionalmente que eu faço fotos homossexuais. Homens negros do Terceiro Mundo ainda não revelaram, nem para seu próprio povo, nem para o Ocidente um fato chocante: eles podem desejar um ao outro.

Alguns fotógrafos ocidentais têm mostrado que eles podem desejar homens negros (ainda que de um modo neurótico). Mas a mistificação exploradora da virilidade negra criada pela burguesia homossexual não é de fato diferente da coisificação vulgar da África que nós conhecemos através de extremos como, de um lado, o do trabalho de Leni Riefenstahl e, de outro, o das imagens de vítimas que surgem constantemente na mídia. Por isso, agora é o momento de nos reapropriarmos de tais imagens e transformá-las ritualisticamente em imagens de nossa própria criação. Para mim, isto envolve uma investigação imaginativa da negritude, da masculinidade e da sexualidade.

Contudo, é mais fácil dizer do que fazer. Trabalhando no contexto ocidental, o artista africano inevitavelmente encontra o racismo. E desde que eu tenho concentrado muito do meu trabalho no erotismo masculino, eu tenho sido alvo de reações homofóbicas, tanto da comunidade branca quanto da comunidade negra. Embora isso me desaponte, num sentido puramente humano, talvez também produza um tipo de conflito essencial através do qual surgem novas visões. Contudo, este é um conflito entre desiguais e, nesse sentido, eu permaneço em desvantagem.

Por este motivo, eu tenho sido ativo em vários grupos organizados em torno de questões referentes à raça e à sexualidade. Para o indivíduo, juntar-se a essas atividades pode deixá-lo mais confiante e com mais discernimento. Para os artistas, isso pode transformar nossas ideias ocidentalizadas – por sua vez, a arte é produto de um desejo individual ou que deve se conformar a certos princípios estéticos de gosto, estilo e conteúdo. Isto também pode ter o efeito muito concreto de fornecer os meios para que os artistas antes isolados e impotentes possam agora mostrar o seu trabalho e insistam em ser levados a sério.

Traços de Ecstasy completo em inglês pode ser encontrado aqui. Trabalhos de Kayodé podem ser vistos no site da galeria Michael Stevenson, sobre a qual escreverei em outro momento.

Quem melhor escreve sobre Rotimi é Kobena Mercer. Em português você pode ler Eros e Diáspora.

Um ano sem Zózimo Bulbul

Em 24 de janeiro de 2013, faleceu Zózimo Bulbul, o grande símbolo do Cinema Negro no Brasil.

O FICINE tem em Bulbul uma fonte de inspiração. Por este motivo, criamos aqui em nossa página um espaço permanente dedicado à obra de Bulbul. Não só como homenagem ao mestre, mas também como forma de contribuir para o fim da invisibilidade que infelizmente marca os feitos dos negros e negras na história do Brasil, sobretudo quando falamos de cinema.

Leia  a seguir  Zózimo Bulbul e o Cinema Negro“,  texto que você encontra na sessão permanente de nosso site.

70 anos. Era esta a idade de Jorge da Silva, mais conhecido como Zózimo Bulbul, quando iniciou a empreitada de sua vida: a criação de um pólo de cinema negro no coração da cidade do Rio de Janeiro. Assim, em 2007, Zózimo deu início às atividades do Centro Afro Carioca de Cinema, um quilombo de cinema na Lapa, como ele mesmo afirmava.

À esta altura ele já tinha consolidado uma carreira como ator e cineasta. Uma das mais marcantes personagens do cenário de cinema brasileiro, surgido no contexto do Cinema Novo, Bulbul estreou como cineasta nos anos 1970 com o “Alma no Olho”, uma reflexão sobre a vinda dos africanos para a diápora ao som de John Coltrane. Deste momento até 2012, Bulbul dirigiu mais nove curtas-metragens e um longa, Abolição, sempre caracterizados pela valorização cultural do negro e da África,  no combate ao racismo que nos invisibiliza no cenário do Brasil contemporâneo.

Além, dos filmes, Zózimo Bulbul, realizou os Encontros de Cinema Negro, entre 2007 e 2012. Os Encontros de Cinema Negro são o principal legado de Zózimo no Centro Afrocarioca.

