Você ainda não ouviu falar de Sarah Maldoror (1938)? Pois bem, ela é uma das principais (e primeiras) cineastas de África e tem uma extensa obra ainda pouco conhecida no Brasil. Um dos seus principais filmes, Sambizanga (1972), retrata o papel da mulher durante a guerra civil de Angola onde a cineasta viveu durante anos. O roteiro do filme foi escrito com Mário Pinto de Andrade, poeta e militante contra o colonialismo português, autor de Primeiro Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (1953) e seu marido na época. Neste post, traduzimos o artigo de Beti Ellerson para o seu blogAfrican Women in Cinema, um dos principais canais do mundo a divulgar o trabalho de mulheres negras e africanas no cinema. Boa leitura!
“Eu tenho um papel cultural como cineasta. O que me interessa é pesquisar filmes sobre história africana, porque nossa história tem sido escrita por outros, não por nós. Portanto, se eu não me interesso pela minha própria história, quem vai se interessar? Eu acho que é necessário que a gente defenda nossa própria história, que a gente a faça conhecida – com todas as nossas qualidades e defeitos, nossas esperanças e desesperanças.” Sarah Maldoror (1)
Para Sarah Maldoror, Guadalupense de descendência africana, vista respeitosamente como a matriarca do cinema africano, filmar foi uma arma pela luta e liberação desde o início de suas experiências no cinema. Mas antes de embarcar na carreira de cineasta ela co-fundou o grupo Companhia de Arte Dramática de Griots em Paris no ano de 1956. Ela deixou a companhia, no início dos anos 1960, com uma bolsa de estudos para estudar cinema na União Soviética – lá ela conheceu Ousmane Sembene que também estava estudando cinema naquele momento. Depois de residir brevemente no Marrocos, em 1963, ela foi para a Argélia para trabalhar como assistente de Gillo Pontecorvo no clássico Batalha da Argélia, lançado em 1966. Seu filme de estreia Monangambee foi selecionado para a Quinzena de Realizadores em Cannes no ano de 1971. Em 1972, ela fez uma obra emblemática, Sambizanga, que relata a experiência de uma mulher durante a luta de liberação de Angola. O filme dividiu o prestigiado Prêmio Tanit d’Or no Festival de Cinema de Cartago no mesmo ano. (2)
Vinte e cinco anos depois, inspirada pelo filme Sambizanga, a togolesa Anne-Laure Folly Reimann foca sua câmera na experiência de mulheres na guerra de Angola no documentário Les Oubliées (As Esquecidas) de 1996. Em seu documentário de 1998, Sarah Maldoror ou a Nostalgia da Utopia, ela paga tributo a sua mentora, traçando sua vida e obra. Em 1997, Anne-Laure Folly Reimann homenageou Sarah Maldoror com estes comentários na conferência de imprensa da FESPACO para o filme Les Oubliées:
Sarah me inspirou a fazer esse filme. Ela fez um filme chamado Sambizanga, que em minha opinião é uma das obras primas do cinema africano. Quando eu o vi, eu quis fazer um filme sobre Angola. Ela abriu o caminho ao mostrar a guerra de libertação de Angola pela perspectiva da mulher. Meu filme não é revolucionário, ela já tinha feito isso antes. (3)
Precursora, pioneira, mentora, Sarah Maldoror continua a mostrar o caminho. Ela fez isso ao dizer numa entrevista com Jadot Sezirahiga: “Mulheres africanas devem estar em todo o lugar. Elas devem estar nas imagens, atrás da câmera, na sala de edição e envolvidas em todo o estágio de produção de um filme. Elas devem ser aquelas que falam sobre os seus problemas”. (4)
Este post é uma tradução autorizada de A Profile of Sarah Maldoror. Agradecemos à Beti Ellerson e ao African Women in Cinema Blog. (Tradução Janaína Damaceno).
As mais antigas representações da memória evocam uma capacidade que teria o corpo de guardar – em algum lugar sempre insondável – o acontecimento vivido e acessá-lo quando necessário. Por isto a memória sempre foi alegorizada por objetos que remetiam à noção de profundidade e obscuridade: arcas, baús, fundos de bibliotecas, caixas, dentre outros recônditos (DRAAISMA, 2005). A estas imagens foi sendo aderida, pouco a pouco, uma feição humanizada a partir de alegorias fisiológicas e mesmo afetivas. Como se vê em De memória et reminiscentia, para Aristóteles, a memória poderia se localizar em algum intervalo entre a pneuma (a alma) e o coração. Desta forma, a idéia da lembrança como tendo base afetiva se reforça na imagem do recordar, palavra que, na sua etimologia, traz a idéia de um retorno ao coração, ao cordis, re-cordis, portanto, seria um passar, de novo, pelas malhas das afetividades. Esta dimensão subjetiva da lembrança – na medida em que a afasta do gesto automático ou mecânico – adensa a fragilidade da garantia da supervivência dos guardados, ela denuncia o artifício do afeto enquanto mediador da emergência mnemônica e, desta forma, põe em suspenso a noção do lembrar como mero gesto, ele passa a engendrar uma interpretação de si, mais até do que os fatos ou acontecimentos.
A desconfiança que surge desta tomada de consciência se traduz na insegurança no livre e irrestrito acesso ao seu conteúdo – e, neste contexto, a própria noção da memória como um “de dentro” está em crise. A tradicional metáfora da memória como arquivo não deve deixar escapar a instabilidade destes que, como quaisquer outro, os “arquivos” da memória sofrem com a possibilidade de experimentar o seu mal maior que é a sua própria destruição (DERRIDA, 2001).
A desconfiança em relação à capacidade da memória de a tudo reter e de permitir, em qualquer tempo, acesso irrestrito ao seu conteúdo, se reforça quando Freud investe em pensar sobre este mecanismo em seus textos do Projeto para uma psicologia científica – 1895 e, mais tarde, no conhecido Notas sobre um bloco mágico:
A superfície do Bloco Mágico está limpa de escrita e mais uma vez capaz de receber impressões. No entanto, é fácil descobrir que o traço permanente do que foi escrito está retido sobre a própria prancha de cera e, sob luz apropriada, é legível. Assim, o Bloco fornece não apenas uma superfície receptiva, utilizável repetidas vezes como uma lousa, mas também traços permanentes do que foi escrito como um bloco comum de papel: ele soluciona o problema de combinar as duas funções dividindo-as entre duas partes ou sistemas componentes separados mas inter-relacionados. Essa é exatamente a maneira pela qual, segundo a hipótese que acabo de mencionar, nosso aparelho mental desempenha sua função perceptual. (FREUD, 1969)
A dinâmica fisiológica permanece e se reforça na medida em que ele irá se propor a analisar a questão a partir das noções de quantidade e qualidade de energia nas sinapses neuronais. Mas, para além da fisiologia dura do Projeto, o que nos interessa em Freud é a compreensão que ele nos oferece de que ninguém pode ser capaz de lembrar-se de tudo – uma vez que seria realmente uma inútil sobrecarga de informações – e também que esquecer faz parte da economia da memória. Algo que, ampliando o conceito, poderíamos chamar de economia subjetiva. A capacidade de esquecer é tão vital quanto a capacidade de lembrar. Em alguns casos, ela é determinante para a continuidade da vida.
O gesto de recordar, de puxar pela memória, ou mesmo de simplesmente narrar o que se tem de lembrança não é jamais apaziguado ou apaziguador. Nunca é apenas um gesto, é um jogo. Quando compreendemos o estatuto da relatividade das coisas, abre-se a noção de que os próprios conceitos de memória e lembrança estão submissos a uma fronteira mais tênue, todas estas ações psíquicas se vêem, na cena da psique, submetidas ao jogo da interpretação. Lembrar sempre é um investimento interpretativo, desta forma, é impossível repetir o acontecido, recuperar o élan da vivência. Toda repetição é uma repetição na diferença (DERRIDA, 2001), posto que se constrói a partir de um gesto de interpretação e, conseguintemente, de deslocamento subjetivo do narrado.
A narração, o inconsútil ato de contar, jamais se encerra em si, como um tecido pura superfície. Toda narração é uma dobra, a trama sempre estará retorcida sobre si, qual Narciso, espelhando-se na sua própria potência de vida e morte. E ainda mais, nenhuma narração é apenas o tecido, ela é antes o cruzar dos fios, a linha que, inconstante, se adensa e estreita entre as mãos, o eixo e a roda do tear.
