QuilomboCinema: ficções, fabulações, fissuras

>>> De um lado do Atlântico (Milena Manfredini, 2020), Fartura (Yasmin Thayná, 2020), Nascente (Safira Moreira, 2020), Pattaki (Everlane Moraes, 2019) e República (Grace Passô, 2020)

Texto originalmente escrito para o catálogo do forumdoc.bh.2020. Disponível em: https://issuu.com/forumdoc/docs/catalogo_forumdoc_2020_digital

TATIANA CARVALHO COSTA¹

Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo agencia testemunhos e articulações da identidade negra,sua memória e territorialidades, na contemporaneidade. Na última década, vimos crescer significativamente a presença de realizadores e, principalmente, realizadoras negras. Em festivais e outros eventos de cinema – presenciais e agora virtuais – esse conjunto vigoroso e heterogênero se encontra, junto a críticos, programadores e pesquisadores também negros, e estabelece um rico processo de diálogo e fortalecimento.

Aquilombamento é uma possível chave para a compreensão de processos agregadores e contra-coloniais que configuram um conjunto de ações empreendidas por pessoas negras nas artes e, mais especificamente, no Cinema. Para Maria Beatriz Nascimento (2018) quilombo é um “instrumento ideológico”, “símbolo de resistência” que, no campo do ativismo e das práticas artísticas, “fornece material para a ficção participativa”. De acordo com a autora, quilombo é uma “possibilidade nos dias da destruição” – destruição esta que, para os povos negros diaspóricos, é consequência de uma outra ideia, a de progresso da modernidade, como bem nos aponta a filósofa Denise Ferreira da Silva (2017).

A modernidade nos inventa como uma “ficção útil”, como afirma Achille Mbembe.Segundo o autor, “negro e raça têm sinônimos no imaginário das sociedades europeias”. O autor argumenta que “raça não existe enquanto fato natural, físico, antropológico ou genético” e que portanto ela não passaria de “uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica” (MBEMBE, 2018, p. 28; grifo nosso). O “negro”, naturalizado como uma essência e aprisionado no “calabouço das aparências” seria, portanto, uma invenção. Essa “ficção útil” serve sobretudo a uma outra ficção, ou “autoficção”, que sustenta por oposição a ideia da universalidade de uma identidade – a do sujeito branco eurocentrado – que toma para si o lugar de um “mesmo do mundo” em oposição a um “outro” que não o espelha.

A “ficção participativa” de Maria Beatriz Nascimento nomeia ações no campo das artes, notadamente em torno do que o Teatro Experimental do Negro (TEN) empreendeu a partir de 1944. Para a autora, as atividades do TEN reforçam uma “nacionalidade brasileira por meio do filão da resistência popular às formas de opressão” (2018, p.290) e de afirmação do “negro” como possibilidade de humanidade no imaginário coletivo. O TEN e a ideia de quilombismo desenvolvida pelo seu fundador, Abdias do Nascimento, formam um programa político que articula ética e estética² em oposição ao que ele chamava de “patologia da brancura”, num enfrentamento à mítica “democracia racial” (2019, p. 92). O quilombo, para Abdias, “não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”(NASCIMENTO, 2019, p. 289).

Parto aqui da hipótese de que Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo, na contemporaneidade e realizado por e com corpos-ficção, articula possibilidades de existências com e na imagem. Um QuilomboCinema que agrega direta ou indiretamente realizadores, pesquisadores, críticos, curadores e produtores que colocam na gira um conjunto de obras e de pensamento sobre elas e que tensionam a própria noção de Cinema Brasileiro Contemporâneo. A ideia de corpo-ficção me parece, por ora, central para a compreensão da dimensão inventada de uma outridade – reiterada historicamente pelo Cinema Brasileiro – e, ao mesmo tempo, da potência de invenção de si que constitui os sujeitos subalternos – especificamente, aqui, negros num contexto particular de um país que ainda não se conciliou com seu passado colonial e escravagista. Tomo a ideia de ficção como uma potência que articula fabulação, invenção e restituição para a problematização e reinvenção da identidade negra com e no Cinema.

Ao falar do problema contemporâneo das literaturas nacionais, Edouard Glissant afirma que elas “devem aliar o mito à sua desmitificação, e a inocência primeira à inteligência adquirida”. Com isso, é “necessário que [as obras] assumam de uma só vez, o combate, o militantismo, o enraizamento, a lucidez, a desconfiança de si mesmo, o absoluto do amor, a forma da paisagem, o nu das cidades, as ultrapassagens e as fixações” (GLISSANT, 2019). Essa multiplicidade de abordagens que o caribenho apontava no início dos anos 1980³ segue fundamental para este nosso QuilomboCinema e é expressa no conjunto vigoroso e diverso de filmes produzidos por realizadoras negras na programação desta edição do forumdoc.bh.2020.

Everlane Moraes constrói um oriqui cinematográfico, fabulando uma Cuba com seres encantados, desdobramentos de Iemanjá – a mãe dos filhos-peixe – que os hipnotiza e que revela, por meio seus comportamentos quase obsessivos, as contradições e a complexidade da vida na ilha. Segundo Antônio Risério (2020), oriqui nomeia um canto,por meio seus um poema, uma narrativa ideogramática que pode ser uma “saudação-em-nome”, de “linguagem hiperbólica”, especialmente quando se referem a orixás (mas podem se referir a “qualquer coisa sob o sol”, ainda segundo o autor). Em Pattaki, ganância, contenção, sedução e fé se materializam na performance de quatro figurações que existem no fronteiriço território simbólico entre terra e mar, vivos e mortos, numa recusa à adesão a parâmetros coloniais ou simplificações narrativas restritas a representações e decodificações de uma cosmogonia afro-cuban, jogando o filme ao oceano-imaginário da diáspora negro-atlântica.

De um lado do Atlântico (Milena Manfredini, 2020)


Fartura (Yasmin Thayná, 2020)
Nascente (Safira Moreira, 2020)

Em De um lado do Atlântico, Lélia Gonzales anuncia: “Rio de Janeiro vai virar Palmares”.As ruínas do Cais do Valongo – evidências da chegada e da comercialização de negros escravizados na antiga capital – misturam-se a imagens contemporâneas de corpos negros em rituais, que são friccionados às estátuas de inspiração helênica que compõem a paisagem moderna da cidade do Rio de Janeiro. Imagens do início do século XX disponíveis em arquivos britânicos reiteram o imaginário colonial em cujas fissuras o filme opera. “Quilombo é: homens que procuram conscientemente organizar uma sociedade para si onde ele possa viver de acordo com o seu passado histórico africano brasileiro, seu costume, a sua forma de ser” – nos fala Maria Beatriz Nascimento em voice over. A partir do oceano que nos trouxe até aqui e que permanece a nos guardar, a diretora Milena Manfredini nos conecta com a reiteração da violência e das potências herdadas e que latejam na manifestação “Vidas Negras Importam”, nos lembrando do tempo espiralar que conforma nossa existência e nossa resistência.

