Cinema Negro, Sankofa e Baile Charme: 8ª edição da Egbé e o cinema em quilombo

Vinícius Dórea

Entre os dias 29 de Março e 5 de Abril ocorre mais uma edição da Egbé – Mostra de Cinema Negro na cidade de Aracaju, Sergipe. Com o desejo de alargar os conceitos e debates sobre o cinema negro brasileiro e sergipano e também celebrar os caminhos trilhados até aqui, essa oitava edição tem como tema o Sankofa, conceito originário da cultura Akan, de Gana, que resgata a ancestralidade e o conhecimento histórico para construir o presente e o futuro. Portanto, um dos destaques dessa edição será a homenagem a Mariano Antônio e Valdice Teles, importantes referências do teatro negro sergipano, que ocorrerá durante a cerimônia de abertura com a entrega do Troféu Severo D’Acelino. 

A mostra trará uma seleção de filmes nacionais e internacionais, com destaque para produções de países africanos, como Angola e Moçambique. Além das exibições e diálogos com cineastas, a EGBÉ também amplia sua programação formativa, oferecendo oficinas, debates e mesas temáticas sobre cinema negro, história e resistência cultural. Entre os destaques estão uma oficina de som e oralidade, reflexões sobre educação antirracista, uma mostra infantil, e o Encontro de Profissionais Negros do Audiovisual Sergipano, com participação de Anna Andrade, conselheira nordeste da APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro). O FICINE participa da Egbé com a mediação de Kênia Freitas na mesa Diálogos entre História e Audiovisual Negro com os convidados Dom Filó (CULTNE) e Petrônio Domingues (UFS). 

Nesta edição, a EGBÉ fortalece os laços entre mostras de cinema negro parceiras e expande seu alcance para outras perspectivas do audiovisual negro e indígena. Em um intercâmbio cultural inédito, a programação inclui curadorias especiais da Mostra Itinerante de Cinemas Negros Mahomed Bamba (MIMB) e do Infinita Festival de Cinemas Negros e Indígenas, trazendo um olhar diverso para as narrativas da diáspora. 

O encerramento será marcado pelo Baile Charme com o Rolê Dy Negrão, trazendo o DJ Rafa Aragão, Mestre Saci e a presença especial de Dom Filó, ícone do movimento Black Rio. A EGBÉ – Mostra de Cinema Negro reafirma seu papel como um espaço de resistência e valorização da identidade afro-brasileira, promovendo diálogos essenciais sobre ancestralidade, memória e futuro.

Sobre a EGBÉ

A EGBÉ – Mostra de Cinema Negro é um evento anual realizado com o objetivo de promover a cultura e o cinema negro no Brasil, além de ser uma plataforma de debate sobre questões raciais e protagonismo no audiovisual. Criada para dar visibilidade ao trabalho de cineastas negros e artistas afro-brasileiros, a Mostra se consolidou como um espaço importante de resistência e afirmação da cultura negra. A 8ª edição se reafirma, assim, como um importante evento de valorização da cultura negra, um espaço de resistência cultural e política, e uma plataforma de formação e fortalecimento da identidade afro-sergipana, promovendo debates essenciais sobre o papel do cinema e da educação na luta contra o racismo e pela valorização da memória negra.

Programação completa:

29 março – sábado

Local: Cine Vitória

16h – Mesa: Atravessamentos entre Teatro e Cinema Negro

18h30 – Homenageado com o Troféu In Memoriam: Mariano Antônio Ferreira e Valdice Teles

19h – Exibição do Longa Convidado “Othelo, o Grande” – Dir. Lucas H. Rossi dos Santos (2023)

20h30 – Diálogo com o diretor do filme

31 de março – segunda

Local: Centro de Criatividade

14h às 17h – Oficina “Som e Oralidade” com Edwyn Gomes e Gabriel Muniz

Local: Cine Vitória

15h – Mostra Infantil

19h – Mostra oficial EGBÉ

1 de abril – terça

Local: Centro de Criatividade

14h às 17h – Oficina “Som e Oralidade” com Edwyn Gomes e Gabriel Muniz

Local: Cine Vitória

15h – Mostra convidada – EGBÉ + MIMB: Mostra Itinerante de Cinemas Negros Mahomed Bamba

19h – Mesa (online): Cinema Negro e Educação Antirracista

2 de abril – quarta

Local: Centro de Criatividade

14h às 17h – Oficina “Som e Oralidade” com Edwyn Gomes e Gabriel Muniz

Local: Cine Vitória

15h – Filmes moçambicanos em seguida bate-papo com a curadora Yérsia Assis

19h – Exibição do Longa Convidado “Ginga Reggae na Jamaica do Brasil” – Dir. Nayra Albuquerque (2023)

20h30 – Bate-papo com a diretora do filme

3 de abril – quinta

Local: Centro de Criatividade

14h às 17h – Oficina “Som e Oralidade” com Edwyn Gomes e Gabriel Muniz

Local: Cine Vitória

15h – Mostra Infantil

19h – Filmes angolanos em seguida bate-papo com a curadora Yérsia Assis

4 de abril – sexta

Local: Centro de Criatividade

14h às 17h – Oficina “Som e Oralidade” com Edwyn Gomes e Gabriel Muniz

19h – Mostra convidada – EGBÉ + Infinita: Festival de Cinemas Negros e Indígenas

20h30 – Performance “Corpo-Terra” com Jonathan Rodrigues.