Como todo tecido, o filme da congolesa Ibéa Atondi se ergue na dobra. Ele se propõe a contar a história que as pessoas contam. Num exercício inverso dos desarmadores de minas, o que se busca é unir os estilhaços, criar, nas grandes lacunas do pano rebentado da memória, uma narrativa. Mas logo vemos que o empreendimento resvalará na impossibilidade.Contos cruéis de Guerra (2002) desnuda em seu título a inviabilidade de simbolizar, não há metáforas.
2. A sublimação e interpretação: a retornada e os sobreviventes
A impossibilidade de simbolização está ligada a uma noção – ainda que essencialista – de trauma. Enquanto inscrição do traço mais forte que inviabiliza a possibilidade de negociação ou até mesmo de substituição por um outro a ele equivalente, o trauma é intransitivo, ele não negocia com o símbolo uma vez que simbolizar é ainda perlaborar, repensar, interpretar. O gesto de simbolizar a dor causada pela intensidade de uma vivência está ligada, por exemplo, à psique do sujeito em depressão, ele alegoriza no mundo (ainda que seja este um conjunto de desolamentos, e até mesmo pela sua negação em submeter-se ao ritmo de vivência dos demais) o impacto da dor que sobre ele se abateu. No entanto, a estrutura que se instala naquele momento, talvez até por conta da extrema proximidade entre a vivência da guerra civil e a narração no filme, é ainda a do impacto do corpo subjetivo que se viu submetido a uma força maior e contrária.
Penso que há a inscrição de uma marca biográfica no filme, e esta se faz não apenas na revelação o enlace amoroso com o Miliciano Mignon, mas, principalmente, e de maneira muito premente, no quase privilégio dado à fala das mulheres. Estas que sofreram violências inúmeras como o estupro, sevícias várias, o assassinato de seus filhos e maridos. A cena é ocupada por uma narrativa muito emergida de um feminino ante a desordenação da lógica de seu mundo. Em sendo o miliciano a figura coadunadora da pulsão destrutiva que atravessou o País nos anos da guerra, uma leitura pautada nas dicotomias poderia ver na ligação afetiva entre Ibéa e Mignon uma grande contradição. Mas este não é o operador de leitura aqui assumido. Interessa a nossa reflexão potencializar as ambivalências, mais que às ambigüidades. Assim, podemos compreender estas formas tão distintas de afeto: uma mulher que ouve mulheres vitimadas e, ao mesmo tempo, que se relaciona amorosamente com o potencial algoz destas como uma alegoria do que será toda a narrativa do filme. Ele se organiza a partir do não estabelecimento dicotômico de vítimas e algozes. Conforme veremos, Atondi não reconhece no povo congolês estas duas categorias e com isto não há um gesto de perdão geral e irrestrito, na verdade o que se vê no documentário é a tentativa de ler os fatos para além da malha do óbvio, encontrando as motivações que alimentaram a destruição e a violência como sendo forças que se corporificam nos milicianos, mas que, antes disto, engendra-se nas negociações efetuadas entre governantes em disputa pelo poder e pelas riquezas do país.
O filme reúne narrações dos sobreviventes da violenta guerra civil e do pós-guerra no Congo-Brazzaville e se sustenta entre duas modalidades de relato: a visão de uma “retornada”, vez que Atondi volta a sua terra natal após o fim do conflito e o “relato dos sobreviventes”. Ambas as perspectivas narrativas sustentam-se sobre uma lacuna: a primeira pela tentativa de representar o não vivenciado; a segunda pela necessidade de elaborar a vivência em representação discursiva.
A diretora volta ao seu País natal com o projeto de rodar um filme baseado em fatos reais, seguindo, em certa medida, a gramática estético-discursiva de alguns filmes norte-americanos. Seus planos envolviam a interação de atores profissionais com semi-profissionais – amadores dispostos a por algum pagamento, representar seu próprio papel, agora em personagens com nomes de filmes B hollywoodianos, como Kurts e Sneiper.
Um destes atores de ocasião foi o ex-miliciano Mignon contratado para representar o cotidiano das milícias, quando se depara com o texto imediatamente questiona os nomes americanizados dos personagens, pouco verossímeis para um país de colonização francesa. Sinaliza também uma grande dificuldade em compreender o roteiro, que pasteuriza as ações e diálogos. A questão é que o roteiro enlatado de Atondi findava por converter Mignon num simulacro dele mesmo e expõe – na impossibilidade da encenação, muitas vezes, provocada riso e ironia pelos próprios atores – a limitação da potência de leitura da diretora ante a compreensão que Mignon tinha de sua vivência na milícia.
No entanto, a partir de dado momento da construção do documentário, que se mostra metacrítico na medida em que franqueia ao espectador acesso a estas questões, compreendemos que o que poderia fazer desandar a narrativa converte-se numa força sua. A história se ergue, então, num espaço híbrido: entre a visão da retornada e do sobrevivente.
O lugar de fala de Ibea Atondi enquanto nativa retornada em nada a descredencia ou impede de oferecer a história que ela desejava contar um valor, já passamos da época do império da autoridade do relato (BENJAMIN, 1936). A lacuna provocada pela impossibilidade de vivenciar a guerra provoca outra possibilidade de interpretação do acontecimento.
Tomando como base de sua narrativa o desamparo diante do extremo da violência que um homem pode praticar contra outro homem, todo percurso da representação construída é pautada por este ponto cego. A fonte do desamparo que invade a voz quase incrédula da narradora do filme advém do abalo que os fatos ali retratados promovem na sua compreensão do estatuto da humanidade e de seus limites. Não há como equacionar, na dimensão subjetiva de quem se responsabiliza por contar a história, a amplitude da violência. O choque que rasga a narrativa deriva da noção de que a agressividade e a capacidade de ofender o outro em sua humanidade não se encontra nos detalhes, nos pequenos intervalos, em cenas incidentais e minimizáveis de dor e morte: a devastação promovida pelos assassinatos, estupros, torturas e as mais intensas formas de violação do limite do outro tomam a cena tanto na paisagem assolada pela destruição quanto na história fraturada que emerge dos sujeitos que precisam ser ouvidos. É também o impacto da violência que promoverá uma rasura fundamental em Contos Cruéis de Guerra, o assassinato de Julles Mignon convoca a narrativa a assumir uma postura diferente e, desta forma, o filme abandonará seu cunho centrado no discurso ficcional e mergulhará na busca de inúmeras vozes que possam narrar guerra civil no Congo Brazaville.
3. O limite estatuto de humanidade
A noção de direitos humanos deveras conhecida e instituída enquanto princípio básico de convivência entre iguais, deixa escapar de sua ação o que fazer da humanidade quanto o outro é pensado não apenas como diferente, mas como indigno ou incapaz de gerenciar a sua dimensão humana.
A história, e inclusive é dela que nasce a necessidade de pensar em direitos inalienáveis do ser humano, é capaz de nos apresentar inúmeros momentos em que a humanidade – enquanto possibilidade de reconhecimento do outro como um sujeito de direitos – foi arbitrariamente negada a classes de homens e mulheres, a exemplo dos africanos escravizados, dos judeus e, mais contemporaneamente, das mulheres, doentes mentais, velhos, negros e africanos. É nesta questão, naquilo que se convencionou chamar de dignidade humana que estes sujeitos são atingidos. Nenhum deles parece, para uma determinada parcela de indivíduos, sujeitos capazes de viver, no sentido de gerenciar a sua vida, suas vontades e suas relações com o mundo e demais sujeitos.
Ao franquear à Pascal Lissouba e Denis Sassou-Nguesso a liberdade irrestrita de luta pelo governo, não apenas através do gesto permissivo da cegueira voluntária à violência instalada no País, mas, principalmente, pelo incremento financeiro da disputa, os governos dos Estados Unidos e da França subverteram a Declaração Universal dos Direitos humanos (1948). Não há aqui um gesto de esvaziamento das responsabilidades dos líderes africanos diante da guerra, mas esta responsabilização sobre as inúmeras mortes e sobre o trauma que esfacelou o Congo-Brazzaville precisa ser, no mínimo, compartilhada.
As várias narrativas recolhidas no filme de Atondi não buscam unificar estes sofrimentos num discurso geral, desfeito de diferenças. Pelo contrário, a busca é de bem dimensionar os sofrimentos e, para tanto, respeitar a medida subjetiva de cada uma das histórias contadas potencializa e pluraliza a visão do espectador sobre o acontecido e imediatamente nos conduz à compreensão de que em uma guerra jamais haverá uma única história, mas travessias na qual a marca de cada um é instaurada como sendo a inscrição de um sujeito em sofrimento.