Dos espaços da cidade para os corpos em ambientes domésticos, festivos, aquilombados. Fartura monta uma multivocalidade em primeira pessoa, reiterando experiências compartilhadas a partir de imagens de famílias negras, segundo a diretora Yasmin Thayná, em voice over no filme, “que puderam se registrar”. “Ver a vida dos outros nestas imagens é como estar diante das fotos que meu pai fez da nossa família”,acrescenta. Imagens de um sempre-tempo de festa, de alegria em volta de tudo o que se consegue colocar à mesa. A comida farta como elemento agregador; fartura como partilha. O pesquisador Muniz Sodré, uma das primeiras pessoas do plural do filme, associa fartura compartilhada à tradição, em sua transtemporalidade: “no sentido da tradição de onde eu venho, de onde muitas de nós viemos, o tempo tem outros sentidos […]: o tempo como divindade, que é um deus a quem se celebram rituais, etc. etc., mas também é uma forma de viver que permite a gente estar aqui e encontrar ao mesmo tempo quem não está. Nessas tradições, o tempo é sempre circular, não é presente, passado e futuro, ele é vivido em forma de ritual, e é um ritual que é comunitário”. O tempo da fartura é o tempo do aquilombamento.

No nosso hoje-agora menos farto, Nascente congrega mulheres que coabitam um mesmo ambiente doméstico-fílmico. Juntas, elas articulam um conjunto de signos que reiteram a presença negra nos planos – fílmico, físico, espiritual –, uma cosmogonia manifesta nas forças que habitam a casa e seus corpos. A diretora Safira Moreira, e sua câmera na mão, percorre os ambientes com essas mulheres para nos dizer que cuidar da casa é também cuidar dessas forças. A câmera-Safira dança junto, movimentando-se no espaço e no tempo que coexistem com e entre aqueles corpos – o tempo do visível, o tempo do invisível, o tempo evocado, o tempo impresso nos rostos das quatro gerações presentes ali. Filmado e lançado em meio à pandemia, o filme entrelaça camadas de tempo para nos apontar, no espelho, o que nos trouxe até aqui e o que vai nos levar adiante.

Pattaki (Everlane Moraes, 2019)
República (Grace Passô, 2020)

Ao contar sobre o que gera República – essa vertigem / mise en abyme em que somos mergulhadas – Grace Passô diz de um “sentimento de tempo” e de uma “exaustão histórica” que há “desde que existe este nome Brasil”. A densidade deste tempo-agora pandêmico exacerba, segundo a realizadora, “uma sensação radical de falta de pertencimento”. O filme, para ela – e para nós, em certa medida –, é um refrão a repetir a densidade atemporal da exaustão e do não-pertencimento negro diaspórico.

No filme, a atriz Grace se desdobra em duas pessoas: uma primeira, que performa a ficção de um mundo sonhado, e a segunda, que encarna o atravessamento de uma realidade transtemporal.“O teu Brasil acabou e o meu nunca existiu. Nunca existiu.Nunca existiu. Nunca!”, é o grito que nos atravessa, no final do filme, vindo da mulher segunda e dirigido à primeira; as duas, a mesma. Para além da ideia de espelho, o que Grace nos apresenta é a figuração de um duplo, esse dispositivo de autoproteção psíquica num desdobramento subjetivo. W.E.B. Dubois (apud GILROY, 2012) denomina “dupla consciência” dos sujeitos negros diaspóricos o reconhecimento da autoimagem que viria do esforço da identificação com uma perspectiva de negrura que se coloca, necessariamente, em permanente diálogo e/ou conflito com a imagem externa feita pelo fictício sujeito universal. Na articulação que a diretora faz das personagens – uma mulher e seu duplo – ela cria uma alegoria de sua/nossa vivência nesta sociedade atravessada por severos traumas de centralidade racial sobrepostos ao contemporâneo trauma da pandemia. O apartamento, com seu dentro e seu fora, é o espaço social dos limites para o seu/nosso corpo negro. A mulher de dentro é uma mulher negra. A mulher de fora também. A de dentro é o duplo. A de fora é contundência de um sujeito aparentemente desterritorializado a apontar para a fragilidade a própria noção de territorialidade, de pertencimento. A evidência da nossa ficção que aponta para a necessidade de nossa (re)invenção.

Notas

1. Tatiana Carvalho Costa é doutoranda junto ao PPGCOM/UFMG. Professora no Centro Universitário Una. Colabora em eventos de cinema como curadora, programadora e júri.

2. A discussão do autor se restringe à noção de representação. Compreendo aqui que esta noção é restritiva para o que o Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo tem proposto, mas ela serve de ponto de partida e superação.

3. O texto original, Le discours antillais, foi publicado em 1981.

4. Entrevista dada a mim e a ao crítico Juliano Gomes para a série “Diálogos APAN” em 28 de junho de 2020. Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/live/?v=711857952983117&ref=watch_ permalink>

Filmes

Do outro lado do Atlântico. dir. Milena Manfredini, 2020. 7min >> https://vimeo.com/437178164

Nascente. Dir. Safira Moreira, 2020. 6min >> https://vimeo.com/446615127

Pattaki. dir. Everlane Moraies, 2019. 21min. >> https://mubi.com/pt/films/pattaki

República. Dir.: Grace Passô, 2020. 16min >> https://vimeo.com/423769303 

Referências

GLISSANT, Edouard. Le Même et le Divers. In.: Le discours antillais. Paris: Seuils, 1981. p. 190-201. Tradução: Normélia Parise. Disponível em: <http://www.ufrgs .br/cdrom/glissant/glissant.pdf>. Acesso em 29 de janeiro de 2019.

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/ Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos,2012. NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma militância Pan-Africanista.São Paulo: Perspectiva, 2019.

NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento quilombola e intelectual: possibilidades nos dias da destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N -1 edições, 2018.

RISÉRIO, Antônio. De oriquis. Revista Afro-Ásia. Salvador: nº 15, Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, 1992. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/afroasia/article/download/20833/13434&gt;. Acesso em: 3 mar. 2020.

Masterclass com Adélia Sampaio, mediada por Tatiana Carvalho Costa

Poderia um filme representar os desafios de se realizar cinema nos anos 80? A masterclass Dirigindo Amor Maldito ou a mulher que enfrentou o sistema propõem um estudo de caso sobre os desafios na realização deste longa-metragem, considerado um marco na história do cinema nacional por ser o primeiro filme de longa duração a ser dirigido por uma mulher negra no Brasil. Não bastante, o filme é sobre uma história de amor entre duas mulheres, pela primeira vez sendo construída pelo olhar de uma mulher.  Não perca este encontro histórico! Dia 23 de Setembro, às 19h, ao vivo no canal do youtube da Fundação Clóvis Salgado. O filme Amor Maldito, pode ser assistido online na plataforma cinehumbertomauromais.com e dia 22/09 (quarta-feira) às 17h30 presencialmente no Cine Humberto Mauro.

Rotterdam e o cinema negro brasileiro: (parte I): texto do catálogo do IFFR para a Mostra “Soul in the eye”.