5 de abril – sábado

Local: Cine Vitória

15h – Encontro de profissionais do audiovisual negro sergipano

18h – Exibição do filme “Black Rio, Black Power” – Dir. Emílio Domingos

19h30 – Mesa: Diálogos entre História e Audiovisual Negro. Convidados: Dom Filó (CULTNE); Petrônio Domingues (UFS); Mediação: Kênia Freitas (UFS/ FICINE/SANKOFA)

Local: Doca

22h – Show de Encerramento com DJ Rafa Aragão, Rolê DY Negrão (Baile Charme) e Mestre Saci

Residências artísticas, sala de cinema e audiovisual feito em roda, conheça o iAMO

“Somos o vento que sopra sua cria pro topo do mundo”. A frase que aponta as linhas de força desse projeto já indica, em suas palavras e textura, que estamos diante de uma organização audiovisual pensada a partir de outros registros de produção e partilha de ideias. Foi com esse vento que se materializou, no segundo semestre de 2024, o Instituto Audiovisual Mulheres de Odun, ou apenas iAMO, um projeto que já existia desde 2010, mas se torna anos depois um espaço concreto que nasce de dentro da comunidade do Coqueiro Grande, adjacente ao bairro de Cajazeiras, em Salvador, com o objetivo de ser um lugar de formação e compartilhamento de experiências audiovisuais.

“Podemos definir o iAMO como um impulsionador de narrativas, de crias (profissionais) e de criações (projetos). Quando pensamos sobre qual seria o propósito do Instituto, entendemos que as energias de Irókó (Tempo) e Oyá estavam muito presentes, e que nosso objetivo de existência era inspirado por essas energias manifestadoras, formadoras e emancipadoras”, define Viviane Ferreira, cineasta e diretora criativa do projeto (na imagem acima, ao centro). 

Ao lado de Bruna Anjos, Gustavo Ferreira, Camilla Prado, Shirlene Reis, Jucimara Cruz e da comunidade de Coqueiro Grande, Viviane vem coordenando as atividades no iAMO, como a residência imersiva de roteiro que já aconteceu no espaço, além de estar à frente da sala de cinema que o espaço inaugurou recentemente, o CineLankiana. Segundo ela, “a sala é resultado do fomento da Lei Paulo Gustavo/BA e já nasce com o compromisso de ampliar a presença de telas em espaços culturais, fora de shopping centers, nas periferias da cidade. Nossa programação está sendo pensada alinhada com os lançamentos dos cinemas independentes nacional e internacional, buscando manter um diálogo com as produções comerciais que atraem os públicos à sala de cinema, em um ambiente capaz de ofertar filmes com inovações narrativas e estéticas capazes de alimentar os processos de experimentações do nosso público.”

No que diz respeito às residências artísticas, é importante frisar dois elementos. Primeiro, no Brasil, a ideia de residência está com frequência mais associada ao campo das artes visuais, o que coloca o iAMO à frente de uma outra proposta de formação em audiovisual. Segundo, essas residências são pensadas de dentro de uma lógica do território, no sentido de que é a partir das especificidades dessa comunidade do Coqueiro Grande, ou seja, de sua forma de organização social, seus afetos e trocas, que as práticas de imersão são criadas. Ou, nas palavras de Viviane, “somos do território, estamos no território e construímos com o território.”  

Sobre a primeira experiência de troca, ela avalia que o resultado foi bastante positivo. “A primeira turma de residentes nos deixou muito felizes, nos sentimos atingindo a meta dos 100% de aproveitamento, uma vez que todos os projetos cumpriram todas as etapas sugeridas, e saíram do processo de residência transformados e amadurecidos, prontos para galgar oportunidades de produção. Não enfrentamos nenhuma situação de desistência durante o processo, e em diálogo com outras residências entendemos o quanto esse marco é importante. Amadurecemos os nossos protocolos de recebimento de residentes e vivemos uma semana de inspiração potente.”

Ao todo, durante essa primeira residência, foram seis projetos na roda, e 11 residentes (apenas um deles participando de modo online). A residência durou quatro semanas, e os diálogos iAMO reuniu 27 convidados, sete painéis sobre as sete artes, e quatro rodas de conversa entre diferentes residências artísticas.