Assim, o tecido que se trama é amplo, irregular, tem matizes fortes de diferenças que se articulam nas falas as pessoas que narram suas histórias de maneira absolutamente rizomática. A violência dos confrontos não é sentida igualmente nem tem o mesmo impacto para todos os sujeitos envolvidos. Diferentemente da metodologia da construção da história oficial, a narrativa fílmica busca os intervalos desta para se efetivar, desprezando a noção de verdade unívoca e repensando a idéia de vilania, a história se pluraliza abarcando uma série de narrativas comumente pensadas como desimportantes ou menores.
Neste senti, Atondi constrói seu filme na lógica do rizoma, esta renega a ordenação homogeneizadora e causalítica que, necessariamente, exclui as outras versões potenciais do fato em favor de uma versão privilegiada. Assim, no filme configura-se uma lógica de ordenação das falas a partir da emergência dos afetos, não de um pretenso querer dizer desfeito de traços mais evidentes de subjetividade, a história contada por Atondi prima pelo caráter rizomático, ou seja, não-originário. Opondo-se à lógica arbórea em que se ordenam os fatos em rotas lineares, o rizoma adota como sua norma de funcionamento a deriva:
Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas; a toca, neste sentido, é um rizoma animal, e comporta às vezes uma nítida distinção entre linha de fuga como corredor de deslocamento e os estratos de reserva ou de habitação. Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre “ao mesmo”. Um mapa é uma questão de performance. (DELEUZE e GUATARRI,1995)
As múltiplas vozes que ali se erguem não se equacionam hierarquicamente, não buscam nem ao menos contar a mesma história, uma vez que importa mais a travessia singular de cada sujeito durante aquilo que podemos chamar de crise de humanidade que se deu naquele contexto. Esta crise pode ser entendida a partir da noção da ruptura não do limite entre humano e animal, mas, de uma maneira ainda mais desconcertante, um rompimento dos limites entre o humano e o não-humano. Ou, indo mais longe, um questionamento da própria fronteira da humanidade. Ao mostrar o que “um homem pode fazer a outro homem” Atondi conclama a reflexão para a dimensão hiperbólica da ofensa trocada entre pretensos iguais. Ampliando o conceito, podemos pensar que são iguais: negros, africanos, congoleses que se digladiam até a morte, que findam por se comportar como autômatos numa guerra que tem motivadores que ultrapassam em muito a cena na qual joga o sangue, indo para muito além de onde possa ouvir-se qualquer grito ou pedido de socorro. A guerra se engendra, limpa de sangue e substância humana, em papéis, assinaturas e reuniões entre países de primeiro mundo, simplesmente, em outro continente.
4. Gestos de colonização pós-moderna: A dor do outro enquanto virtualidade
No final dos anos 90 inicia-se o processo eleitoral no Congo-Brazaville, na disputa, estão Pascal Lissouba e Denis Sassou-Nguesso, e o clima não é ameno. No entanto a tensão se reforça quando, em 5 de julho de 1997, os milicianos de ambos os candidatos entram em choque e inicia-se um conflito que, durante meses, instaurou um regime de violência desenfreada no País. Patrocinados pelos governos norte-americano e francês mediados por suas respectivas indústrias petrolíferas, Lissouba, “dono” da milícia dos Cocóias e Sassou-Nguesso atual presidente do Congo-Brazzaville e chefe dos “Cobras” dividiram o país e áreas instransponíveis, impediram a livre circulação da população e promoveram uma matança absurda de civis.
Derrotado, Lissouba é expulso do país e Nguesso passa a confrontar-se com Bernard Kolelas, prefeito da capital, Brazzaville, e dono da milícia dos “Ninja”. Saindo-se mais uma vez vencedor dos combates, Nguesso chega à presidência caminhando sobre os escombros de um Congo-Brazzaville desolado, deixando como marca de sua caminhada, um rastro funesto de 10.000 mortos e 800.000 desaparecidos, números que aumentaram para 25.000 mortos quando, ao fim do conflito, em lugar de pagar a seus milicianos o presidente, ofereceu, como recompensa a estes, dois dias de livre pilhagem nos bairros da capital.
Esta é a história que Contos cruéis de guerra precisa narrar e ao optar por trilhar um caminho híbrido o documentário cresce. A visão de Ibéa Atondi, jovem, mulher, cineasta e retornada oferece ao filme um corte: ela é, de alguma forma, estrangeira. O fato de estar fora do país durante os conflitos oferece a ela uma potência de leitura daquele que não passou pela experiência traumática. Desloca-se, então, a crença benjaminiana de que a derrocada da grande narrativa está no desprestígio da experiência, no desinteresse pela vivência. Em alguns momentos esta será a única via possível de narração, assim como o esquecimento pode ser a mais importante estratégia de manutenção da vida. Ao mesmo tempo, sentimos no documentário que não interessa a Atondi a “grande narrativa”, em lugar disso, ela busca os estilhaços. Ela caminha pelas vilas ouvindo pessoas atingidas pelo conflito, à narrativa que ali se erige interessa o miúdo, aquilo que se perderia. Nesta medida, a tessitura do documentário é intensamente polifônica, não apenas num sentido limitado de serem várias as pessoas que relatam as suas histórias, mas, principalmente, por termos acesso a inúmeras interpretações de travessias pessoais, subjetivas e da travessia coletiva, de como o país vivenciou o seu inferno.
Atondi opera, ao democratizar o lugar de fala (às vezes de maneira até desconfortável, vez que os depoimentos são expostos a interrupções e intromissões dos ouvintes), aquilo que Walter Benjamin chamou de leitura a contrapelo (BENJAMIN, 1994). A imagem surge da comparação da escovação da crina de um cavalo às avessas, retirando os pelos de sua linearidade e homogeneidade e fazendo vir à tona as sujeiras mínimas, a poeira, desrecalcando aquilo que foi silenciado. Ao centrar a narrativa no plural, nas várias vozes, o filme coloca numa mesma cena narrativa, numa mesma camada de discurso, mas também de sofrimentos, as vítimas e seus algozes mais diretos. Assim, os ex-milicianos relatam as suas memórias dolorosas em cortes de cena que os conecta diretamente com a população vitimada. A beleza disto está no naquilo que podemos chamar de desierarquização da dor. Ao não valorar diferentemente a vivência dos milicianos e dos demais sujeitos, Atondi nos chama a atenção para a condição irrestrita de vítimas a qual estavam todos submetidos.
A historiografia tradicional tende, conforme afirma Michel Foucault (1979), a estabelecer linhagens, relações de causalidade, homogeneidades, origens e linearidades, abandonam novidade e a dissensão que o acontecimento pode produzir, silenciando a sua potência discursiva, em favor dos grandes cortes e grandes períodos históricos. Sua capacidade de coadunar, sob uma mesma rubrica unificadora, fatos absolutamente díspares e descontinuados tem a força de desmobilizar o acontecimento em sua capacidade de promover o desequilíbrio e potencializar o abalo de lugares estabalecidos de poder/saber. A força fundante de qualquer narrativa histórica oficial é a poderosa construção da ilusão de uma origem como sendo uma produção tão espontânea quanto necessária. Pensada como absolutamente natural, esta origem insemina na malha histórica lugares de poder que se encerram em si, numa lógica de fechamento e rechaçamento da diferença. Ao inscreverem-se e marcarem-se os espaços arquetípicos e limitadores de outras representações provocam, pela própria rigidez de sua existência, o seu negativo.
A lacuna surge enquanto demanda de fala, ou seja, o filme de Atondi oferece a possibilidade de subverter o discurso oficial com a constatação de outra versão sobre a história. Em lugar de representar-se no seu filme, a fala da congolesa, agora estrangeira, ou a visão dos massmedia, dos políticos envolvidos ou dos antropólogos, historiadores e estudiosos em geral, o que se destaca na cena discursiva do filme é o lugar dado ao sofrimento individual, à fala do sujeito, buscando oferecer, através de um microfone e uma câmera, a possibilidade de fazer-se ouvir em todo o mundo. E esta é a grande riqueza do filme.
5. Na dimensão dos afetos: nenhuma narrativa é autônoma
Mas Contos Cruéis de Guerra toma este direcionamento apenas após a violenta morte de Mignon. O miliciano é pego em emboscada e torturado por quatro dias antes de ser assassinado. Uma reflexão de Atondi salta da narrativa com o peso de uma tomada de consciência ante os horrores da guerra conforme contada por Mignon quando a cineasta constata: “E o que me espantava é que eu sabia que ele falava a verdade”. Poderíamos embasar toda a nossa interpretação do texto fílmico a partir daí, cada um daqueles sujeitos conta a sua verdade. Podemos imaginar que, após a morte dele, o que resta à diretora é recolher as outras verdades silenciadas e, neste investimento, constrói-se o documentário.