Soul in the eye – Zózimo Bulbul’s Legacy and the contemporary Black Brazilian Cinema

Por Janaína Oliveira e Tessa Boerman

Depois de Black Rebels em 2017 e do Pan-African Cinema Today (PACT) em 2018, Soul in the Eye é o terceiro programa que destaca os principais movimentos do cinema pan-africano. Voltamos aqui nossos olhos para o Brasil, a maior comunidade da diáspora africana no mundo e ligamos o recente surto de filmes brasileiros negros ao trabalho pioneiro do ator, produtor, diretor e ativista Zózimo Bulbul (1937-2013).

Soul in the Eye, a tradução em inglês para o título original Alma no olho, curta-metragem escrito, dirigido e interpretado por Zózimo Bulbul em 1973, e um trabalho fundamental no cinema negro brasileiro. Inspirado no livro Soul on Ice, de Eldrige Cleaver e dedicado a John Coltrane, este filme de onze minutos foi a estreia de Bulbul como cineasta e é uma das referências mais importantes para realizadores negros que vieram depois dele. Nascido e criado no Rio de Janeiro, Bulbul iniciou sua carreira no início dos anos 1960 como ator durante a era do Cinema Novo. Depois de dirigir Alma no olho, fez mais sete curtas e um longa-metragem, Abolição, um documentário épico em comemoração ao centenário do fim da escravidão no Brasil.

Construindo pontes

Bulbul era um ativista pan-africano implacável, lutando para denunciar o apagamento das culturas africanas e afrodescendentes no cinema e na televisão brasileiras. Em 2007 criou o Centro Afro Carioca de Cinema, um quilombo no coração do Rio de Janeiro como ele próprio costumava dizer, e fundou o Encontro de Cinema Negro – Brasil, África e Caribe, um dos primeiros festivais de cinema negro na América Latina e o maior até o presente. Com o Encontro e estabelecendo uma parceria com o Fespaco, o Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão em Ouagadougou, Burkina Faso, Bulbul conectou cinemas africanos e diaspóricos, construindo pontes entre cineastas negros em todo o mundo.

Além do legado de Bulbul, o surgimento dessa geração de cineastas também está relacionado às ações afirmativas no Brasil entre 2003 e 2016, resultando em uma política educacional inclusiva e novas escolas de cinema fora das principais capitais. Esses desenvolvimentos levaram a um aumento significativo do cinema negro brasileiro nos últimos anos. Os programadores Peter van Hoof e Tessa Boerman quiseram captar este momento e convidaram Janaína Oliveira como curadora convidada.

Oliveira trabalhou com Bulbul como pesquisadora acompanhando a história do Centro Afro Carioca de Cinema desde os primeiros tempos e nos últimos dez anos vem pesquisando e programando filmes de africanos e da diáspora negra. Atualmente é curadora do Encontro de Cinema Negro e tem sido uma figura chave na promoção de filmes brasileiros negros no Brasil e no exterior.

Histórias revigorantes

O programa de filmes Soul in the Eye mostra uma seleção do trabalho de Bulbul e novos lançamentos de cineastas de todo o Brasil. Entre os destaques está o segundo longa-metragem de André Novais Oliveira, Temporada, no qual ele confirma seu talento para captar as sutilezas do cotidiano. Os diretores Glenda Nicácio e Ary Rosa retornam após o premiado Café com canela (IFFR 2018) com a inquietante e provocador Ilha.

Ilha de Glenda Nicácio e Ary Rosa tem estreia internacional na Soul in the eye

Além dos longa-metragens, Soul in the Eye esboça um panorama da produção contemporânea de curtas brasileiros, com mais de vinte curtas criados entre 2014 e 2019. Entre eles está Nada, um curta-metragem de Gabriel Martins, indicado para o prêmio Tiger deste ano com seu longa-metragem No coração do mundo. Organizado em cinco sessões, das quais três são precedidas por uma obra de Bulbul, cada programa de curta metragem trata de uma complexidade histórica específica da negritude brasileira, apresentando um cinema inovador que resiste, supera e recria essa experiência.

Trailer de “No coração do mundo” de Gabriel Martins e  Maurílio Martins que está concorrendo ao prêmio principal do Festival.

É esse legado que instigou uma ampla gama de narrativas revigorantes, desde a enfaticamente humana ao filmar a vida cotidiana negra brasileira (Eu, minha mãe e Wallace; O dia de Jerusa), até a descolonização de identidades (Quantos eram pra tá ?, Pattaki) e histórias sobre sobreviver às violências por meio do afeto (BR3, Rainha).

Pattaki de Everlane Moraes terá sua estreia mundial na Soul in the eye

Esta é uma nova geração de cineastas que faz história escrevendo, produzindo e dirigindo seus próprios filmes, explorando sua autoria e contribuindo para a variedade de histórias cinematográficas sobre experiências humanas. Como Zózimo Bulbul disse depois de sua primeira visita a Ouagadougou durante do Fespaco:

“Lá, descobri que o africano que preserva a cultura oral e ama o cinema porque é um ato social de integração, diferente da literatura, que é mais individual. Cineastas africanos são verdadeiros griots, sábios que contam histórias para as pessoas. E assim fazemos aqui, respeitando nosso tempo, nossas cores e nossa música ”.

Algo Bulbul não pode testemunhar em vida no Brasil, mas imaginou ver com a alma no olho.

Leia o texto original em inglês publicado no catálogo no site do festival:  aqui

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Lista dos filmes que compõem a mostra Soul in the eye

Longas metragens :

  • Abolição, Zózimo Bulbul, 1988, Brazil, 153’
  • Ilha, Ary Rosa/Glenda Nicácio, 2019, Brazil, 94’, international premiere
  • Meu amigo Fela, Joel Zito Araújo, 2018, Nigeria/France/USA/Brazil, 94’, world premiere
  • Temporada, André Novais Oliveira, 2018, Brazil, 113’

Curtas metragens:

  • Afronte, Bruno Victor/Marcus Azevedo, 2018, Brazil, 15’
  • Alma no olho, Zózimo Bulbul, 1973, Brazil, 11’
  • Aniceto do Império em dia de alforria, Zózimo Bulbul, 1981, Brazil, 11’
  • ASSIM, Keia Serruya, 2013, Brazil, 13’
  • BR3, Bruno Ribeiro, 2018, Brazil, 23’, international premiere
  • Cartucho de Super Nintendo em Aneis de Saturno, Leon Reis, 2018, Brazil, 20’, international premiere
  • Dia de Jerusa, Viviane Ferreira, 2014, Brazil, 21’
  • Elekô, Coletivo Mulheres de Pedra, 2015, Brazil, 6’
  • Eu, Minha Mãe e Wallace, Eduardo Carvalho/Marcos Carvalho, 2018, Brazil, 22’, international premiere
  • Experimentando o Vermelho em Dilúvio, Musa Michelle Mattiuzzi, 2016, Brazil, 8’, international premiere
  • Kbela, Yasmin Thayná, 2015, Brazil, 22’
  • Merê, Urânia Munzanzu, 2019, Brazil, 16’
  • Nada, Gabriel Martins, 2017, Brazil,  27’
  • NoirBLUE, déplacements d’une danse, Ana Pi, 2019, Brazil/France, 27’, international premiere
  • Pattaki, Everlane Moraes, 2019, Cuba, 20’, world premiere
  • Pequena África, Zózimo Bulbul, 2002, Brazil, 14’
  • Perpétuo, Lorran Dias, 2018, Brazil, 25’, international premiere
  • Peripatético, Jéssica Queiroz/Jéssica Queiroz, 2017, Brazil, 15’, international premiere
  • Pontes sobre Abismos, Aline Motta, 2018,  Brazilië, 8’, international premiere
  • Quantos eram pra tá?, Vinícius Silva, 2018, Brazil, 29’, international premiere
  • Quintal, André Novais Oliveira, 2015, Brazil, 15’
  • Rainha, Sabrina Fidalgo, Sabrina Fidalgo, 2016, Brazil, 30’
  • O Som do Silêncio, David Aynã, 2019, Brazil, 17’, European premiere
  • Travessia, Safira Moreira/Safira Moreira, 2017, Brazil, 5’