Para Janaína Oliveira (FICINE) que acompanhou de perto todo processo de gestão e concretização do iAMO e esteve na semana de inauguração da da primeira residência moderando debates e participando de uma mesa redonda, “o iAMO aponta de forma desbravadora para caminhos originais para a produção de cinema independente no Brasil”. “Modos de fazer, pensar e ver cinema permeados de forças de pertencimento, território, espiritualidade e muito afeto. É muito impressionante não só a estrutura montada por Viviane, mas o cuidado em cada detalhe que vai da arquitetura, à decoração e que se desdobra na proposta das atividades realizadas. É mesmo incrível. Todes deveriam ir no iAMO para ver, viver e se inspirar”, diz Janaína (na foto abaixo).


O FICINE também já esteve presente no iAMO com uma edição do Políticas do Olhar, com a participação do curador martinicano Wally Fall e com uma sessão do filme L’homme vertige: contos de uma cidade, da diretora de Guadalupe Malaury Paisley. Ambas atividades aconteceram durante a IV edição do FIANB – Festival Internacional do Audiovisual Negro da APAN. 

Importante dizer que, em 2025, o instituto voltará a trabalhar com as práticas imersivas enquanto, simultaneamente, pensa propostas de programação e curadoria para sua sala de cinema: “2025 é ano de consolidação dos nossos processos alicerçantes. Teremos nova edição da residência iAMO, e trabalharemos na construção de relação entre o CineLakiana e seu público”, garante Viviane. 

“É urgente que o Brasil pare de ter um cinema identitário: majoritariamente branco, de classe média e sudestino”

Vinicius Dórea

O cinema brasileiro se encontra em uma encruzilhada de conceitos, oportunidades de reinvenção e revisão de uma nacionalidade. O Fórum de Tiradentes, ocorrido em janeiro deste ano, agora passa por São Paulo para apresentar o resultado das discussões que aconteceram na cidade de Tiradentes. Na ocasião, será também lançada a publicação de uma brochura com todas as diretrizes e recomendações para políticas públicas do audiovisual brasileiro, destinada às lideranças políticas do país. O Fórum de Tiradentes, há três anos, é peça importante na elaboração de novas perguntas e horizontes para esse audiovisual. Tatiana Carvalho Costa, presidenta da APAN e membra do FICINE, foi uma das pessoas presentes no Fórum e conversa aqui sobre os desdobramentos das discussões que aconteceram em janeiro, bem como sua visão pessoal diante de um mar de oportunidades em que nos encontramos.

FICINE – Primeiramente, gostaria que você falasse sobre essa reunião do Fórum que vai acontecer na Mostra Tiradentes de São Paulo. Será uma comunicação do que já foi debatido na Mostra Tiradentes em janeiro ou haverá uma continuação dos debates nas mesas e grupos de trabalho?

TATIANA CARVALHO COSTA – O Fórum acontece apenas em Tiradentes e esse é o terceiro ano de sua existência. E deixo claro que não falo pelo fórum, estou falando como alguém que o acompanha. Ele passa a existir junto com o novo governo para colaborar com a reconstrução das políticas de cultura no Brasil, fazendo frente ao que tinha acontecido antes com o governo Bolsonaro, que foi a desativação do Ministério da Cultura. Foi feito então um esforço coletivo da sociedade para colaborar com essa união e reconstrução, como diz o slogan do governo. O Fórum de Tiradentes é então esse encontro de entidades e representantes do poder público com seminários, mesas e discussões realizadas através de grupos de trabalho de cada área: circulação, exibição, produção, preservação, etc; que inspiram e nutrem a construção de dois documentos: 

  • a carta de Tiradentes, que é uma síntese e é lida no último dia do Fórum

Essa brochura é bem maior do que a carta. Tem 42 páginas e é um detalhamento. Por exemplo: No quesito regulação do VOD (Video On Demand), nós temos que entrelaçar as áreas de produção e distribuição através de linhas transversais e durante as discussões do fórum temos representantes das plataformas grandes e das independentes, as públicas. Ou seja, tentando contemplar um pensamento que seja mais complexo. Também é preciso entender o que é a Mostra de Cinema de Tiradentes e o que é esse evento em São Paulo. A Mostra Tiradentes SP tem 13 edições e ela deriva da Mostra de Cinema de Tiradentes, que tem quase 30 anos. É uma demanda da cidade de São Paulo para a exibição dos filmes que ganharam prêmios em Tiradentes (Aurora e Foco) e uma seleção de filmes que interessem ao público de São Paulo. A discussão do Fórum de Tiradentes é então levada para São Paulo numa partilha com o público com as questões já fechadas. É realizado o lançamento da brochura com as recomendações, que posteriormente vira um documento entregue para o poder público. Em anos anteriores, esse documento maior foi entregue para a Ministra Cármen Lúcia e para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Ou seja, não é só para o Ministério da Cultura. E como participam do Fórum os representantes ou lideranças e às vezes o presidente, do Fórum de Gestores Municipais e Fórum de Gestores Estaduais de Cultura, esse documento também vai para os municípios e para os estados.