Assim, Atondi faz, no retorno à sua terra natal, uma travessia, buscando devassar a narrativa dos sobreviventes, a fim de encontrar, ali, entre agredidos e agressores, os restos das subjetividades e da humanidade que foram soterradas pelos escombros da violência. A beleza do filme, posto que a obra de arte tem a perversão de retirar a sua leveza da pesada realidade, talvez resida justamente nesta peregrinação subjetiva de Ibéa Atondi que, não por acaso, representa uma travessia do povo de Congo-Brazzaville em busca da reconfiguração de sua identidade.
Freud nos ofereceu, como caminho para a cura das feridas indeléveis da alma, a palavra. Tornar audíveis as vozes destes sujeitos oprimidos pelo horror e pelo trauma, Atondi faz uma espécie de clínica e presta socorro a pessoas que convivem com os fantasmas da guerra. Eles caminham pelas casas de paredes arrombadas pelos tiros, residem nos corpos marcados pela violência, e estão diante daquele que carrega o olhar de quem viveu entre os mortos e que precisa, de alguma maneira, saber-se vivo, mesmo que pelo relato de sua difícil sobrevivência.
A diretora do documentário ocupa o lugar de uma narradora descentrada (DERRIDA,2002) que, pela pluralidade dos relatos, acaba muito mais ocupando o lugar de cerzideira das falas, de mediadora de melancolias.
O envolvimento amoroso com Jules Atondi Ikassis, o Mignon, oferece a ela a possibilidade de não apenas filmar um documentário sobre a guerra, mas, também, de penetrar em ínfima parte de um universo que não era o seu: o dos milicianos.
A narrativa dos milicianos, certamente por conta da posição ocupada por eles no conflito, é das mais difíceis de ser aceita e compreendida pelo espectador. Agindo como teleguiados pelos seus líderes, os milicianos tinham como constante companheira a droga que está presente tudo o tempo não apenas nas suas ações durante os confrontos, mas também o momento mesmo da narração diante das câmeras. O entorpecente sempre aparecerá como mediador do gesto de contar, seja ele o álcool, a maconha ou a heroína. O próprio Mignon era um miliciano toxicômano. Muitos destes indivíduos que participaram das milícias se utilizavam e se viciaram em psicotrópicos a fim de, talvez, conviver com o trauma da morte e sofrimento que eles não apenas promoviam, mas representavam. A consciência embotada, esmaecida sob a força do entorpecente, evita que o sujeito pense na sua própria humanidade e dilua a força destruidora dos seus gestos nas drogas, que burlam a mente e oferecem às ações ares de filmes de TV.
A lógica das milícias solicita destes sujeitos um afastamento tal que, ao entrar na milícia muitos forjam uma identidade, um alter ego violento no qual a crueldade e a capacidade de matar se adicionam a um novo nome e ao entorpecente, a fim de criar este outro sujeito, personagem de si mesmo, que será ou um “cobra” ou um “ninja”.
Ao dedicar o filme a Mignon Árabe, codinome utilizado Jules Atondi Ikassis, Ibéa Atondi – que porta o sobrenome de Jules – busca nos mostrar a humanidade que ainda restava sob a máscara do miliciano. Podemos acreditar que, neste investimento de revelar esta humanidade, investimento este mediado, certamente, pelo enlace amoroso que uniu o miliciano e a diretora do filme, Atondi finda por deixar escapar um grave problema de seu filme. A saber, a excessiva subjetividade, da qual não escapa nenhuma narrativa, apesar de dar, a esta em específico, o valor de construir-se ouvindo as histórias contadas por vários sobreviventes, ludibriou a sua mão no momento de colocar na balança a fala de vítimas e algozes.
Mas outra interpretação, não apenas mais potente, mas a escolhida para guiar a reflexão aqui proposta, é que em Contos cruéis de guerra os algozes não estão presentes, apenas as vítimas.
Os verdadeiros algozes são os governos dos Estados Unidos da América e da França, que alimentaram, com cifras milionárias, os confrontos. Os algozes são também o FMI e a União Européia, que após o anúncio do presidente Nguesso da adesão do Congo-Brazzaville à iniciativa de transparência para as indústrias de exportação com o objetivo de favorecer a “reestruturação da economia, promoção da transparência e do bom governo”, retiraram todas as sanções sobre o País.
O algoz foi Jacques Chirac, presidente da França, que, em 1997,recebe o presidente Sassou-Nguesso para parabenizá-lo pela bela “eleição”. Quando finalmente descobrimos que, conforme o próprio FMI, entre 1999 e 2002, desapareceram US$ 248 milhões da venda de petróleo e outros US$ 150 milhões por motivos governamentais, quando ficamos sabendo que Denis Sassou-Nguesso é um dos homens mais ricos da África, enquanto 70% dos 3,5 milhões de congoleses de Brazzaville vivem abaixo da linha de pobreza, tendo uma expectativa de vida de apenas 50 anos e o Congo-Brazzaville, o país mais endividado do mundo, compreendemos perfeitamente quem são os algozes.
Referências
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BIRMAN, Joel. Entre o cuidado e o saber de si: sobre Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
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DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. Trad. Aurélio Neto e Celia Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2002. Col. Debates.
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FREUD, Sigmund. Uma nota sobre o bloco mágico – 1950. Vol.XIX In:______. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1969.
KEHL, Maria Rita. O Tempo e o Cão. A Atualidade das Depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.
“Brinquedo de nego forro fugido é abrir roda para mostrar que tudo é caça e caçador”. A frase define muito bem a complexidade da formação e posição social do negro brasileiro, evidenciado na manifestação cultural Nego Fugido, do distrito de Santo Amaro, região do recôncavo baiano. Essa manifestação é inscrita na imagem fílmica do curta-metragem baiano Nego Fugido (2009), de Cláudio Marques e Marília Hughes.
O curta-metragem põe em questão duas posições: a do objeto filmado e a do sujeito que filma. Inicialmente, o casal entra no campo da imagem, a mulher se aproxima e ajusta a câmera, volta para a posição e, então, começam a tocar e cantar, revelando-nos o principal intermediário que nos conecta com a realidade filmada, a câmera.
Mas, o casal que detêm esse aparato e o utilizará para registrar a manifestação cultural “previsivelmente” coloca os sujeitos da manifestação como o “outro”, desconhecido e espetacularizado. Quando o representante do Capitão do Mato, personagem da encenação, interroga a mulher que filma, desestabilizando-a, esse “outro” desconhecido retira-os do espaço da invisibilidade atrás da câmera, rompe com a fronteira do previsível e os expõe, inserindo-os no jogo.
O homem branco entra no jogo da relação com o “outro”, porém, mesmo obtendo os signos de pertencimento daquele “jogo”, pintando a sua pele de preto e passando a pedir esmolas para sua alforria, a sua posição de não pertencente àquela realidade e de ser estrangeiro é evidenciada. Nas falas da comunidade ouviremos: “que escravo braquelo”, “tá doente esse nego”. Logo depois, veremos na imagem emblemática do casal silencioso na margem do rio o homem lavando o rosto.
O curta visivelmente problematiza as posições e se coloca na reflexão de como compreender uma realidade a qual não se pertence, o que nos obriga a rever nosso processo histórico. Suscita questões sobre a complexidade de uma população que toca atabaque e reza ave-maria. Que manifestação é essa que faz questão de relembrar os resquícios escravocratas, que a história oficial e a memória nacional anulam? Questões como essas hoje reverberam em sermos o negro forro e o fugido.
(Este texto foi realizado para a disciplina Crítica Cinematográfica, ministrada pela Professora Cyntia Nogueira, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na cidade de Cachoeira)
Assista “Nego Fugido“:
*Larissa Andrade é realizadora do TELA PRETA, movimento de cinema negro que produz obras com a temática racial com diversas perspectivas. Graduanda do curso de Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – Cachoeira/BA. Atuou como bolsista do Projeto de Extensão : Cineclube Mário Gusmão no campo de formação de platéia e circulação (2012-2013) , no qual realizou a Curadoria da Mostra (5x) Cinema Negro , em homenagem ao cineasta Zózimo Bulbul. Participou do Projeto videoclipe do Recôncavo , dirigindo o videoclipe Axé (2012) do grupo de rap Conceito Articulado, o qual recebeu Mensão Honrosa do videoclipe no 3º FestClip – São Paulo/ SP. Atualmente dirige o documentário Lápis de Cor , projeto contemplado pela I Chamada de Curtas Universitários do Canal Futura.
DIAWARA, Manthia. African Film. New Forms of Aesthetics and Politics. Prest Verlag. Munich – Berlin – London – New York, Haus der Kulteren der Welt. 2010. 319.p.