Rotterdam e o cinema negro brasileiro, o começo de tudo (parte I)

Dia 23 de janeiro começa a 48a edição do Festival Internacional de Rotterdam (IFFR) na Holanda e no dia 24 será o primeiro dia da Mostra Soul in the eye – Zózimo Bulbul’s legacy and the contemporary Black Brazilian cinema (“Alma no Olho – O legado de Zózimo Bulbul e cinema negro brasileiro contemporâneo”) com a exibição de 28 filmes, 4 longas e 24 curtas metragens. Fiz a curadoria dessa mostra a convite e em parceria com os programadores do IFFR Tessa Boerman e Peter Van Hoof.

Escrevi um pouco sobre a escolha dos filmes e as dinâmicas que marcam essa curadoria e decidi publicar em posts aqui no site do FICINE. Mas antes, é preciso explicitar o processo, a historicidade do movimento que proporcionou esse momento histórico para o cinema nacional, sim, pois a presença de tantos filmes e de uma verdadeira delegação brasileira em Rotterdam é histórico não só para o cinema negro, mas para todos nós.

O começo de tudo

Tudo começa com um primeiro desapagamento, para usar uma expressão do crítico de cinema e jornalista Heitor Augusto que também estará na Soul in the eye mediando alguns debates além da master class de Gabriel Martins. O desapagemento de Kbela, filme de 2015 de Yasmin Thayná que foi notoriamente ignorado/recusado por todos os grandes festivais do país, e que Tessa Boerman, que no IFFR é a criadora das sessões Black Rebels (2017) e Pan African Cinema Today (PACT / 2018), encontrou na internet em suas pesquisas.

Impactada pelo filme, Boerman convidou Thayná em 2017 para participar do programa Black Rebels, que além dos filmes, contou com a presença de figuras como Barry Jenkins (que aliás deu uma master class no mesmo espaço que este ano será ocupado por Gabriel Martins), Charles Burnett, e Ernest Dickerson.

Você pode clicar aqui para ver o programa.

A diretora de Kbela, Yasmin Thayná, e Bruno F. Duarte, um dos diretores do comunicação do filme, foram então para o IFFR e com eles levaram Alma no Olho, curta metragem de Zózimo Bulbul que dá nome a mostra de 2019. Foi, portanto, através de Yasmin Thayná, Bruno F. Duarte e Kbela que este segundo desapagamento ocorre e que o trabalho seminal de Bulbul foi pela primeira vez exibido no IFFR.

Yasmin Thayná, Bruno F. Duarte, Isabel Zua (atriz do filme),no palco do IFFR com Tessa Boerman
(foto: facebook de Bruno F. Duarte)

É preciso reiterar, pois já disse isto em muitos momentos desde 2017, que nem os veículos hegemônicos da imprensa nacional, nem a ANCINE noticiaram este fato. Era a primeira vez que uma diretora brasileira era convidada para o festival, era a primeira vez de Zózimo e Alma no Olho, e era mais uma vez o silêncio e a invisibilidade dos grandes circuitos relacionados ao cinema.

Bero Beyer, diretor do IFFR, Tessa Boerman, Barry Jekings, Yasmin Thayná e Bruno F. Duarte.
(foto: facebook de Bruno F. Duarte )

Foi assim, portanto, que a ideia de fazer uma homenagem ao legado de Zózimo Bulbul surge para os programadores do Festival. Já a extensão da mostra para os filmes contemporâneos foi uma outra semente plantada por Kbela. O caráter inovador do filme despertou o interesse em saber mais sobre esta geração de cineastas que hoje compõe o cenário do cinema negro brasileiro.

Foi assim o começo de tudo. Nas histórias que compõem as trajetórias negras é fundamental sempre lembrar e reverenciar o caminho, celebrando quem trabalhou ontem para tornar o hoje possível.

Salve Zózimo Bulbul!

Salve Yasmin Thayná, Bruno F. Duarte e Kbela!

Caso não tenha assistido, assista!

Na sequência publicarei a versão em português do texto produzido para o catálogo do festival e, depois, um detalhamento da curadoria das 5 sessões de curtas que compõem a Soul in the eye – Zózimo Bulbul’s legacy and the contemporary Black Brazilian cinema

Autoria: Janaína Oliveira

Luz, raiva, ação! Kbela

Ponto de partida: Zózimo Bubul e seu brilhante “Alma no olho” (misteriosamente esquecido nos cursos e circuitos universitários de cinema) realizado com as sobras de película da produção de “Compasso de Espera”, filme protagonizado por Bubul e dirigido por Antunes Filho. Ali o corpo é a superfície viva sobre o qual deslinda-se uma trajetória, sobre o qual incidem olhares e valores, chibata e desejo sexual — nota mental: re-assistir “Get Out”, reler “Anjo Negro” e Fanon.

Ponto de partida: ser negra, a experiência. O cabelo. Os produtos. As sessões de tortura. Os fantasmas. As piadas. O prejuízo psicológico. Fanon e Bubul, mas também Coltrane e Carolina Maria de Jesus. O corpo, o jongo e o jogo. Como se joga o jogo? O ressentimento é noviço, nocivo, se volta para dentro, causando impotência, açoitando a imaginação. Mas a raiva… a raiva é cristalina, reluzente, criativa. “Kbela” exala uma raiva especial, calma, forte e afirmativa. O SIM transfigurado, o corpo, o corpo… Exterioriza-se sob a forma de uma AÇÃO.

Luz, raiva, ação!

Corporeidades, ativismo político e movimentos negros: uma análise do filme “Aniceto do Império, em dia de alforria”, de Zózimo Bulbul (PARTE 2)

PARTE 1

A política e o exemplo de Aniceto se fazem pela resistência, não somente presente no nome do sindicato, mas pela própria corporeidade na qual aquele senhor, estivador aposentado, sambista e compositor apresenta. Isso significa que o curta-metragem Aniceto do Império consegue articular uma expressividade política do protagonista em que a força corpórea é uma das chaves parainterpretar as possibilidades de várias frentes de luta do protagonista. Nesse sentido, o discurso de Aniceto vai se constituindo não em uma representação ou simbologia, mas em um conhecimento que encontra fundamentos em novas formas de articulações políticas: aquelas em que são enunciadas nas vozes e nos territórios que historicamente são controlados e contestados.

