Corpo negro-africano no cinema de Glauber Rocha (parte 1)

 

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a.

Este trabalho se propõe ao exercício de compreender o caráter ambivalente da inserção do corpo negro e africano na produção estética de Glauber Rocha, sobretudo em dois de seus filmes que, em períodos e territórios distintos, lidam com a experiência direta de contato da câmera cinematográfica com a presença negro-africana. Os dois filmes em questão, Barravento (1962) e O leão de sete cabeças (1972), marcam dois momentos inaugurais de Glauber: o primeiro por se tratar de seu primeiro longa- metragem; o segundo por se tratar de sua primeira película produzida no exterior, após seu exílio diante do advento da ditadura militar no Brasil.

Exatamente dez anos separam um filme do outro. Não se trata de uma década qualquer: os anos 60 foram um período de grandes reviravoltas epistemológicas, culturais e políticas, a exemplo das filosofias pós-estruturalistas, das revoluções comportamentais de 68, das guerras de descolonização nos países afro-asiáticos e da bipolaridade política marcada, de um lado, pelas revoluções socialistas e, de outro, pelos golpes militares no terceiro-mundo, apoiados pelo capitalismo liberal estadunidense.

Um oceano distancia os dois filmes: entre o litoral da Bahia de todos os Santos e as terras recém-independentes da nação de Congo-Brazzavile estende-se a imensidão atlântica. O que pretendo demonstrar é que este oceano bravio, personagem do Barravento, é um agente fundamental para propiciar o elo direto da Bahia com a negritude da África recém-descolonizada do Leão de sete cabeças. Em ambos os filmes (ressaltando que Glauber foi o primeiro latino-americano a realizar um longa-metragem na África), o diretor estaria se inserindo na diáspora do Atlântico Negro1.(1)

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As reflexões aqui propostas visam compreender essa inserção intercontinental do diretor tendo em vista sua relação com a cultura negra e, mais especificamente, com o que chamaremos de caráter performático da corporeidade negra manifestada, sobretudo, através da música e dos rituais culturais e religiosos. Nesse sentido, formulo a hipótese de que as motivações estéticas do primeiro longa-metragem de Glauber – apesar de seu discurso denotar uma racionalidade de cunho marxista, crítica em relação ao que considerava então um caráter alienante da religiosidade afro-brasileira – já estão imersas numa compreensão particular da força plástica do universo corporal negro. Com isso, presumo ser possível pensar sua primeira obra fílmica enquanto um fenômeno de hibridação em que a questão da performance negra adquire um valor fundamental para a busca de uma linguagem cinematográfica própria. Tal visão, como procurarei demonstrar, ainda ambivalente em 1962, será retomada em seu primeiro filme internacional, realizado dez anos depois em território africano.

Retomando conceituação decisiva de alguns autores contemporâneos – fundamentalmente aqueles ligados aos chamados Estudos Culturais (Hall, Gilroy, Said) e pensadores latino-americanos que tratam o fenômeno da hibridação (Canclini) e do pensamento liminar (Mignolo) – procurarei situar as produções inaugurais de Glauber no Brasil e no exterior enquanto experiências diaspóricas, que devem ser compreendidas através dos sistemas circulatórios do Atlântico Negro, já que seu fazer artístico e sua obra podem ser visualizadas num espaço que abrange uma constelação híbrida de olhares e forças que têm na performatividade negro-africana uma motivação fundamental.

b.

No ano seguinte ao lançamento de seu primeiro longa-metragem, Barravento, Glauber publica A revisão crítica do Cinema Brasileiro (1963), uma coletânea de ensaios críticos sobre o Cinema nacional. Em capítulo no qual analisa a formação do ciclo do Cinema Baiano, ele escreve: “A Bahia é – na síntese – o barroco português, o misticismo erótico da África e a tragédia despojada dos sertões” (ROCHA, 2003,154).

O diretor constrói o cenário de sua formação local a partir de uma visão sintética de três forças culturais, cada qual associada a um gênero específico situado em um tempo remoto que remeteria a uma espécie de “passado originário”: portuguesa/barroco, africana/misticismo erótico, sertaneja/tragédia. Situando-se nessa confluência triangular, o cineasta constrói suas origens identitárias para pensar as características do cinema baiano. Interessa-me aqui ressaltar essa construção identitária, que será retomada em outros termos dez anos mais tarde na África, para apontar sua perspectiva transcultural. Ainda que imerso em uma visão de povo e nação que se fundamenta no discurso nacionalista formulado pelo ideal da mestiçagem, a exemplo da idéia freyriana da confluência das três raças, acredito que seja possível pensar sua formação cultural nas malhas de um pensamento liminar, como demonstrarei a seguir.