“Era um outro país, cujos gestos excitantes Eu conhecia mas não conseguia relacionar com minha mente, Como a amnésia de minha mãe; respostas intraduzíveis Acompanhavam estes espíritos reais Que tinham me esquecido assim como eu, também, Esquecera um continente nas ruas estreitas”. Derek Walcott, Omeros, 1990 (tradução Paulo Vizioli).
Escrito como um fascinante, pessoal e reflexivo diário de viagem, o volume de muitas entradas e formato híbrido de Manthia Diawara nos arrebata a uma consideração permeada de humor e densidade sobre o novo cinema africano, a partir da memória e da experiência criticamente recontada.
Diawara nasceu em Bamako no Mali, costa ocidental da África, e desde 1992 é professor de cinema e literatura comparada na New York University, onde criou o Departamento de Africana Studies , e onde dirige atualmente o “Institute of African American Affairs”. É autor consagrado de dezenas de artigos e livros, além de realizador de filmes premiados, a exemplo de “One World in Relation”, uma conversação com poeta e pensador martinicano Edouard Glissant. Diawara também é curador internacional de mostras de filmes africanos e um intelectual crítico transnacional da diáspora africana.
A referência a sua biografia é importante não apenas para apresentá-lo melhor ao leitor brasileiro, uma vez que permanece relativamente pouco lido no Brasil, mas para situá-lo, não apenas como especialista em cinema africano, mas como um pensador da África e da diáspora.
O livro reúne material diversificado e abundante, e, como disse, está estruturado a partir do ponto de vista de seu autor, que movendo-se entre culturas “viajantes”[2] , pode, em meio a observações aparentemente triviais, sobre as vaidades contingentes e indiferentes “diehards” ao redor da piscina do Hôtel Indépendance em Ouagadougou, durante o FESPACO (Festival Panafricain du Cinéma et de la Télévision de Ouagadougou), estabelecer uma perspectiva cosmopolita. Escrito a partir do trabalho de curatoria que o autor realizou para a Haus der Kulteren der Welt, em Berlin, durante o festival African Screens em 2008, o livro reúne um conjunto de ensaios sofisticados, reflexões críticas e memórias dos deslocamentos entre Berlim, Ouagadougou, Lagos e Nova York; além de depoimentos de importantes diretores africanos, como Balufu Bakupa-Kaninda, Mama Keïta, Zola Maseko e outros. Contém, ademais, 32 perfis filmográficos daqueles considerados os mais representativos diretores africanos do Novo Cinema. Por fim, nos presenteia com um DVD – “Filmmakers in Conversation” – com entrevistas de Abderrahmane Sissako, Souleymane Cissé, Jean-Pierre Bekolo, Idrissa Ouédraogo e outros tantos. Rica e belamente ilustrado, o volume nos lança no vórtice abundante da imaginação complexa que os realizadores discutidos representam.
O volume está organizado em três seções, e a matriz dessa publicação é assim híbrida, compósita e aberta. Na primeira sessão, African Film New Forms of Aesthetics and Politics, Diawara desenvolve com sublime elegância sua visão sobre o novo cinema africano e suas tendências e impasses políticos e estéticos, discutindo, sempre a partir de uma entrada viajante, a “Arte Wave”, o “tarzanismo” bem-intencionado de europeus e norte-americanos, o papel de Leopold Senghor e Sekou Touré na formação de uma sensibilidade crítica africana, a indústria de filmes populares de Nollywood na Nigéria. Na segunda sessão, “Visions of New African Cinema”, encontramos transcrições das mesas redondas com realizadores africanos em Berlim. E na última, “Filmographies”, resumos biográficos e filmografias dos 32 artistas, já referidos.
O autor busca sustentar, nas páginas multicoloridas desse livro, que, em meio a determinadas contradições e por sobre as representações e condições objetivas de produção, os cineastas africanos são os “bards” da atualidade africana, buscando formas criticas de repensar questões como a imigração, o meio ambiente, a corrupção, crises econômicas, etc. E de uma perspectiva africana, de tal modo que seriam capazes de propor “alternative aesthetics to Euro-liberal, humanist and stereotypical representations in Africa”. (p.74).
Fiel ao próprio estilo, plasmado anteriormente em livros como “In Search of Africa” (1998), Diawara nos conta uma pequena fábula sobre os impasses da representação “euro-liberal”, ocorrida após a exibição do filme “Clouds Over Conakry” de Cheik Fantamadi Camara para uma audiência de estudantes em um campus do meio-oeste norte-americano. Camara pertence a chamada “New Wave” do Cinema Africano, comprometida em “celebrate pan-africanism and privilege the position of the Africans spectators”. Ora, após a exibição do filme “a blond studant” levantou-se e fez a seguinte pergunta:
“I am a young and progressive person. I want to help Africa. I want to go there and sensitize people about HIV/AIDS and corruption. What advice can you give me?”
O autor nos conta que após pesar bem as palavras, afinal estava no meio-oeste, respondeu que o melhor que ela poderia fazer pela África seria usar seus dons para convencer seus colegas e amigos na America a pressionar os seus governos, e outras pessoas influentes, a não apoiar dinastias autoritárias em África, e sim políticos progressistas, deveria também, denunciar líderes evangélicos que demonizam o aborto e o uso de camisinhas em África (e que pregam o ódio homofóbico, eu poderia acrescentar)[3]. Assim como deveria questionar os baixos preços das mercadorias compradas de África e exigir mais transparência para as instituições financeiras internacionais.
Na verdade, a garota loira não está sozinha em suas preocupações, muitos ocidentais consideram que a solução dos problemas de África está no envio de pessoas bem intencionadas e dispostas a ajudar, lutando contra a ignorância, a doença, a corrupção. Assim, muitos governos, instituições e ONGs seguem esse modelo de “tarzanismo” humanitário[4].
Tal modelo é coerente com o bombardeio de filmes “afro-pessimistas” por Hollywood[5], e o autor cita “Blood Diamonds” (2006) e o “The Last King of Scotland” (2006), como contrafaces sombrias do tarzanismo, criadores espectrais de uma demanda pela salvação branca. Ambos os filmes estão solidários à tradição, se não inaugurada, ao menos consolidada, em “Heart of Darkness” de Joseph Conrad[6] (depois adaptado como “Apocalipse Now” [1979]por Francis Ford Coppola). O “Heart of Darkness” e outros livros, filmes e objetos de cultura, dizem mais, insiste Diawara, sobre o ocidente, suas aspirações e paranóias, do que sobre África: “The Last king of Scotland is less about Africa and more about the projections onto Africa of Europe’s sexual fantasies and the revolt against the Law of the father” (78). Por fim, o autor percebeu, após refletir bastante, que deveria ter respondido à jovem progressista que já há muitas organizações não governamentais em África, e que ele não sentiria confortável em despachar outra Jane ou Tarzan desorientada para lá.
Discutindo explicitamente a “Arte Wave” – como ele faz também com Nollywood e outros correntes de cinema africano – Manthia Diawara explora com densidade as nuances da obra de Abderrahmane Sissako, notadamente o “La vie Sur Terre” (1998). A leitura política do filme estabelece uma meditação sobre o colonialismo e a injusta divisão de riqueza e tecnologia entre o Norte e o Sul, mas essa seria uma visão, no mínimo, limitada sobre a obra que idealiza, de um lado, a nostalgia de um passado mítico estetizado, e de outro, “the things as they are” (p. 105).
Assim, a dimensão estética colocaria a política em cheque nesse caso[7]. Em “Bamako”, (2006) outro filme de Sissako discutido, o diretor parece procurar se redimir das acusações de despolitização, em uma linguagem que para Diawara relembra Jean-Luc Godard em “Tout va Bien”, um filme no qual Godard busca a linguagem adequada para retratar a crise ideológica e os conflitos de classe depois do “1968”[8], assim como o papel dos intelectuais nessa conflagração.
“Godard’s film questioned the presence of hegemonic ideologies in the tools of production of media and film. His intention was to reveal the ideological effect and complicity of such tools in conveying an image of capitalism as natural and the oppression of the masses as normal” (p. 113).
Como Godard em “Tout Va Bien”, Sissako, em “Bamako”, busca revelar o efeito ideológico do cinema em sua própria estrutura de representação e mis-en-scene, que posicionam a algumas pessoas e objetos em frente da câmera, e desloca outros tantos; que dá a permissão para que alguns falem, e condena outros tantos ao silêncio. “Bamako” não poderia ser considerado dessa forma um típico filme de Sissako, onde “the poetics of the images dominates the politcs of everyday life” (117). Por questionar a linguagem, o filme inverte a ordem de prioridade da estória sobre a poética das imagens, e não é, dessa forma, apenas o filme mais político de Sissako, mas também um dos mais importantes filmes sobre a relação entre arte e política de todos os tempos segundo Diawara.