Podemos pensar que há uma estética fundamentada em uma corporeidade elaborada pelo cineasta Zózimo Bulbul em que o mesmo consegue captar através da lente de sua câmera em Aniceto: em meio a um conjunto de interesses surgem subjetividades que são capazes de reinterpretar ideias, discursos e práticas de um movimento ou entidade. Nesse caso, o curta-metragem consegue ao mesmo tempo apresentar uma expressividade do sambista que não está escrita, não está registrada nos livros, mas na oralidade e na expressão corporal. Isso reconfigura os processos de enxergar a expressividade do sambista, as maneiras de contar sua trajetória de vida entre o samba e a luta sindical e como pensar em movimentos negros.

Aniceto narra sua história com muita propriedade e segurança. Gesticula, agradece levantando os braços e conta histórias. Recorda pessoas que foram importantes em sua vida e que o acolheram na comunidade de Madureira. De forma bem enfática, recorda o momento da greve, na luta por melhores condições de trabalho:

O Superintendente da administração do Porto do Rio de Janeiro ao tomar conhecimento das razões da paralisação achou viável uma reunião e nessa reunião aconteceu uma assembleia da classe da qual participou o Sr. Dr. Cegaldas Viana e na época era delegado do trabalho e achou viável, achou justa nossa reclamação. Foi estruturada uma comissão da qual eu fiz parte proposto por Oscar Rodrigues Vargas, um dos associados do sindicato. Fomos para o Ministério do trabalho e voltamos com a bandeira da vitória. Conseguimos reivindicações de até 400%. Ora, vejam bem como nós tínhamos razões de paralisar. Hoje, sou aposentado. Hoje, fico pensando o tanto e quanto sofri durante o tempo que na Resistência estive.

A fala acima é enunciada ao fundo enquanto os planos sucedem Aniceto ajudando os companheiros a carregar as sacas de alimentos. Em um segundo plano, o sambista caminha pelo porto demonstrando segurança e familiaridade com aquele espaço em que trabalhou por mais de três décadas. Caminhando, ora olha à esquerda em direção aos navios, ora continua olhando à frente. A relação entre a narração e as imagens de Aniceto, que ao final desses planos é captado pela câmera de costas em direção horizontal ao porto, apresenta uma perspectiva de continuidade das lutas e das reivindicações.

Em seguida, em um terceiro plano, a câmera capta Aniceto caminhando de frente, um pouco mais devagar, exatamente no momento em que narra “Hoje, sou aposentado. Hoje, fico pensando o tanto e quanto sofri durante o tempo que na Resistência estive”. Passa a mão à testa enxugando o suor provocado pelo dia quente. Parece que agora a luta continua, um pouco mais devagar devido à idade.

Entre o samba e a luta sindical, Aniceto vai construindo uma corporeidade na busca por reivindicações, por melhores condições e por reconhecimento sem se resignar. Fazer a greve era mais uma das formas de convocar os companheiros.  No curta-metragem, como é explicitado, esse protesto contra as opressões trabalhistas não era a única e nem a mais evidente. A greve era uma das formas de expressar as indignações que sempre estiveram juntas às populações negras após os processos abolicionistas.

Por isso entendemos que em meio às lutas, às opressões, às indignações, a corporeidade negra presente no filme Aniceto é posicionada junto ao ativismo político com o intuito de prevalecer um conhecimento eminentemente negro.  É por meio dessa estética da corporeidade que Aniceto enuncia vários movimentos negros. É preciso que o pensamento político ativista do ex-estivador e sambista seja compreendido pelas formas de expressividade que se demonstram na maneira como trabalha, como discursa ou como canta. Dessa forma, a politização de Aniceto articula o reconhecimento de uma memória dos povos negros, das formas de exploração, bem como das maneiras que durante séculos se negaram as culturas, impedindo assim que essas populações pudessem produzir novos conhecimentos com relação ao desenvolvimento de políticas diferenciadas das elites.

Essa escolha tanto de Bulbul dialoga com a fundamentação de Hanchard (2001) ao problematizar o movimento negro enquanto um terceiro caminho. Não dissociado das questões econômicas e sociais como defende Gonzales (1982), os problemas que afligem os negros historicamente são apresentados em Aniceto de forma ímpar quando os aspectos culturais são propulsores das decisões políticas.

Os aspectos culturais que fundamentam as trajetórias políticas do sambista e líder sindical Aniceto do Império não têm um fim em si mesmo. Primeiro porque Aniceto demonstra grande conhecimento dos espaços que foram elaborados por ele. Como demonstrado no início do filme, o sambista chama e convoca seus pares para junto a ele fazer a memória e pensar o presente. Nesse sentido, a fundação da escola de samba é o primeiro e um dos principais contingentes políticos para o reconhecimento de sua negritude. Assim, percebemos que no filme não há uma redução do político ao culturalismo, uma preocupação presente em grande parte da Literatura sociológica brasileira (GONZALES, 1982; DOMINGUES, 2007, HANCHARD, 2001).

Um segundo aspecto que se deve evidenciar no curta-metragem é que a cultura elaborada pelo samba de Aniceto fundamenta e dá continuidade a sua luta dentro do Sindicato dos armadores do Rio de Janeiro. O samba não deve ser entendido por inspiração, mas a força motriz na qual Aniceto elaborou greves e reivindicações por melhores condições de trabalho. Foi por meio do samba que ele pensa as condições do Negro hoje e no passado. Essa relação se efetiva principalmente por uma corporeidade em luta daqueles que em grande parte assumem os trabalhos manuais e que mesmo assim têm condições de construir uma perspectiva política estética. Esse diálogo entre política e estética negra analisado em Aniceto do Império recorda Ranciére (2011, p.95): “Há uma estética da política que redefine o que é visível, o que pode dizer-nos sobre o visível e quais os sujeitos que são capazes de fazer”.

E o último aspecto que a estética política de Aniceto nos direciona é fazer a memória dos povos negros. Assim é possível entender a reconstituição da própria História que apresenta diferentes formas de conceituar o caráter político e busca de soluções para alcançar melhores condições de vida. Aniceto nos mostra que o seu posicionamento político se efetiva quando primeiramente conhece suas origens que apresentam possibilidades de diálogos com os não-negros. Apesar das dificuldades impostas aos negros, o sambista soube através de sua expressividade não se submeter e ao mesmo tempo evidenciar caminhos próprios para alçar uma história política.

O curta-metragem Aniceto também instiga-nos a pensar de quais formas os posicionamentos políticos do sambista negociam existências com as elites. Apesar dessa questão não ser problematizada no curta, Aniceto mantinha diálogos com chefias tanto das Escolas de samba quanto com das Superintendências de Trabalho. Até que ponto podemos afirmar que houve conquistas significativas na vida tanto de Aniceto quanto de seus companheiros de agremiação e de trabalho?  Nos últimos planos do curta, Aniceto tenta responder a esse questionamento ao recordar a importância de seus antepassados:

Talvez por isso eu tenha tido oportunidade de compor seiscentas e tantas páginas, cinquenta e oito das quais sou inspirado nas origens da nossa geração, nas origens da minha geração por que não dizer assim? […] e espero alcançar o meu dia de alforria.