FICINE –  Essa última edição da Mostra Tiradentes teve o tema “Que Cinema é Esse?” na intenção de instigar o cinema brasileiro a criar novas perguntas tanto na criação dos filmes como também na elaboração de novas políticas públicas. Como você enxerga o papel do fórum com relação a pensar e repensar essas políticas?

TATIANA CARVALHO COSTA- Essa pergunta “Que Cinema É Esse?” foi muito instigante para a gente também se perguntar, em paralelo: “Que indústria audiovisual é essa?”. Porque esse é o momento de discutir a indústria audiovisual. Claro que cinema e audiovisual não são só indústria, mas esse ano particularmente nós finalmente tivemos a inclusão do audiovisual numa dinâmica de pensamento e planejamento industrial a partir de ministérios da área da economia do governo. Tem um programa do governo que se chama “Nova Indústria Brasil” e o audiovisual entrou na lógica do planejamento desse programa, que abarca várias áreas. O governo federal tem um conselho que se chama Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial. No final do ano passado, em outubro, o vice-presidente Alckmin anunciou a entrada da indústria audiovisual no CNDI (Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial). Então, o Ministério da Cultura e a SAV (Secretaria do Audiovisual) têm agora assento nesse conselho para pensar a partir do desenvolvimento industrial do Brasil.

Existe um aparente paradoxo na Mostra de Cinema de Tiradentes. E eu quero deixar evidente que isso é uma opinião muito particular, que não é uma opinião da coordenação do fórum. Mas o paradoxo é que os filmes que são premiados em Tiradentes não são filmes feitos nessa lógica industrial. Pelo contrário, são filmes de uma dinâmica autoral e de quase artesania. Tanto que no ano passado o tema da mostra era “Cinema Mutirão”. Eu acredito que esse tensionamento conceitual é muito importante para quem aposta no cinema autoral  se firmar nesse lugar entendendo a complexidade do pensamento e das ações do audiovisual brasileiro. Porque, às vezes, a pessoa vai para a artesania e para o autoral não por uma escolha, mas pelas circunstâncias. Muitas vezes porque não tem grana, porque as políticas públicas de fomento não chegam, mas ela quer fazer cinema e vai fazendo na tora. Lincoln Péricles, sacou? Mas esse aparente paradoxo em Tiradentes é uma coisa muito importante para essas pessoas entenderem que o cinema que elas fazem não é a única possibilidade de fazer cinema e que é preciso que seja uma escolha e não por falta de oportunidade. Claro que a força das circunstâncias faz com que a maioria das pessoas, sobretudo, as pessoas negras do país, historicamente, sequer pudessem desejar fazer cinema.

A grande maioria das pessoas negras que despontaram ultimamente, a partir de 2015, fruto de políticas públicas, entraram desejando fazer cinema, mas não entraram na dinâmica industrial. Por isso falar de indústria junto com o cinema negro é falar de uma discrepância. Nós estamos trabalhando para que as empresas de pessoas negras cheguem nesse devir indústria. É óbvio que a indústria, como o capitalismo, é excludente, porque o capitalismo pressupõe concentração. Mas do ponto de vista ideal, acho importante as pessoas saberem as múltiplas possibilidades de existir no cinema. Seja pelo viés autoral e  das formas inventivas de arranjos possíveis para os filmes existirem, seja através  dessa discussão comercial que está presente ali na cidade, durante o Fórum de Tiradentes também. De forma alguma o Fórum não exclui essas outras possibilidades porque o Fórum também discute formação de público, desenvolvimento, formação de profissionais, etc. Essa estrutura industrial só fica mais evidente porque movimenta a economia, porque a imprensa olha mais para isso, e é o que gera números para a política pública aparecer também.

FICINE –  A Mostra de Cinema de Tiradentes  acaba sendo o lugar do sonho do cinema universitário, principalmente desse que é feito fora do eixo Rio-SP.  Só que também tem esse lado comercial de ter uma vitrine em lugares como São Paulo…

TATIANA CARVALHO COSTA – Mas o Ceará também tem. O Ceará está lançando a Ceará Filmes. Por isso que essa é uma discussão nacional, não é mais uma discussão fechada. Essa lógica de indústria chega nesse lugar. Os sindicatos das empresas estão ligados às respectivas Federações das Indústrias nos Estados. Só pra citar o Sudeste nós temos o SIAESP (Sindicato das Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo), ligado à FIESP; o Sicav com a FIRJAN (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro) e o Sindav com a FIEMG (Federação das Indústrias de Minas Gerais). Isso acontece tambném em outros estados. A APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro), inclusive, chegou a ter um assento na discussão do audiovisual dentro da FIEMG. Então, no Sudeste, já existe essa  estrutura sobre uma produção industrial. Mas faz muito sentido, por exemplo, que na Paraíba, no Ceará ou na Bahia comecem a pensar no desenvolvimento de uma política pública que incentive economicamente o audiovisual nessa perspectiva industrial porque isso tem mercado. Então, para uma parte do setor, faz sentido discutir indústrias, sim. Não que isso tenha que se sobrepor ao cinema que já é feito. Déo Cardoso, por exemplo, transita entre esses mundos. O Leon Reis também. E toda uma galera no Ceará que saiu do “Vila das Artes”. Então o Ceará já está no futuro.