Como outros intelectuais e artistas ocidentais, inclusive brasileiros, Godard deslocou-se até Moçambique arrebatado pelo entusiasmo revolucionário que se segue a expulsão, em 1975, das tropas portuguesas e a destruição do Estado colonial. Convencido que o cinema estava “falido” no Ocidente, em 1978, Godard foi para Moçambique, acreditando que poderia, utilizando câmeras de vídeo, explorar e experimentar com projetos modernizantes e modernistas. Com sua equipe, “Sonimage”, voltou-se para África (e para a cultura africana) em busca de salvação para o cinema europeu, como Picasso havia feito no passado, reinventando a arte moderna, e tantos no Brasil buscaram fazer em relação à cultura nacional (Diawara, 1998; Stam, 2008). Segundo Diawara, entretanto, Godard esqueceu-se do mais importante: “a consideration of africans as thinking and creative subjects who own their continent” (p. 119). Ora, como sabemos, a iniciativa de Godard, e seu casamento com a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), foi um fracasso[9].
Mais duas últimas palavras sobre este livro tão rico. Em primeiro lugar é impossível não comentar sobre importante consideração que Diawara faz sobre as políticas culturais e intelectuais de pensadores pan-africanos como Leopold Senghor, Edouard Glissant e Sekou Touré. Para Senghor, por exemplo, arte não é estática mas todo um conjunto significante performático: “African art comes to life when rhythm penetrates the performances and becomes the spirit of the ancestor, which links the performer and spectators. For Senghor, rhythm is the sign of life” (p. 148)[10]. Sendo presidente do Senegal pós-colonial, Senghor impôs sua visão sobre a arte Africana nos anos 60 e 70, tendo a ocasião política de pôr em prática sua visão sobre Négritude, tão criticada por cineastas, como Sembène, que via a Négritude como essencialista e primitivista. Conhecemos, por outro lado, o apelo de Senghor contra o privilégio ocidental atribuído ao olhar, em benefício da evocação de outros sentidos, recusando a posição de espectador logocêntrico, e embarcando na experiência artística de uma forma, diríamos, re-ritualizada. Diawara nos lembra também como a perspectiva de Senghor foi duramente criticada por Fanon, para quem a única política possível na África pós-colonial seria a nacional. A posição de Glissant, por sua vez enfatiza a multiplicidade ao invés da singularidade da experiência africana ou diaspórica[11].
Ora, os filmes (vídeos) baratos e, para alguns, de gosto duvidoso e recheados de estereótipos, como os feitos por Nollywood, parecem realizar a promessa de conquistar e produzir audiências tipicamente africanas, estando mesmo comprometidos com a representação de novas estruturas sociais de uma África urbana e moderna, educada visualmente por Hollywood, mas ansiosa por representar a si mesma, no âmbito das estruturas formais do mercado. “There is a saying in Nollywood that the face is the mirror of the mind. So to paraphrase this I would say that the Nollyoowd video screen becomes the mirror of Africa” (p. 178). Esta imagem parece profundamente marcada pelas ideias de canibalização da modernidade e holocausto da tradição. “Nollywood knows that the spectators want villas, the cars and nice clothes, and at the same time they see these things as source of evil and corruption”. Poucas percepções seriam assim tão modernas e tão enraizadas na periferia das sensibilidades e “estruturas de sentimento” do Sul-Global, matrizes formais a que nós também pertencemos.
Notas:
[2] Sobre culturas viajantes ver o célebre artigo de James Clifford (1992).
[3] Ver por exemplo o recente artigo de Gunkel, 2013.
[4] Discutido, por exemplo, por Signe Arnfred (2011) para o caso de Moçambique.
[5] A oposição do autor ao afro-pessimismo contrasta com a posição radical de Frank Wilderson. Para o primeiro, afro-pessimismo é um fatalismo que crê que os africanos “are incapable of playing the game of modernity” (p.55), o que ele nega com veemência. Wilderson, entretanto apoia-se em Ronald Judy para dizer que “the Negro is a symbol that cannot enable the represention of meaning because it has no referente’”, estando definido apenas pela violência gratuita. (Wilderson, 2010: 39).
[6] “O Coração das Trevas”, Conrad (1984). Sobre os africanos o narrador do livro diz; “não creio que algunsdeles tivessem noção clara de tempo, como a que acabamos por adquirir a o fim de tantos milênios; eles ainda pertenciam ao começo dos tempos…”. (p. 54).
[7] Sem reincidir nos pecados da “burden of representation”, como discute Mercer para o contexto do cinema negro britânico (1994).
[8] Sobre o maio de 1968 conferir o excelente livrinho de Olgaria Matos , “Paris 1968 – As Barricadas do Desejo” (1981).
[9] O que não ocorreu com Licínio de Azevedo, cineasta brasileiro, que realizou muitos e excepcionais filmes em Moçambique, como, por exemplo, o perturbador “Desobediência” (2002), e que até hoje produz naquele país como um de seus principais cineastas (Arenas, 2012). Curioso destacar que o cineasta moçambicano Ruy Guerra fez o caminho oposto, nascido em Lourenço Marques, atual Maputo, transitou entre diversos países da Europa e realizou no Brasil importante obra cinematográfica, que inclui “Os Cafajestes” (1962) e “Os Fuzis” (1964), sem deixar de embarcar na onda do entusiasmo revolucionário moçambicano, Guerra também realizou importantes trabalhos em Moçambique, dentre os quais o impressionante “Os Comprometidos – atas de um processo de descolonização” (1984), que retrata depoimentos de antigos colaboracionistas moçambicanos do governo colonial português e de sua polícia política, a PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Papa, 2006).
[10] Para uma introdução acessível ao pensamento da negritude ver Munanga (1988).
ARENAS, Fernando. Retratos de Moçambique Pós-Guerra Civil. A Filmografia de Licínio de Azevedo. IN . ___ . BAMBA, Mahomed & MELEIRO, Alessandra (Orgs.). Filmes da África e da Diáspora. Objetos de discurso. Salvador: EDUFBA, 2012. Pp. 75-100.
ARNFRED, Signe. Sexuality and Gender Politics in Mozambique – Rethink Gender in Africa. Woodbridge: James Currey/The Nordic Africa Institute, 2011.
CLIFFORD, James, Travelling Cultures. In . ___ . Cultural Studies. Ed. Grossberg et all. New York: Routledge, 1992. 96- 116.
DIAWARA, Manthia. In Search of Africa. Harvard University Press: Cambridge, 1998.
DIAWARA, Manthia. African Film. New Forms of Aesthetics and Politics. Prest Verlag. Munich – Berlin – London – New York: Haus der Kulteren der Welt, 2010.
GUNKEL, Henriette. Some Reflections on Postcolonial Homophobia, Local Interventions, and LGBTI Solidarity Online: The Politics of Global Petitions. African Studies Review, 56. 2013. pp. 67-81.
MATOS, Olgaria C. F. Paris 1968 – As Barricadas do Desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
MERCER, Kobena. Black Art and the Burden of Representation. In. ___ . Welcome to the Jungle. New Positions in Black Cultural Studies. Routledge: New York, 1994. Pp. 233-254.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. São Paulo: Ática, 1988.
PAPA, Dolores. Ruy Guerra. Filmar e Viver. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2006.
STAM, Robert. Multiculturalismo Tropical. Uma História Comparativa da Raça na Cultura e no Cinema Brasileiros. São Paulo: EDUSP, 2008.
WALCOTT, Derek. Omeros. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
WILDERSON III, Frank. “The Ruse of Analogy”. In . ___ . Red, White & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms. Duke University Press: Durham, 2010. Pp. 35-53.
Em dezembro de 2012, Manthia Diawara esteve pela primeira vez no Brasil para participar do VI Encontro de Cinema Negro: Brasil, África e Caribe realizado no Rio de Janeiro. Nascido em Bamako, capital do Mali, Diawara é cineasta, crítico cultural e professor de Literatura Comparada na New York University (NYU), onde dirige o Institute of Afro-American Affairs (IAAA). Reconhecido como o maior especialista em cinema africano no mundo, ele tem uma profusa e densa produção literária e cinematográfica na área, tendo escrito mais artigos sobre o assunto que todos os pesquisadores em cinema africano no Brasil juntos. Manthia tem uma fala serena e aguda. Embora seu trabalho seja pouco conhecido no Brasil, Diawara é um autor obrigatório para quem deseja pensar África para além dos estereótipos. Suas festas da juventude eram registradas pelo grande fotógrafo malinense Malick Sibidé.