A liberdade ainda é anunciada como uma situação a ser alcançada. E entre conquistas e lutas, Aniceto fundamenta um caráter político em que os movimentos negros dos sindicatos e das escolas de samba articulam possibilidades de um pensamento político que se dá primeiramente pela reflexão. Esse ato analisado em Aniceto potencializa o seu posicionamento, pois não é de uma tomada de consciência. Suas fundamentações estéticas e poéticas não se subordinam aos interesses das elites, pois há claramente um desejo de enunciar suas origens e seus antepassados como aqueles que ajudaram a pensar a situação do negro inserido no desenvolvimento social e econômico do Rio de Janeiro.

Por isso, o curta-metragem demonstra essa necessidade do sambista em lembrar e cantar a África no aporte da conjuntura de seu pensamento político. Dessa forma, a estética política de Aniceto expressado por sua corporeidade reitera novas formas de pensar em Movimentos Negros. Como nos lembram Gonzales (1982) e Hanchard (2001), as africanidades são requisitadas não somente ao passado, mas também para articular diferentes formas de negociações entre os diferentes membros  do próprio movimento na luta por direitos e maior equidade social.


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Noel dos Santos. 2005. Cinema e representação social: O cinema negro de Zózimo Bulbul. Tese (Doutorado em Sociologia). FFLCH-USP. São Paulo.

De JEFFERSON e VIANNA, Biza. 2014. Zózimo Bulbul: uma alma carioca. Rio de Janeiro, Centro Afro Carioca de Cinema.

DOMINGUES, Petrônio. 2007. Movimento negro no Brasil: alguns apontamentos históricos. Tempo. v.12, n.23, pp 101-122.

HANCHARD, Michael. 2001. Orfeu e o poder: o Movimento Negro no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro: EdUERJ.

GONZALES, Lélia. 1982. O movimento negro na última década. In: GONZALES, Lélia & HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero

RANCIÉRE, Jacques. 2005.  A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Exo experimental Editora.

Tião

Clementino Junior, cineasta, professor de audiovisual, idealizador e criador do Cineclube Atlântico Negro é um dos nomes que desponta no cinema negro contemporâneo brasileiro. Sua relação com audiovisual vem de berço: ele é filho da atriz Chica Xavier e do ator Clementino Kelé. Mas foi do outro lado da câmera que se firmou na trajetória cinematográfica e já está em seu décimo-sexto filme dirigido.

Tião (2016), com argumento e roteiro de Jeferson Pedro, narra o retorno de São Sebastião à cidade do Rio de Janeiro, agora num corpo negro, interpretado por Hugo Germano. Ele ressurge na Glória, aos pés da estátua do santo e perambula pela cidade: pega o trem até Bonsucesso, passa pelo Complexo do Alemão, Santa Teresa, Sambódromo, Candelária, até retornar de onde veio.

Tião é um filme de rua que prioriza a relação espontânea de seus encontros. As cenas da Central do Brasil, com os passantes reagindo ao personagem, como o senhor que avisa “olha o crakudo aí!”, e a cena dos meninos dançando passinho enquanto um cavalo atravessa a cena funcionam muito bem. Tais encontros inesperados contrastam com o lugar encenado, principalmente quando há inserção do texto em off, que em alguns momentos quebra o ritmo do filme. A escolha sonora de alternar o som ambiente da rua com ruídos intempestivos que marcam o olhar do personagem sobre a cidade conferem um bom andamento à narrativa.

O trânsito do santo pela cidade acompanha a paisagem do subúrbio carioca, onde seu corpo enrijecido vai se soltando pela descoberta dos ritmos dos corpos dançantes. É assim que Tião vai ganhando corpo até aderir-se à rítmica ritual dos tambores e firmar-se no arco que tensiona a flecha de Oxóssi. O transe como lugar de viração e empoderamento de um corpo negro atrofiado pelas mazelas sociais. Mas a violência deixa invariavelmente suas marcas, como as três chagas que sangram em São Sebastião e se perpetuam nos jovens negros assassinados na Candelária.

Tião, com suas chagas, é a alegoria viva da situação de violência colonial do Rio de Janeiro. Tião pode ser qualquer jovem negro que circula pela cidade, passante distraído, ou morador de rua, ou mesmo o índio que flechou Estácio de Sá nas cercanias da Glória, onde justamente ressurge e desaparece o santo.

Corporeidades, ativismo político e movimentos negros: uma análise do filme “Aniceto do Império, em dia de alforria”, de Zózimo Bulbul (PARTE 1)

Michel Hanchard (2001) lembra que a partir da década de 1990, o Movimento Negro teve que repensar as maneiras de fazer política já que nesse momento se evidenciou uma série de interesses diversificados que compôs esse grupamento.  Algumas das diferentes demandas voltaram-se para as questões do feminismo negro, a visibilidade dos membros das religiões de Matrizes africanas e as diferentes formas estéticas em que o negro é representado na cultura brasileira.

Zózimo Bulbul foi um dos artistas negros brasileiros que contribui para pensar essa nova estética do negro por meio da cinematografia. O cineasta foi membro do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN) e participou ativamente do Movimento Negro logo após seu retorno do autoexílio da Europa. Carvalho (2006) afirma que diferentes participantes do Movimento Negro almejavam encontrar outras formas de enunciar a historicidade negra no Brasil. Para Carvalho (2006), Zózimo Bulbul é o principal diretor negro naquele momento em que o Movimento Negro se recontextualiza entre as décadas de 1970 e 1980.  É nesse momento que Aniceto do Império: em dia de Alforria? foi lançado . Nesse segundo curta-metragem produzido por Zózimo, o objetivo era relacionar “exemplarmente o que Bulbul e seus companheiros militantes buscavam: ativismo político, história do negro e identidade negra” (CARVALHO apud VIANNA e DE JEFFERSON, 2015, p. 43).

O ativismo político como pensado já pelo Movimento Negro desde a década de 1970 era compreender e problematizar de quais formas os diversificados grupamentos de combate ao racismo constituíam suas trajetórias por reivindicações de inserção social, principalmente no que tangia ao mercado de trabalho. No caso do curta-metragem, narrar a história de Aniceto era uma das formas de ressignificar as culturas negras no Rio de Janeiro nas vozes dos fundadores da Escola de Samba Império Serrano, mesclando a atuação do sambista como líder do sindicato dos estivadores.

A história dos negros em Aniceto do Império é elaborada pela musicalidade do sambista que se mescla à memória esquecida das grandes personalidades da agremiação de Madureira e do Morro da Serrinha.   Ao relembrar a história dos homens e mulheres, o sambista se posiciona a favor daqueles que contribuíram para que ele pudesse ter referências de lideranças. Com isso, Aniceto estabelece diálogos em que o protagonismo negro apresenta uma nova perspectiva em que a matriz branca não é o fio condutor dos espaços ocupados pelo sambista.