FICINE – Falando nessa questão da nacionalização, fiquei pensando na questão do Oscar. O primeiro Oscar conquistado pelo Brasil colocou o país em um estado de euforia que parece ter um fim em si mesmo, principalmente porque Ainda Estou Aqui trilhou um caminho que é praticamente impossível para a realidade operária do cinema brasileiro. O que o cinema brasileiro necessita em termos de acesso para que esses momentos de euforia não sejam apenas um êxito momentâneo?

TATIANA CARVALHO COSTA – É para isso que serve o bilionário. Para chegar a lugares que ninguém mais consegue chegar. E ao mesmo tempo, aproveitar esse palco internacional para dizer outras coisas. É o papel do aliado. Mas, obviamente, há um limite. Ao mesmo tempo que esse filme abriu caminho para o mundo olhar para o Brasil, também abriu a oportunidade para o Brasil olhar para o Brasil. Não é só Ainda Estou Aqui que está aumentando a bilheteria, mas outros filmes brasileiros também estão ganhando espaço, puxados por ele. Eu dou aula de cinema, oriento trabalhos de conclusão de curso e entrei nessa discussão em sala de aula. Essa galera mais jovem está com uma sensação de “os humilhados serão exaltados” e isso é ótimo. Por isso que eu discordo um pouco dessa ideia do “fim em si mesmo”. Porque talvez seja o jeito de olhar para esse filme e para a expectativa que se tem em relação a ele. É um filme feito por um bilionário, mas em um momento, lá atrás, eles se aproveitaram da política pública porque fizeram uma sala de roteiro a partir de um edital de desenvolvimento para núcleos criativos. Então, o desenvolvimento desse roteiro começa com a política pública. Eles devolveram o dinheiro porque queriam o direito patrimonial e o contrato com o Fundo Setorial do Audiovisual tem umas implicações relativas ao lucro do filme. E está tudo certo. É assim que o mercado funciona mesmo. E isso também é cinema brasileiro. Cinema feito por quem tem dinheiro para fazer seu próprio filme também é cinema brasileiro.

Acho o Oscar uma bobagem, mas estava todo mundo berrando e chorando. Essa sensação de orgulho de fazer cinema se explica por que nós passamos seis anos desde o Governo Temer sendo tratado como o lixo da humanidade. Imagina que alívio, que delícia sentir isso agora! Porém, não é um bilionário que vai contar a história preta. Não é o Walter Salles que deveria fazer isso. O fato de existir uma pessoa com a quantidade de dinheiro que ele tem significa que, para ele estar nesse lugar, muitas histórias pretas tiveram que ser apagadas. É intrínseco à lógica. Então é uma perda de tempo nossa cobrar de um bilionário que ele se ocupe conosco. E mais do que isso, que ele se ocupe conosco para ganhar dinheiro. Porque é isso que a história do Brasil sempre fez. Nossas imagens, nossos corpos, nosso suor e nossas histórias sempre alimentaram bolsos alheios. Mas para o cinema brasileiro, esse filme é inevitavelmente muito importante. 

Ganhar um Oscar para qualquer cinematografia nacional é muito importante, seja para se pensar uma indústria do cinema, seja para se pensar como que uma sociedade olha para si mesma e valoriza o seu próprio cinema, sobretudo em um contexto de Brasil em que nós passamos os últimos seis anos anteriores ao governo Lula apanhando para caramba com a política pública jogando a sociedade contra nós. É muito importante o que estamos vivendo agora, só que isso não pode ser fogo de palha. É aí que entra a cobrança por política pública consistente. 

A gente produz muitos filmes anualmente, mas esses filmes não dão conta de abarcar a multiplicidade brasileira, subjetiva, cultural, territorial, de gênero, de raça etc. Então, a política pública tem que intervir para que o cinema brasileiro não seja mais identitário. De que Brasil a gente fala quando a gente fala de cinema brasileiro? Que Brasil é esse que o exterior conhece enquanto cinema brasileiro? É um cinema branco, de classe média e masculino. Mas isso não é o Brasil. 

É preciso que haja um cinema verdadeiramente brasileiro. O que é cinema brasileiro? Cinema negro é cinema brasileiro. No Fórum de Tiradentes havia muitas pautas urgentes a serem discutidas, a regulação do VOD (Video On Demand), a industrialização, a lei 13.006 de 2014, que coloca cinema em sala de aula, ou seja, questões macro, mas as nossas questões relativas ao cinema negro ficaram diluídas, apesar de não terem sido negadas. E isso eu lamento um pouco. É preciso que o CONDECINE, que vai vir do VOD, tenha parte direcionada para a produção negra no sentido de ação afirmativa e reparação histórica. Mas, se não tiver regulação do VOD, como a gente faz isso? Então, a gente se une à luta pela regulação do VOD primeiramente. Portanto, o cinema negro só vai existir nesse contexto industrial através de política pública e a gente precisa colaborar com o fortalecimento dessas políticas. Mas, óbvio, que aí entra um impasse que está relacionado à própria dinâmica do capitalismo. E particularmente isso é sempre uma angústia permanente. Porque há uma contradição instalada.