FICINE: Como nasceu seu interesse pelo cinema africano?
MANTHIA DIAWARA: De muitos modos. Primeiro, porque ele é o meio que melhor captura a cultura, a África, a negritude em todas as suas expressões. Muita gente diz que o povo africano é pobre e, ao mesmo tempo, performativo. Mas a escrita tem limites para capturar estas expressões juntas. Mesmo a fotografia também tem seus limites para dar conta da complexidade africana. Então com o movimento de câmera você pode ver de maneira mais intensa e completa toda a expressão da vida em cores e à luz do sol! Esta é a primeira razão porque eu me interessei pelo cinema africano. Outra razão é por pessoas como Sembène Ousmane que une literatura e cinema. Mas o motivo mais importante pelo qual eu me interesso pelo cinema é que ele é o espaço onde ocorre a mais dura batalha pela representação. Mais que a fotografia, mais que a escrita, os estereótipos são fixados e ganham vida no cinema. E se você não se liga nesta forma problemática de representação, sujeitos se tornam objetos de representação por toda a vida. Por isso eu me interesso pela representação do negro, primeiramente, no domínio do cinema hollywodiano, mas também em outros domínios do cinema, como no cinema europeu, no Cinema de Autor, nos cinemas da América Latina, da África, dos afro-americanos e, cada vez mais, no cinema de europeus negros. Neste semestre estou dando um curso sobre Black European Cinema, onde assistimos o filme de Menelik Shabbaz –The Story of Lovers Rock (2011) – uma produção britânica negra, um filme muito interessante e que eu acho que deve ser visto.
FICINE: Você e Paul Gilroy têm um pensamento semelhante acerca da modernidade negra, mas você pensa, principalmente, a partir do cinema. E ambos parecem ver a negritude (blackness) como ponto central para analisar a modernidade e a diáspora negra no mundo.
MANTHIA DIAWARA: Em muito aspectos eu gosto de Paul Gilroy, aprendi muito com ele. Nós fomos bons amigos nos anos 1980. Não se pode negar que houve uma grande mudança com a Escola de Birmingham. Com Stuart Hall, Richard Hoggart, Raymond Williams, E.P.Thompson e outros que representam um momento de transição do pensamento marxista existente, por exemplo, em revistas britânicas como Race & Class para os Estudos Culturais. Gente como Stuart Hall, propôs novos modos de falar teoricamente sobre raça ao afirmar que raça, em última instância, determina outras coisas e ao propor a articulação da ideia de hegemonia, oriunda do pensamento de Gramsci, com outras categorias. Paul Gilroy é visto por muitos como o melhor fruto desta escola, assim como Harzel Carby e outras pessoas. Eu acredito que Paul e eu estudamos a negritude (blackness) através do prisma da modernidade. Negritude no sentido não de uma África re-inventada, mas de um olhar a África no mundo moderno. Nós dois acreditamos nisso. Porque, em geral, não se pensa África a partir da racionalidade, da esfera pública, da comunicação, dos modos de transmissão do conhecimento, mas somente a partir do domínio da filosofia eurocêntrica. E eu acredito que todos nós somos afetados por esse movimento e a minha questão é pensar como nós podemos criar espaço para nós mesmos dentro dele. Nesse sentido, claro que há diversas similaridades entre o nosso pensamento. Mas há profundas diferenças entre Gilroy e eu. Primeiro, porque Paul é britânico, é um negro britânico e eu sou um africano francófono-americano. Então olhamos o mundo de lugares diferentes. O lugar onde eu coloco Gilroy e Stuart Hall é o grupo dos estudos culturais do negro britânico europeu (europe black british cultural studies group), que eu chamo de Black British Cultural Studies. Eu tentei fixar este termo como uma categoria analítica em vez de utilizar englishness ou blackness. O negro britânico pertence ao mundo britânico e britishness é, em minha opinião, algo como o modo aristocrático de olhar as coisas. É um modo eurocêntrico de se posicionar a despeito de você ser branco ou negro, é uma visão eurocêntrica do mundo que cria hierarquias de conhecimento, de pertencimento, de cidadania, e portanto, hierarquias de branquitude e negritude. Essa não é uma característica do Paul Gilroy ou do Stuart Hall, este é um elemento que compõe a englishness e que é ligado a uma tradição monárquica. O discurso da utopia igualitária vem da filosofia francesa. Tanto os franceses quanto os ingleses tentam ser universais, mas de um modo bastante distinto. A englishness tenta impor o seu universalismo. Eu tento discutir isso porque este tema é muito importante. Quando Paul Gilroy, Anthony Appiah, Terry Eagleton, todos esses grandes intelectuais britânicos, falam de cosmopolitanismo é de maneira a impor ao indivíduo a cultura britânica ou a cultura americana que imita a cultura britânica. Então pessoas como eu, Edouard Glissant ou Fanon – que vêm de uma tradição francofona – rejeitam automaticamente o cosmopolitanismo do modo como ele é apresentado, pois ele tenta recompor a hierarquia no mundo. Então há uma diferença entre a tradição britânica negra e aquela da qual eu venho. Ele têm Londres como o centro do mundo e África não está configurada no seu mundo, eles não conhecem a África e eles não estão abertos para conhecer a África. A África não é importante para eles. Ela não é moderna. Quando eles trabalham com África, a África os leva a uma busca pelas raízes, eles não conseguem ver a África como mais do que isso. Eles têm medo da África. Mas eu sou fruto de uma modernidade africana, do movimento de descolonização da África, da África que toma seu lugar de discussão na ONU, em Paris, em Londres, na Europa, em Bamako, no Senegal. Essa é a realidade. E por último, minha maior diferença com Stuart, Paul e Appiah é que o homem forte para eles é o negro americano (black american), eles criticam (beat up) o essencialismo e o universalismo do pensamento negro americano, mas nunca criticaram (beat up) Raymond Williams que é de uma elite esquerdista e nunca bateram na esquerda intelectual europeia, que é racista. Eles pensam que estão fazendo o seu trabalho ao atacar o essencialismo negro norte-americano, mas essa é uma maneira muito limitada de se posicionar em campo.
FICINE: Nos seus trabalhos você está sempre preocupado em colocar a literatura e a cultura visual africana no fluxo da modernidade, além de discutir com intelectuais africanos, enquanto Paul Gilroy pensa mais a partir da produção musical diaspórica.
MANTHIA DIAWARA: Eu não acho que não dá para discutir música, sem antes ler There Ain’t no Black in the Union Jack (1987) de Paul Gilroy e a reinterpretação que Stuart Hall faz da noção de hegemonia em Gramsci. Porque a partir dela Gilroy rearticula o reggae e a música pop no contexto do rock americano. Eu acho isso fascinante. Eu aprendi muito com essa leitura. Mas novamente há a tentativa de colocar Londres como o centro mundial da cultura. Tudo bem, mas isso não é verdade! Então esta é uma questão analítica. Eu acho que a música não iria para nenhum lugar se não fosse o rock’n’roll e o rhythm’n’blues americanos. Para um cara britânico essa foi a inspiração. Rod Stewart, por exemplo, é legal, eu adoro ele, mas ele é uma paródia. Ele fazia música, mas também era kitsch. Alguém poderia fazer a mesma coisa que Paul com a música francesa, por exemplo, e analisar Johnny Hallyday, Sylvie Vartan, Eddie Mitchell e outros. Mas em meu caso, o que me interessa é ver os nuances da música africana, olhar o elemento democrático da música africana. Pois antes de ir para a cidade ela era uma música de rituais, de cerimônias, das aldeias. Mas quando você olha a moderna música africana que toma elementos do James Brown, dos Rolling Stones, do Johnny Hallyday, da música cubana e brasileira e vai para a cidade, você vê surgir pessoas como Fela Kuti na Nigéria ou Youssou N’Dour em Dakar. E eles transformam a África e a dança africana. Se você fosse a lugares como o Mali, muitas mulheres estavam dançando juntas. Elas se abraçavam e dançavam juntas, o modo de se relacionar com o corpo muda e eu me interesso por isso. Com gente como Salif Keita, Ali Farka Touré, Toumani Diabaté nós passamos a ver a tradição africana com instrumentos modernos e a democratização do corpo das pessoas, criando novas esferas públicas. E isso é muito mais importante para mim que o etnocentrismo de Paul Gilroy dizendo que Londres ou Paris ou Los Angeles ou o Brooklin são a capital disso ou daquilo. Qual é o ponto? O ponto deveria ser como a música serve para liberar o corpo. Por que a música brasileira e o candomblé me atraem? Porque esta prática desapareceu da África há muito tempo. Nós não a conhecíamos. Mas quando os africanos começam a ouvir Gilberto Gil ou Caetano Veloso, por exemplo, nós começamos a reconhecer e relembrar velhos códigos da África que nos ajudam a liberar algo em nossos corpos. Por isso a música é importante para mim e isso a gente pode ver no There Ain’t no Black in the Union Jack (1987), mas não no Atlântico Negro (1993), que é um livro etnocêntrico.