Realizados entre 2007 e 2012, e com o próximo marcado para março de 2014, os Encontros representam um marco na história do Cinema Negro no país, pois não só retomam uma discussão sobre a consolidação do campo das cinematografias negras no mundo como também significam um posicionamento político a respeito destas produções. Pois na perspectiva de Bulbul não havia dúvida: para ter filme exibido em seus Encontros, o/a realizador/a tinha de ser negro/a. Cinema Negro, tal como ele concebia, era o fruto de subjetividades negras projetadas na tela.

Este posicionamento rendeu a Zózimo adjetivos como “polêmico” e “controverso” o que, muitas vezes, ofuscava seu feito mais relevante: promover encontros. Encontros entre cineastas negros, do Brasil e da diáspora, e cineastas africanos. E, talvez o mais importante, encontros do público brasileiro com os filmes, com o cinema negro, e também com seus realizadores.

O FICINE tem em Zózimo Bulbul sua fonte de inspiração. Neste sentido, concordamos com Noel Carvalho quando ele dá a Zózimo o título de inventor do cinema negro brasileiro. Para nós do FICINE, falar em cinema negro no Brasil é falar da obra de Zózimo Bulbul, é tê-la como referência.

Filmografia de Zózimo Bulbul, diretor

  • Alma no olho (1974)
  • Aniceto do Império (1981)
  • Abolição (1988)
  • Pequena África (2002)
  • Samba no Trem (2005)
  • República Tiradentes (2005)
  • Zona Carioca do Porto (2006)
  • Referências (2006)
  • O primeiro olhar (2009)
  • Renascimento Africano (2010)
  • FESPACO (2011)
  • C.A.I.S (2012)

Veja também entrevistas com Zózimo Bulbul do Acervo do CULTNE, acervo digital da cultura negra e também do programa 3a1 da TV Brasil.

Cinema Negro e Pesquisa Acadêmica

Quando pensamos em criar o Ficine, uma de nossas preocupações era realizar um levantamento acerca da produção cinematográfica e acadêmica sobre o cinema negro e o negro no cinema brasileiro, pois não havia esse levantamento sistematizado em nenhum local. Percebemos, logo de cara, que desde 2000 vem crescendo o número de pesquisadores – sobretudo no que se refere ao cinema africano – a biografia de atores negros, a realização de mostras e festivais e o número de cineastas negros, embora esse montante ainda seja muito inferior ao desejado. Este aumento decorre, sobretudo, da formação de grupos de estudo – como o grupo de Cinema Negro de Brasília, de coletivos  – do Dogma Feijoada ao Tela Preta da Bahia, do aumento do número de estudantes negros nas faculdades de cinema e do interesse de alguns raros professores e pesquisadores, da área de crítica e história do cinema na discussão sobre o cinema negro. Nesse quesito, podemos destacar a presença de professores como Robert Stam e Ella Shohat, que entre 1999 e 2010 vieram ao Brasil e ministraram ao menos 2 cursos sobre o cinema e multiculturalismo no estado de São Paulo e Lúcia Nagib, professora do departamento de Multimeios da Unicamp entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, quando ministrou um curso de pós-graduação sobre o negro no cinema brasileiro, onde se encontravam jovens intelectuais hoje reconhecidos na área de discussão sobre cinema – como Noel Carvalho – e relações raciais e sexualidade – como Osmundo Pinho. Ela também foi responsável pela exibição de filmes e a vinda de intelectuais africanos para o Brasil. Hoje, Lúcia Nagib é professora da Universidade de Reading no Reino Unido. Ainda na passagem entre os anos 1999 para 2000, Joel Zito Araújo defende a tese A Negação do Brasil, Identidade racial e estereótipos sobre o negro na história da telenovela brasileira sob a orientação de Solange Couceiro na ECA/ USP. Também devemos destacar as pesquisas sobre cinema africano de Mahomed Bamba (UFBA), Alessandra Meleiro (UFF) e Janaína Oliveira (IFRJ), que disseminam o tema em cursos de graduação, publicações e orientações de monografias, dissertações e teses.