FICINE – Com certeza há. Como é que a gente quer entrar nesse lugar não é mesmo?

TATIANA CARVALHO COSTA – São coisas inconciliáveis. A acumulação do capitalismo pressupõe um marcador hierárquico racial forte. Como que a gente faz para pertencer a um sistema que, para ser forte e existir, precisa nos excluir? Como nós, pessoas negras que trabalhamos com o cinema, podemos discutir e nos ver nas discussões sobre industrialização do cinema sabendo que isso pressupõe o fortalecimento dessa dinâmica capitalista? É complexo. A resposta não é simples. E a resposta não pode ser: “não podemos fazer parte disso”. A gente precisa amadurecer coletivamente nesse sentido para qualificar melhor as discussões de política pública no país mais negro fora da África. E digo mais uma vez, é urgente que o Brasil pare de ter um cinema identitário: majoritariamente branco, classe média e sudestino.

FICINE –  Quero você comente sobre o “Tela Brasil”, o streaming do governo federal. Você acha que essa será uma ferramenta importante para a democratização racial no cinema brasileiro?

TATIANA CARVALHO COSTA – Sim, vai ser super importante. Tem muita gente que não gostou porque não entendeu ou não quer aceitar que o Brasil é um país de brutais desigualdades. Nem todo mundo tem dinheiro e jamais terá como prioridade tirar do seu bolso a mensalidade de uma Netflix. Não é prioridade pagar uma plataforma de streaming para uma família que precisa se virar para sobreviver com um salário mínimo. Além disso, o Tela Brasil não será só esse lugar para exibir filmes brasileiros feitos com dinheiro público. Os Streamings Independentes Brasileiros estão tentando um acordo com a plataforma Tela Brasil para terem um espaço para recomendarem seus conteúdos. É um tipo de cinema que as grandes plataformas comerciais não querem nem saber, como, por exemplo, uma quantidade imensa de curtas-metragens produzidos por pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+. Tem, por exemplo, a TodesPlay, a Cardume, a Amazônia Flix, e também tem uma plataforma chamada HandsPlay, prioritariamente para pessoas com deficiência. É uma plataforma de acessibilidade radical. 

Além disso, a Tela Brasil vai ser fundamental para um circuito de circulação de filmes para o contexto que vai ser estimulado pela regulamentação da Lei 13.006, que é a lei que determina o mínimo de duas horas de produção independente brasileira no contexto da educação básica. E essa regulamentação, me parece, que vai ser muito boa para os cinemas negros, porque existe uma confluência quase que orgânica entre o cinema, no contexto da educação básica, e o ensino de cultura africana e afro-brasileira. Além disso, o streaming do governo vai ser muito importante para a formação de público. A sensibilidade dessa galera das gerações Z e Alpha é outra, a economia da atenção é outra e têm uma questão cognitiva de atenção muito forte. 

É uma geração que precisa, inclusive, dar conta de nutrir a sua cognição com mais tempo de narrativa porque está ali acostumado a só passar o feed com um minuto de vídeo. Eu dou aula há 20 anos e ao longo do tempo, meus estudantes foram ficando cada vez menos tolerantes ao longa-metragem. A gente tem que fazer um pacto de não ligar o celular durante a exibição de um longa em sala de aula. Então, o curta-metragem já ajuda nesse contexto. E a Tela Brasil está atrelada a outros programas do governo que ampliam o acesso à banda larga, pois não adianta uma plataforma de streaming se as pessoas não têm acesso à internet. Então o Tela Brasil pode ser bom para os cinemas negros nesse sentido da difusão. Principalmente porque as pessoas querem se ver nas telas.

FICINE – Em tempos de ascensão da extrema direita no mundo e de um retorno, sem pudor, de símbolos fascistas e supremacistas, você acredita que o fortalecimento das políticas públicas de investimento no audiovisual no país funciona como uma estratégia para impedir que esses extremistas retornem ao poder no nosso país? 