A proposta de Zózimo Bulbul é interessante a partir do momento em que o discurso do fundador da agremiação de Madureira cria uma série de resistências que se dão por meio de novos posicionamentos políticos em que há demandas da própria população negra.  Para a sociedade em geral, compor ou cantar um samba é uma simbologia da identidade nacional. Para Aniceto e seus companheiros, é um lamento para que não se esqueçam das opressões que ele e seus companheiros ainda sofriam. Se a liderança no Sindicato dos Estivadores do Rio de Janeiro é por melhores condições de trabalho, também Aniceto reivindicava por direitos para aqueles que historicamente não tiveram oportunidades no mercado formal.

Gonzales (1982) considera que o aumento da população urbana e suas relações com o capitalismo fez surgir o questionamento da exploração econômica. Aniceto estava inserido em dois espaços, tanto sindical quanto artístico, que era controlado pelos interesses das elites. Assim, o sambista pensa e reflete esses dois territórios como um espaço de poder em que apresenta reivindicações, mas ao mesmo tempo produz novos conhecimentos. O principal deles, captado pelas lentes da câmera de Bulbul, é o conhecimento que leva a existência dos povos negros por meio de suas composições. O samba é uma arte que na voz de Aniceto vira poesia a partir do momento que suas composições continuam refletir essa existência pelo trabalho.

Durante os dez minutos da produção de Zózimo Bulbul, Aniceto demonstra a capacidade de associar aspectos de seus ofícios de sambista e líder sindical dos estivadores a sua religiosidade fundamentada nas matrizes afro-brasileiras.  A referência às africanidades vem nos últimos tempos fundamentando grande parte das reivindicações das culturas negras. Hanchard (2001) recorda que a maioria dos grupamentos negros no Brasil voltou-se às origens das raízes africanas para sustentar as práticas políticas e culturais.

O pensamento de Bulbul é perpassado pela voz de Aniceto com o intuito de ampliar o debate racial e lembrar as dificuldades que na contemporaneidade as populações negras ainda sofrem. Essa ideia reitera que a classe social deixa de ser o único e primordial conceito de análise da sociologia brasileira nas problematizações acerca das desigualdades presentes em nossa conjuntura histórica.

Ao colocar em um primeiro campo de análise as demandas políticas das negritudes presentes em Aniceto do Império, o conceito de classe social muda sua ótica de observação, já que nos faz lembrar que mesmo dentro de um mesmo grupo econômico, as desigualdades continuam ser produzidas entre negros e não-negros. Ao problematizar a situação dos estivadores no porto do Rio de Janeiro, Aniceto reitera a perspectiva de Gonzales (1982, p. 16): “[…] a comunidade negra nada mais é do que mão de obra mais barata possível. Isto porque a comunidade negra nada mais é do que mão de obra de reserva, utilizável segundo as necessidades do sistema”.

Uma analítica do curta-metragem Aniceto do Império

Aniceto, famoso sambista da Escola de samba Império Serrano, sobe por uma pequena viela do morro da Serrinha, em passos lentos. Vestido com camisa branca e calça social bege com sandálias brancas.

A câmera caminha para a direita, lentamente, mostrando a parte de cima do morro da Serrinha o panorama do bairro de Madureira. Em um primeiro plano, algumas telhas de barro de casas cobertas por um matagal. Ao mesmo tempo, ouve-se a voz de Aniceto: “É verdade, aqui foi fundado o Império Serrano. O maior grêmio de Madureira que balançou a roseira

Enquanto a câmera continua sendo direcionada lentamente para a direita e apresentando os créditos em letras brancas, em primeiro plano aparecem crianças e adultos da comunidade da Serrinha, parados. Nesse momento, surge o nome do curta: Aniceto do Império em DIA DE ALFORRIA…?  O título à frente de algumas crianças e adultos questiona o espectador a pensar sobre se realmente houve uma liberdade para a população negra, deixando o espectador entreve as pessoas que ainda vivem em condições precárias no Morro da Serrinha.

A câmera sobe um pouco mais mostrando o espaço com muito mato e caminhando mais à direita e subindo, algumas crianças animadas diante da câmera. Em seguida, o espectador entende que a câmera completará uma volta à direita em 360 graus. Um segundo plano da câmera apresenta um panorama do morro, com um foco em alguns prédios do bairro de Madureira.

Se é possível ver que em 1981 os espaços captados do Morro da Serrinha pelas lentes do cineasta Zózimo Bulbul no início do curta-metragem eram repletos de vielas de chão batido, com mato e pedras, o cenário possibilitou ao sambista expressar seus sentimentos por aquele espaço. O sambista constrói esse território recordando pessoas com as quais estabeleceu amizades e relações que ultrapassam a vontade de fundar uma agremiação carnavalesca. Ele narra sobre os grandes feitos dos seus antepassados que permitiram olhar e admirar, mesmo em meio à pobreza, e se fazer ouvir e entender enquanto alguém que conhece aquele espaço.

A câmera continua em direção à direita e mostra uma casa de telhados coloniais, com as paredes externas brancas e janela verde. A fachada reitera as cores da agremiação do Império Serrano a quem Aniceto dedicou grande parte de sua vida.

Essa relação do presente com o passado também é visibilizado por Zózimo quando nesse momento em que aparece Aniceto falando sobre as primeiras amizades feitas no Morro da Serrinha aparece em letras brancas: “filme dedicado à ZUMBI dos Palmares e a todos os quilombolas mortos e vivos”. Podemos entender que nesse diálogo entre o protagonista do curta e o produtor onde muitas vozes se cruzam com o intuito de mostrar a luta de todas as expressividades negras.

As relações entre Zumbi dos Palmares e agremiação de Madureira na voz de Aniceto são, na perspectiva de Bulbul, essenciais para se entender que o reconhecimento do passado se faz ainda presente e continua a posicionar os negros em condições de luta.  Isso se justifica a referência à Zumbi não se trata apenas de uma homenagem. No cinema negro de Bulbul, a Serrinha é um quilombo contemporâneo. Isso modifica a lógica de concepção de uma escola de samba que é narrada simplesmente por um entretenimento cultural. Na voz do fundador da agremiação verde e branca, o cineasta nos faz pensar que apropriar-se de um espaço, reconhecê-lo e estabelecer discursos que em um primeiro momento traz referências e até exaltações pode condicionar para a luta de territórios construídos e pensados na perspectiva negra.

Hanchard (2001) acredita que desenvolver essa consciência entre a política e a cultura é importante na medida em que as hegemonias tiveram que “trabalhar para controlar” (WILLIANS apud HANCHARD, 2001, p. 119). Como também a Literatura sociológica brasileira nos recorda (GONZALES, 1982; DOMINGUES, 2007), durante a maior parte do século XX, as lutas de alguns grupamentos de negros e de negras estiveram associados aos interesses da elite, sejam esses mais de cunho político ou de cunho mais cultural. Em outros posicionamentos, “incluir os esforços e contribuições daqueles que estão de uma forma ou de outra no exterior ou na borda dos termos da hegemonia específica” (WILLIANS apud HANCHARD, 2001, p. 119) rompe com a ideia de uma cultura política na qual as comunidades negras estariam inseridas em um campo de estudo sociológico em que somente as problemáticas da nacionalidade dariam conta das celeumas sobre as questões raciais.