A escassez de pesquisas sobre o cinema negro faz com que tenhamos conhecimentos limitados sobre a produção cinematográfica de pessoas negras no mundo, de outras formas de organização das narrativas, etc. Isso também se reverte na qualidade da crítica cinematográfica sobre a presença do negro no cinema. (Cabe notar que raros são os artigos de jornal no Brasil que tematizam 12 anos de escravidão de Steve McQueen, como um filme dirigido por um cineasta negro).  Basta listar as disciplinas sobre história do cinema nos cursos de audiovisual para ter uma ideia da limitação universitária acerca do tema.

Pesquisar a presença do negro nos meios de comunicação, pode ser remontado ao trabalho de Virgínia Bicudo sobre o jornal a Voz da Raça em Estudo de Atitudes de Pretos e Mulatos em São Paulo (1945), ao trabalho inovador de João Baptista Borges Pereira, Cor, Profissão e Mobilidade – o negro e a rádio de São Paulo, (1967) sobre o negro na rádio e, posteriormente, ao trabalho de Solange Couceiro O Negro na Televisão de São Paulo: um estudo de relações raciais (1983). Enquanto a primeira fazia mais uma análise de conteúdo sobre a produção da imprensa negra paulista, os dois últimos vão procurar saber como o negro se insere profissionalmente na linha produtiva do rádio e da televisão.

Numa sociedade em que não há igualdade de oportunidades na produção cinematográfica, a opção por estudar o “cinema negro” se relaciona ao fato de tentar entender o que produzem homens e mulheres negros quando conseguem vencer as barreiras inerentes à produção audiovisual no Brasil e na diáspora. Interessa-nos, sobretudo, conhecer os discursos auto-narrativos de cineastas negros, a construção de personagens negras e os modos de produção cinematográfica nas periferias.

Para entender esse movimento fiz um levantamento das monografias, dissertações, teses, livros e artigos que englobam a temática. Para tanto, visitei bancos de teses de universidades, da Capes e solicitei o auxílio de alguns colegas. Um destaque deste levantamento é a tese A construção da memória e da identidade em filmes de cineastas negros brasileiros de Dione Moura, defendida em 1990 pela UNB. Mas nem todos os textos têm link para uma versão digitalizada.   Aos poucos vamos entrando em contato com os autores solicitando os textos e links, mas gostaríamos também que aqueles que já escreveram sobre o assunto, enviassem seus textos para nosso banco de referências.

Aílton Pinheiro trabalhou no levantamento de filmes e nomes de cineastas negros e agora, faz o levantamento de festivais de cinema no Brasil e no exterior. Outro objetivo é elencar onde as pessoas estudam e pesquisam sobre o cinema negro. Publicizar cursos, mini-cursos, disciplinas, oficinas, etc, que ocorrem pelo Brasil.

Estamos abertos para a contribuição de vocês. Acreditamos que esse banco de textos possa ser útil para estudantes, professores e pesquisadores.

Aos poucos vamos expandindo a base para as produções acadêmicas e cinematográficas estrangeiras. Focando, primeiramente, nas produções latinoamericanas e africanas, pensando a partir da produção e reflexão do sul global, para então expandir o banco de referências para outras experiências de produção pelo mundo.

Consulte nossas REFERÊNCIAS :

*Este post sofreu alterações.

Por um cinema africano no feminino (I): as Jornadas Cinematográficas da Mulher Africana (JCFA)

3eme JCFA

Este post faz parte de uma série de publicações do FICINE que tem a participação das mulheres nas cinematografias africanas como foco. Começamos por apresentar as JCFA: Journées Cinématographiques de la Femme Africaine de l’Image, que acontecem a cada dois anos em Burkina Faso.

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Em 1991, durante a 12a edição do FESPACO (Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou), as profissionais da indústria cinematográfica participaram de um workshop organizado pela FEPACI (Federação Panafricana de Cineastas) para discutir a participação da mulher africana no campo do audiovisual no continente. Como resultado dos debates realizados, as participantes apontaram  como principais dilemas a serem enfrentados as seguintes questões:

  •   a constatação da presença reduzida de mulheres nas indústrias de filmes e vídeos;
  •  a ausência de formação profissional em todos os meios da criação e da produção audiovisuais;
  • as dificuldades de acesso à informação e à circulação em termos de formação e financiamento.