TATIANA CARVALHO COSTA – Eu não acho que exista uma relação direta. No Brasil e no mundo, estamos ouvindo falar dessa “agenda anti-woke”, que nada mais é que um novo nome para a supremacia branca e a eugenia. Nos Estados Unidos, essa semana, as Forças Armadas, colocaram um símbolo nazista, um símbolo que o Hitler usava para marcar pessoas LGBTQIAPN+ para dizer que eles não cabem nas Forças Armadas. Então, é isso que a gente está vendo: eugenia. A agenda anti-woke, que é inclusive um nome horroroso, está dando um verniz de novidade para um negócio que está aí desde sempre e que agora está aumentando. É muito complicado porque o cinema não nos salvará. Não tenho esse otimismo, mas, eu tenho convicção de que é nisso que temos que apostar para a descolonização dos imaginários. A Beatriz Nascimento quando vai falar de Quilombo, ela diz que a prática de Quilombo não é só a prática de guerra, mas também há a paz quilombola como prática. Porque é aí que há uma invenção propositiva de um modo de vida humana e livre, mesmo dentro do horror de uma sociedade escravista. É uma sociedade dentro da outra. Ela diz que isso é uma correção da nacionalidade. É dar conta de dizer para o Brasil o que o Brasil pode ser. Então, acho que a gente tem a oportunidade agora, em diversas áreas, de ser uma referência opositora para o mundo, para a América Latina e para nós mesmos. Porque eu e você só estamos aqui hoje porque quem veio antes da gente acreditou em outras coisas. Por isso que eu estou falando que a agenda anti-woke não é novidade. Antes da abolição vieram 400 anos de escravização. Após a abolição, veio a eugenia. A gente nunca foi considerado nesse sistema. E a gente sempre esteve aqui, sobrevivendo e fazendo coisas incríveis.

A longa viagem de Soulaymane Cissé

Janaína Oliveira

Quando em 1969 Soulaymane Cissé terminou seus estudos de cinema no Instituto VGKI em Moscouhavia, havia se passado apenas três anos do lançamento de La noire de… filme de Ousmane Sembène que é considerado o primeiro longa metragem feito por um realizador negro africano. No ano seguinte, Cissé retornou para o Mali, sua terra natal, dando início efetivamente ao trabalho com cinema, primeiramente como cameraman e repórter, realizando filmes no interior do país para o Serviço Cinematográfico do Ministério de Informação, para depois ingressar na carreira de cineasta e, posteriormente, de produtor ao fundar em 1977 a companhia Les Films Cissé (Sisé Filimu).

A experiência cinematográfica do diretor malinês está diretamente ligada às diretrizes que caracterizam as primeiras décadas de surgimento do cinema africano, isto é, um cinema feito por africanos, com temas africanos, para um público africano, tal como definido por Manthia Diawara, professor e estudioso, conterrâneo de Cissé e um dos maiores especialistas nas cinematografias do continente. Tal como se observa na obra de Sembéne, a prerrogativa central para Cissé era criar um repertório de imagens e histórias que se contrapusessem ao universo de representações negativas sobre o continente que tradicionalmente povoam o repertório das imagens eurocêntricas. “Os que vieram filmar aqui jamais mostraram as pessoas como seres humanos. Eles nos filmaram de qualquer maneira (….). O cinema dos brancos mostra que os africanos não pertencem à comunidade humana, que são como animais. Filmaram rios com mais respeito!”, afirmou Cissé de maneira contundente em 1991, na entrevista para série documental Cinéastes de notre temps, do diretor cambojano Rithy Panh. Exibir as injustiças e mentiras que as imagens produzidas sob a égide do olhar do colonizador, que durante décadas perpetuaram estereótipos negativos e estanques sobre as culturas africanas, tal a tarefa dos cineastas desta geração.

Em entrevistas diversas, concedidas em diferentes momentos de sua carreira, Cissé aponta o contexto da luta contra a dominação colonial como origem central de seu desejo em se tornar cineasta. Ainda que o cinema seja uma paixão desde a infância, o cineasta afirma que momento exato em que optou por fazerdo cinema seu métier foi ao assistir um documentário sobre a prisão de Patrice Lumumba, líder político que promoveu a luta de independência do Congo em 1960. A violência das imagens de Lumumba amarrado, a forma como foi brutalmente tratado, foi determinante para o então jovem estudante decidir fazer do cinema uma arma contra as forças coloniais que mesmo após as independências se faziam presentes nas relações políticas, econômicas e, sobretudo, culturais. A descolonização das telas, chamada levantada pelo crítico tunisiano Tahar Cheriaa, fundador da Jornada Cinematográfica de Cartago, que junto com Sembène protagoniza a articulação política desse primeiro momento do cinema africano, é assumida por Cissé como missão. Daí seus primeiros filmes serem reconhecidos como políticos e, por vezes, até pedagógicos.

Na mostra inédita que agora o IMS traz para o Brasil, estão presentes alguns desses filmes, mais precisamente, dois curtas metragens, Sources d’inspiration (Fontes de inspiração) de 1968 e Chanteurs traditionnels des îles Seychelles (Cantores tradicionais das Ilhas Seycheles) de 1975, juntamente com dois de seus longas metragens mais consagrados, a saber, Baara (O trabalho, cena do filme na imagem abaixo) de 1978 e Finyé (O vento) de 1982. Baara, segundo longa metragem do diretor, foi ganhador do prêmio de melhor filme da edição de 1979 do Fespaco, Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou, em Burkina Faso, maior festival do continente e o segundo mais antigo, só não mais antigo que o já citado festival de Cartago. Proeza repetida em 1983 com Finyé, fato até então inédito na história do Festival.