Dessa forma, aos três minutos e quarenta e nove segundos, o plano é composto por trabalhadores que estão em um galpão esperando para receber a diária de trabalho. Dentre eles surge Aniceto do meio dos outros operários e começa andar saindo do foco da câmera. A voz do sambista narra o início de sua atuação sindical.

Ele recorda que ingressou no cais do Porto por intermédio do Sindicato dos armadores. Anteriormente, era nomeado por Sindicato do comércio e armazenador do Rio de Janeiro e nome de origem “Resistência”. Aniceto explica a escolha desse nome: “Resistência por que as cargas eram transportadas sobre a cabeça. Nós não possuíamos carrinhos”. No início dessas recordações, Zózimo foca no trabalho de Aniceto que já não colocava mais as cargas sob a cabeça e sim em empilhadeiras. O sambista lembra que:

[…]  em razão disso nosso nome era sindicato da Resistência. Até 72 eu labutei. Iniciando, porém, em 1941. Ora, bem, o nosso sacrifício era demasiado […]. Transportávamos sacos sob cabeça pela insignificância de 200 réis. Eu reuni alguns colegas e paralisamos em greve.

As reivindicações de Aniceto e de seus companheiros são fundamentadas em uma primeira análise no sofrimento pelo qual passavam por não terem condições dignas de trabalho. E o trabalho exausto continua na perspectiva de Bulbul. Isso porque ainda naquela época alguns trabalhadores ainda carregavam as sacas até os carrinhos. Percebe-se nessa perspectiva que o movimento por melhores condições de trabalho ainda precisavam alcançar conquistas. Isso é demonstrado nas cenas em que Aniceto, apesar de aposentado, ajuda alguns companheiros a colocar as sacas nos carrinhos que as transportariam aos navios. Assim, apesar de Aniceto representar a própria resistência que deu nome ao sindicato, os sacrifícios por parte da comunidade de estivadores é contínuo. Ao mesmo tempo, essa ideia se contrapõe a força presente no sambista que a época tinha 68 anos e conseguia carregar uma pesada saca.

PARTE 2

Kemetiyu, Cheik Anta Diop

Kemetiyu – Cheik Anta Diop (2016)

“Na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”. A famosa frase do malinês Hampaté-Bâ, ainda que se refira aos saberes orais dos anciãos africanos, pode ser aplicada ao escritor multidimensional Cheik Anta Diop. Formado em áreas tão diversas quanto Física, Filosofia, Química, Linguística, História, Egiptologia, Economia, Sociologia e Antropologia, Diop tornou-se a principal referência dos saberes científicos e históricos afrocêntricos. A julgar por sua extensa e variada formação, a biblioteca que se queimou em sua morte é de proporções intangíveis. Mas de suas cinzas renasceu a principal universidade de Dakar, que hoje leva seu nome, assim como células multiplicadoras que imortalizaram seus saberes: os inúmeros livros que escreveu e que hoje circulam pelo mundo.

O diretor senegalês Ousmane William Mbaye soube acompanhar com perspicácia a multidimensionalidade desse pensador incansável, seguindo os rastros de seu legado e reconstruindo as lacunas de sua memória. Apesar de ser um nome conhecido no meio acadêmico africano e de africanistas, Diop é pouco lido e pouco lembrado. O fato de ser este o primeiro documentário que retrata o pensador, passados trinta anos de sua morte, é sintomático e revela aquilo que o diretor Mbaye faz questão de frisar ao longo do filme: Diop foi desqualificado tanto por acadêmicos europeus, cuja visão racista e eurocêntrica não lhe deu ouvidos, assim como pelos próprios estudantes africanos, presos em modelos marxistas de análise histórica.

Como se pode ver através de sua trajetória cinematográfica, Mbaye é um (re)construtor da memória de seu país, uma memória que precisa ser descolonizada, relembrada e reinventada. Desde de seu primeiro curta Doomi Ngacc (1979), que retrata o olhar e a revolta de uma criança do campo vendo seu pai ser explorado pelo sistema colonial, até seus últimos documentários Mère Bi (2008), sobre a trajetória militante de sua mãe, a jornalista Annette Mbaye d’Erneville, figura chave no movimento de independência e militância feminista do Senegal, e finalmente Président Dia (2012), sobre a trajetória do líder independentista Mamadou Dia.

Laurence Attali, montadora que esteve presente na sessão junto com o diretor Ousmane Mbaye, soube dar dinâmica a um filme que contém inúmeros materiais de arquivo. A trilha sonora jazzística, em diálogo com a presença do músico Randy Weston, amigo de Diop entrevistado no filme, confere um ritmo diaspórico que funciona bem. Transitando entre países africanos, França e Estados-Unidos, Kemetiyu, Cheik Anta Diop entrevista os principais pensadores, amigos e admiradores ilustres que conviveram com ele. O que mais cativa o espectador é sem dúvida ver e ouvir Diop falando: sua expressão viva e dinâmica traduz a intensidade de seu pensamento. Ainda que o filme deixe de lado o pensamento político do autor, é imprescindível para aqueles que buscam conhecer não apenas Cheik Anta Diop, mas o pensamento histórico e filosófico africano.

Assista o trailer de Kemitiyu de Ousamane William Mbaye

Eu preciso dessas palavras escritas

Dedos tentam afagar a luz. Palavras ressoam com gravidade e tornam-se matéria cerzida no tecido. No rosto, sentimos o vento que atravessa o canavial e balança as flanelas dos  barcos presos no cais. Por fim, sufocados, nós sofremos com o cativeiro. A palavra bordada deve ser vista, ouvida e tocada, tudo de uma só vez.  O filme  resgata está capacidade do nossos olhos e ouvidos de tocar o mundo, a sinestesia necessária  para que possamos experimentar a obra do bispo do rosário em toda sua potência.

O Encontro de Cinema Negro Zózimo Bubul, contou com uma série de biografias e homenagens a artistas e grandes personalidades negras. Nenhum até agora deu conta de fazer o que Eu preciso dessas palavras escritas fez. O filme não se preocupa em criar um mito em torno do homem, tampouco busca mostrar a verdade objetiva sobre sua sua biografia. O filme faz uma homenage ao artista como lhe é mais adequado, pela própria obra. É a própria arte de Bispo do Rosário que surge no filme em sua máxima potência.

Com os olhos e ouvidos sensibilizados, acompanhamos os elementos do universo artístico de Bispo do Rosário serem costurados pelo filme um a um. As palavras perdem a banalidade cotidiana, eles se tornam sagradas. E esta mesma sacralidade ela conferem ao manto na qual estão bordadas. O performer veste a obra com esse peso, que nada tem de loucura, é o peso da tradição da religiosidade popular, dos foliões e romeiros que admiramos nas cores vivas de suas casacas repletas de bordados. No sudário de Bispo do Rosário que a câmara circunda, o artista e sua senbilidade estão inscritos e pulsam com uma vitalidade sem par. Tudo graças ao olhar atento das cineastas Milena Manfredini e Raquel Fernandes