Ainda como resultado das reflexões no workshop, foi assinalado também a necessidade da busca de parcerias que incentivem e possibilitem financeiramente a presença de mulheres profissionais de imagem em festivais.

Assim que em 2010, vinte anos após este workshop, a direção geral do FESPACO criou as JCFA, Journées Cinématographiques de la Femme Africaine de l’Image (Jornadas Cinematográficas da Mulher Africana da Imagem) com objetivo de ampliar a participação feminina em todas as esferas das produções audiovisuais, sejam elas para cinema ou televisão.

As JCFA ocorrem nos anos pares, alternando assim com os anos do FESPACO, em Ouagadougou, capital de Burkina Faso, e também simultaneamente em uma outra cidade do país. Nas duas primeiras edições, a segunda cidade escolhida coincide com o lugar apontado pelo governo burkinense para as celebrações do Dia Internacional da Mulher, data que mobiliza grande atenção da sociedade local.

Durante as JCFA, além das mostras de filmes, acontecem também encontros entre produtoras, realizadoras, montadoras, atrizes, cenógrafas, camerawomen, etc., em formato de palestras e workshops. Todas estas atividades das JCFA se relacionam com um tema central proposto pela organização do evento. Em 2010 o tema foi “Mulher e cinema na África”, buscando realizar um panorama da participação das mulheres no cinema, como uma espécie de retomada do debate iniciado em 1991.

Já em 2012, o foco das reflexões se voltou para formação das Femmes de l’Image. Assim, outro ponto destacado vinte anos antes, voltava ao cerne das preocupações com o tema “Mulher, cinema e formação profissional”. Participei desta edição como convidada, enquanto pesquisadora, por Suzanne Kouruma, diretora do MICA  (Marché International du Cinéma et de la Télévision Africains), parte do FESPACO responsável pela comercialização e distribuição dos filmes. Em breve, publicarei aqui um post sobre esta experiência, com destaque para a cerimônia de encerramento na cidade de Dédougou no qual a delegação participou de almoço com a presença da primeira-dama do país, Chantal Compaoré.

Para 2014, o comitê de organização já fez seu primeiro comunicado, estabelecendo como eixo da discussão o tema “Cinemas de Mulheres na África”. Nesse ano, a direção do FESPACO conta com a colaboração de União Nacional dos Cineastas Burquinenses (UNCB) e da União Nacional das Mulheres de Imagem de Burkina (UNAFIB) na organização das JCFA que ocorrerá entre 03 e 07 de Março, em Ouagadougou e Banfora, cidade a 500km ao sul da capital.

Conheça a seguir um pouco mais das Journées Cinématographiques de la Femme Africaine de l’Image:

Resumo das atividades da I JCFA, em 2010:

Filmes exibidos:

Ficções  (curtas e longas metragens)

* Pauline : l’amour en action, de Maïmouna N’Diaye

* Les Inséparables, de Christiane Chabi Kao

* Borderline, de Sonia Chamkhi

* Affaire d’État, de Fatim Ouattara

* Les bénéficiaires, de Mamounata Nikiéma

* Amour sans frontières, de Laurentine Bayala

* La Mue, de Rachelle Somé


Documentários
:

* Femmes en peine, de Aminata Diallo Glez

* Femmes à l’ombre, de Odette Ibrango

* Une affaire de nègres, de Osvalde Lewat

Resumo da II JCFA, em 2012:

Filmes exibidos em Ouagadougou:

Ficções  (curtas e longas metragens)

Haisse (Amour ou châtiment), de Moussa Hamadou Djingarey (Níger)

Houedjizo (la maison en feu),  de Jean-Paul Amoussou (Benin)

I want a wedding dress, Tsitsi Dangarembga (Zimbabwe)

Le mec ideal, Owell A. Brown (Costa do Marfim)

*Notre étrangère (The place in between), Bouyaian Sarah (Burkina Faso)

Jouqu’au Bout, Laurentine Bayala (Burkina Faso)

*  Le lign sale,  Inoussa Kaboré (Burkina Faso)