FICINE: Isso me faz lembrar de Amadou & Mariam.
MANTHIA DIAWARA: Exatamente. Um casal de músicos cegos que surge nos anos 1970 e que tem essa guitarra fantástica. Quando eles começam a tocar, eles fazem coisas incríveis a as repetem sempre. Malick Sidibé diz que “a cópia da cópia se torna original” e eles se tornaram originais ao “copiar” funk music, rhytm’n’blues ao som da música africana das décadas de 1970 e 1980.
FICINE: Você foi fotografado por Malick Sidibé!
MANTHIA DIAWARA: Sim! O que aconteceu com a fotografia é que ela veio antes do cinema, então você vê o surgimento de fotógrafos africanos antes do surgimento de cineastas africanos. A fotografia foi um lampejo de modernidade. Os fotógrafos conseguiram realizar seu trabalho de modo mais independente. Malick Sidibé é fascinante. Malick tirou fotos minhas porque eu cresci em Bamako, no Mali, num período em que o rock, o rhytm’n’blues eram muito populares e os jovens estavam quebrando fronteiras ao participar da cultura pop. Ao ouvir Jimi Hendrix. E Malick foi testemunha deste movimento de modernidade. Eu cresci perto dele, então ele ia a minha casa fotografar em festas de aniversário e formaturas, quando a gente ouvia música e se divertia. Ele tirou uma foto minha com meu afro, o diploma do ensino médio e com um disco da Aretha Franklin.
FICINE: Mudando de assunto, eu sempre tive uma dúvida: por que a Revista Presença Africana contratou Alain Resnais para fazer Les Statues Meurent Aussi (1953)?
MANTHIA DIAWARA: Primeiro é necessário entender que a negritude era um movimento político, eles tinham afinidade com a ideia de assimilação e eles tinham que se aproximar da intelectualidade francesa. Picasso foi quem criou o logo da Revista Presença Africana. André Gide, Aragon, André Maulraux, Jean Rouch, Marcel Griault, Georges Balandier, George Bataille, Michel Leiris também participavam do grupo. O crème de la crème da intelectualidade francesa participou da fundação do Presença Africana. Os negros da Negritude procuravam dar legitimidade ao movimento aproximando-se destes intelectuais. Estou falando da África francófona. E tecnicamente não havia cineastas africanos, os jovens negros eram estudantes, os cineastas africanos só vão surgir depois. Por isso chamaram Chris Marker que era muito jovem e Alain Resnais. E é interessante porque Le statues meurent aussi (As Estátuas também Morrem) é muito diferente de Moi, un Noir (1958) talvez porque Rouch não acreditasse na modernidade.
Obras de Manthia Diawara
Tese
African Cinema: The Background and the Economic Context of Production (Tese, Indiana University, 1985.)
Livros
African Cinema: Politics and Culture. Bloomington: Indiana University Press, 1992 Black American Cinema. (Org.) London: Routledge, 1993. Black British Cultural Studies: A Reader. (Org.) Chicago: University Of Chicago Press, 1996. In Search of Africa. Cambridge: Harvard University Press, 1998. Blackface. (com David Levinthal) Santa Fe: Arena, 1999. Black Genius: African American Solutions to African American Problems. (Org.) New York: W.W. Norton & Co., 1999. We Won’t Budge: An Exile in the World. New York: Basic Civitas Books, 2003. African Film: New Forms on Aesthetics and Politics. Prestel, 2010
Filmografia
Sembene: the Making of African Cinema, Mali/EUA, 1994, 60 min. (Com Ngugi Wa Thiongo) Rouch in Reverse. Mali, 1995, 52 min. In Search of Africa (Em busca da África). EUA, 1997, 26 min. Conakry Kas. Mali, 2003, 82 min. Bamako Siki Kan. Mali, 2003, 76 min. Who’s Afraid of Ngugi? Mali, 2006, 83 min. Diaspora Conversations. 2000, Mali, 47 min. Maison Tropicale. Mali, 2008, 58min. African Film: New Forms on Aesthetics and Politics. Filmmakers in conversation. EUA, 2010, 58 min. Edouard Glissant: One World in Relation (Edouard Glissant: um mundo em relação). EUA, 2010, 52 min.
Em Português:
A Iconografia do Cinema da África Ocidental. In: Meleiro, Alessandra. (Org.) Cinema no Mundo: Indústria, Política e Mercado. África. São Paulo: Escrituras, 2007. (Vol.1) Cinema Africano: Novas Formas, Estéticas e Políticas. Lisboa: Sextante: 2009. (com Lydie Diakhaté.) O Congresso de 1956: para Além da Negritude e do Nacionalismo Cultural, 2013. (Tradução de Osmundo Pinho)
Moustapha Alassane nasceu em N’Dougou no Niger no ano de 1942. Sua carreira como cineasta começou em 1962, quando produziu quatro curtas-metragens. Seus primeiros filmes de animação foram “Le Piroguier” e “La Pileuse de mil”, com duração dois minutos cada. Porém, foram as animações “A Morte de Gandji”(1965) e “Bon Voyage, Sim” , realizadas em 1965 e 1966, que o tornaram conhecido como o pioneiro do cinema de animação no continente africano. O desenho animado “Boa Viagem Sim” é uma leitura da vida política de seu país no período pós-independência expressa por meio da escrita em imagens animadas de Moustapha. Para além da criação dos desenhos e da construção do discurso fílmico (a escolha dos planos e a montagem final das cenas) é a criação do movimento pelo autor que melhor expressa sua crítica social.
Desde 2010, tenho pesquisado a trajetória do animador cineasta Moustapha Alassane cursando o Doutorado em Ciências Sociais na UFRN. De seus filmes de animação, destaco “Kokoa”, uma produção de 2001, realizado em stop-motion com bonecos e cenários construídos pelo próprio animador. A narrativa é sobre uma luta inspirada em um jogo tradicional de arena dessa região da África Ocidental, mas na animação de Alassane, os protagonistas e a plateia é composta de personagens como sapos, camaleões, pássaros e até um caranguejo. Considero este filme um ponto alto da trajetória de Alassane como autor no cinema de animação, por ser o momento em que ele (re)apropria-se da sensibilidade e da instrumentalidade do suporte técnico. As evoluções dos bonecos personagens se aproximam muito das execuções feitas por percussionistas africanos. Moustapha traz novamente para sua expressão animada parte de sua memória cinestésica, que guarda os movimentos dos percussionistas com quais conviveu cotidianamente.
Depois de alguns meses de gestação, o Fórum Itinerante de Cinema Negro, o FICINE, ganha vida!
Inauguramos hoje a nossa página e queremos, desde já, você participando deste processo que é, em sua origem, coletivo. Contamos com sua colaboração, comentando, criticando e, sobretudo, nesse começo, nos ajudando a divulgar nossa proposta!
Semanalmente, teremos aqui na página inicial a publicação de textos (posts) relativos à temática escritos por colaboradores de diversas áreas de formação e atuação. Mas não ficamos por aqui! Dê uma volta pelos ambientes da página e conheça as demais dimensões do FICINE. Conheça o FicinEducação, o Ficine.Doc e também as nossas referências para os pesquisadores e interessados nesse campo de debate.
O FicinEducação é um espaço dedicado à ampliação das reflexões e percepões sobre as imagens do negro na diáspora e no continente africano, no âmbito da educação e da formação continuada de profissionais ligados à educação. Nela temos também a sessão oFicine, onde se encontram as propostas de atividades desenvolvidas por nós em forma de workshops, cursos, seminários e na elaboração de materiais para-didáticos voltados para o uso do audiovisual na aplicabilidade da lei 10.639/03, lei que torna obrigatório o ensino das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras no cenário educacional brasileiro.
Já o Ficine.Doc, que irá ao ar em breve, trará além da indicação vídeos disponíveias na rede, webdocumentários e curtas-metragens produzidos por nós e nossos colaboradores no âmbito desta cinematografia negra que estamos nos propondo a discutir.
Temos ainda na parte das referências, informações sobre cineastas, links de parceiros e instituições, catálogos, além de um precioso levantamento bibliográfico de artigos, teses, dissertações e livros. Pois parte fundamental da nossa missão é divulgar essas produções.