Começo ressaltando a idéia de nacional-popular que se segue ao trecho anterior, ainda na Revisão crítica do Cinema brasileiro. Referindo-se ao ciclo do Cinema baiano, Glauber declara:

“Em Barravento encontramos o início de um gênero, “o filme negro”: como Trigueirinho Netto em Bahia de Todos os Santos, desejei um filme de ruptura formal como objeto de um discurso crítico sobre a miséria dos pescadores negros e sua passividade mística”. (160)

Este trecho levanta ao menos três pontos. Primeiramente, Glauber situa seu filme Barravento no gênero do “filme negro”. Segundo, o filme atende ao desejo de “ruptura formal”. Terceiro, esse desejo liga-se à determinação crítica de condenar a miséria social da população negra rural e sua alienação, caracterizada pela “passividade mística”.

Ainda que imerso nas concepções de unidade nacional (através da mestiçagem) e de cultura popular “alienada”– já que a “passividade mística” à qual se refere remete à idéia da transformação social pela conscientização histórica das classes populares, a exemplo do que pretendiam as caravanas do CPC (Centro Popular de Cultura) do início dos anos 60 – Glauber incorpora a seu discurso outras perspectivas, pouco levantadas pelo discurso oficial da identidade nacional mestiça e pela visão classista e ideológica do CPC: a questão “negra” e o desejo vanguardista de “ruptura formal”.

Nesse sentido, é possível destacar um cenário ambíguo em que se configura um jogo de relações opostas e complementares:

1. Diante da triangulação mestiça “luso-afro-sertaneja” distingue-se a formação de um gênero cinematográfico inaugural: o “cinema negro”, de fundamentação étnico- racial.

2. Alia-se ao desejo de conscientização do povo negro, preso à “passividade mística”, o anseio vanguardista de ruptura estética e formal.

Assim, ao esmiuçar a análise crítica de Glauber sobre a formação do ciclo do cinema baiano, é possível notar as ambivalências de seu discurso: ora condena o negro à alienação de quem está preso ao pensamento místico, afastando-o da racionalidade implicada na visão de uma consciência histórica que levaria à revolução socialista; ora exalta a plasticidade da corporeidade negra, fonte de inspiração direta par a criação de uma “ruptura formal”, a exemplo das vanguardas artísticas.

Nessa perspectiva, vale refletir sobre o sentido que Glauber dá ao “misticismo erótico” do negro. Essa visão aparentemente depreciativa do “místico” traz também uma contrapartida erótica que remete diretamente ao sensualismo corporal, tão decantado pela literatura popular e a música dos baianos Jorge Amado e Dorival Caymmi, ao longo dos anos 40 e 50, contexto de formação do jovem Glauber. Se há um lado que rebaixa o negro à alienação mística e ao passado, há outro que o eleva à condição positiva da pulsão criativa pela mediação da sensitividade corporal.

Assista na íntegra: Barravento (1962), de Glauber Rocha

Notas:

(1) De acordo com Gilroy, o Atlântico Negro seria uma forma rizomática de se pensar a formação da cultura negra, associada aos fluxos do mar atlântico, mais do que à noção das raízes territoriais e nacionais.

Bibliografia:

GILROY, P. O Atlântico negro – modernidade e dupla consciência. SP: Ed. 34, 2001.

HALL, S. Da diáspora. BH, UFMG: 2003.

KOSELLECK, R. Futuro Passado – contribuição à semântica dos tempos históricos. RJ, Contraponto, 2006.

MIGNOLO, W. Histórias locais /Projetos globais – colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. BH: UFMG, 2003.

ROCHA, E. Rocha que voa. RJ, Aeroplano: 2002. ROCHA, G. Cartas ao mundo. SP, Cia das Letras: 1990.

SANSONE, L. Negritude sem etnicidade. Salvador, Edufba/Pallas, 2007.

SHOHAT, E., SLAM, R. Crítica da imagem eurocêntrica. SP, Cosac&Naify, 2006. XAVIER, I. Sertão Mar – Glauber Rocha e a estética da FOME. SP, Ed. Brasiliense, 1983.


*Texto publicado originalmente nos anais do XI Congresso Luso Afro brasileiro de Ciências Sociais.

Publicado por FICINE

O FICINE tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

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