Documentários:

La marque d’un profissionnel, du rire naît l’espoir, Yumilo Takashima (Japão)

Le drame des filles mères, Kadidia Sanogo (Burkina Faso)

* Paris mon paradise, Eleonore Yameogo (Burkina Faso)

Séries de Televisão:

Alima, Kouka Aimé ZOngo (Burkina Faso)

Le testament, Apolline Traore (Burkina Faso)

Filmes exibidos em Dédougou:

* Le fauteil, Missa Herbie (Burkina Faso)

* Nandi, Kandi Cissé Sessouma (Burkina Faso)

Sans papier  à Ouagadougou, UNAFIB (Burkina Faso)

* Super flic 1, Aminata Diallo Glez (Burkina Faso)

* Trois femmes, un village, Aminata Diallo Glez (Burkina Faso)

* Une femme pas come les Autres, Abdoulaye Dao (Burkina Faso)

*Affaire publiques (2ème saison), Adjaratou Lompo (Burkina Faso)

*  La traite des enfants, Guy Désiré Yameogo/ Mamounata Nikiema (Burkina Faso)

* Prévention et lutte contra la traite des enfants au Burkina Faso, Guy Désiré Yameogo/ Mamounata Nikiema (Burkina Faso)

Para saber ainda mais um pouco, leia também “Pour changer le regard sur la femme”,  impressões da cineasta Laurentine Bayala sobre as II JCFA. (texto em francês)

Quênia, São Silvestre, Cinema e muito mais!

yellow fever

Adoro atletismo e sempre fico torcendo pelos corredores quenianos na São Silvestre. Fico lembrando que já tentei a vida no salto em altura e ganhei uma medalha no salto em distância e nos 400m, quando estava na equipe do Omar Sabbag, meu colégio em Curitiba. Todo ano depois da São Silvestre prometo que vou correr a próxima, que vou voltar ao esporte e tal, o que de fato nunca acontece!!! Começo a pesquisar sobre os melhores tênis e as técnicas dos quenianos e tal e a coisa toda fica por aí. Este ano não foi diferente, mas no meio da pesquisa acabei descobrindo muito mais do Quênia.

Primeira velha descoberta: Ng’endo Mukii. Ouvi falar do trabalho da Ng’endo pela primeira vez no ano passado, quando o Febre Amarela foi exibido no Festival de Curtas de São Paulo. Yellow Fever, um curta de 6 minutos deveria ser um filme obrigatório para nós. Ele é lindo. Ng’endo é uma (estilosérrima) talentosa diretora, animadora e roteirista de Nairobi. Antes de Yellow Fever, ela dirigiu Hasidi e Dust. Este último, uma narrativa sobre suas experiências na Copa do Mundo da África do Sul, termina com uma homenagem ao Mandela. Mas Yellow Fever vai fundo ao expor algumas das feridas abertas pelo efeito conjunto do racismo e do sexismo dirigidos à mulher negra. Talvez por falar de uma experiência pessoal de Ng’endo e sua irmã, dos clareamentos (bleachings) realizados por algumas mulheres quenianas e por colocar a pele como ponto central de discussão, Yellow Fever, torna-se tão forte. O texto do filme nos leva a refletir sobre temas como o auto-ódio estimulado cotidianamente pelos meios de comunicação e pela propaganda. O filme ainda está no circuito das mostras e festivais, mas esperamos que logo ele esteja disponível para download. Por enquanto, você pode ver seu trailer!

Segunda descoberta de Nairobi. Um pequeno vídeo do New York Times me levou ao Just a Band, um grupo de música eletrônica/ house/ etc. Os membros da banda, que se conheceram na universidade, fazem os seus próprios videoclips. Ha-He narra a história de Makmende Amerudi, um herói estilo Chuck Norris e já tem mais de 500.000 views no Youtube. Huff + Puff, Usinibore e Dunia Ina Mambo também merecem um view!

Por último e, porque já é fim de semana e todo mundo quer dançar, conheçam os Villagers Band e um hit de 2011, Furi Furi Dance de DK e Jimmy Gait. Boa sexta, bom sábado e bom domingo para todos! Quem sabe amanhã eu volte a correr!