Com Yeelen (A luz), terceiro longa do diretor presente na Mostra do IMS,Cissé apresenta um novo caminho narrativo, que segundo críticos e comentadores do cinema africano, o afastaram do cinema das narrativas sociais realistas ao estilo sembéniano. O filme se desenvolve universo dos rituais Komo, pertencentes a um código cultural específico da cultura malinesa, trazendo para telas do cinema africano outra abordagem do tempo e dos espaço em relação às tradições locais. Yeelen (imagem abaixo) inaugura uma série deproduções com longos planos com som natural, com closes que enaltecem a beleza dos personagens e suas tradições sobretudo no período anterior a chegada dos colonizadores europeus. Esse estilo narrativo, que Diawara chama de “retorno às origens”, vai caracterizar as obras da segunda geração de cineastas africanos,como nos filmes dos burkinabés Gaston Kaboré e Idrissa Ouedraogo. Contudo, uma crítica recorrente a esta geração é que o afastamento da crítica política e social tornariam os filmes mais próximos ao gosto das plateias ocidentais. Fato é que o filme ganhou o grande prêmio do júri no Festival de Cannes em 1987, feito também até então inédito na história do cinema africano, dando a Cissé o reconhecimento fora do continente africano.

“Se Yeelen é diferente de Finyée Baara”, diz Cissé em entrevista a Frank Ukadike em 1997 duranteo Fespaco, “pode ser porque acima de tudo diferentes impulsos dirigem cada criação. A mudança de estilo pode ser deliberada. Depois que fiz Finyée Baara, eu fui rotulado de cineasta político e alguns diziam que meus filmes eram muito didáticos. Mas um artista deve ter a liberdade de experimentar com tema, conteúdo e estratégia narrativa”. A fala do diretor, três décadas após o seu debut como cineasta, revela também a transição de sua cinematografia que dialoga com diferentes momentos da produção de filmes na África. “Cada filme meu é uma longa viagem”, afirmou certa vez o cineasta.

Janaína Oliveira e Soulaymane Cissé no Fespaco de 2023

Texto publicado originalmente para a mostra sobre Soulaymane Cissé no IMS, em São Paulo.

Cinema diaspórico no FESPACO: uma conversa com Janaína Oliveira

Vinícius Dórea

Um festival de cinema de tradição estabelecida, cuja força se produz nos laços de criação e pensamento dentro do território africano e para além dele. Um festival que não precisa pedir licença a ninguém. Menos ainda para as chancelas do Norte Global de como esse cinema deve existir, resistir e co-existir com a comunidade. O Fespaco, que acontece desde 1969, dá largada a mais uma edição neste 22 de fevereiro de 2025, desta vez com uma forte presença de filmes brasileiros na sua programação oficial. Janaína Oliveira, curadora, membra do FICINE e longa frequentadora e parceira do Fespaco, conversa um pouco sobre as particularidades do festival e a importância de construir novas pontes entre o cinema brasileiro e o cinema feito em África, e fala sobre as conversas que ela está ajudando a promover este ano durante o evento. 

FICINE –  O Fespaco é um dos primeiros festivais do continente africano e o maior existente hoje na África. Porém as pesquisas sobre o festival são escassas, principalmente em português. O que você pensa sobre essa ausência e por que ela acontece?

Janaína Oliveira – Primeiro, a gente precisa ter uma leitura mais ampla tanto sobre os estudos africanos de modo geral, da história e cultura africana, quanto sobre os estudos sobre o cinema africano também. No Brasil, o campo de estudos africanos, não sobre cinema especificamente, mas sobre a África, no geral, é muito recente. Em grande parte esses estudos se restringiram a uma África Lusófona, ou seja, sobre Angola e Moçambique, majoritariamente. Até temos alguma coisa sobre Cabo Verde, mas pouquíssima coisa sobre São Tomé e Príncipe. No campo do cinema, os estudos sobre cinema africano também são muito recentes. Essa ausência se dá também por conta da barreira linguística, porque o FESPACO está na África do Oeste e grande parte das reflexões feitas lá são em francês ou em inglês. Quando o FESPACO fez 50 anos, a Black Camera, uma revista estadunidense de Indiana University Press, fez uma edição comemorativa de três volumes sobre o Festival. Mas isso foi há 5 anos. Então acho que tem uma coincidência entre a questão da barreira linguística e o quão recente é o campo de estudos de cinema africano no Brasil que aí se coincide também com o campo de estudos de cinema de história e cultura africana, de um modo geral. E ainda o fato que se sabe muito pouco sobre cinemas africanos aqui no Brasil. De uma forma mais analítica do ponto de vista histórico, você tem alguns estudos sobre filmes, sobre algumas características, como as tradições orais. Mas ainda é um campo de pesquisa bastante novo. São pouquíssimas pesquisadoras e pesquisadores que se dedicam a estudar cinemas africanos. Mas vem crescendo o interesse das pessoas sobre os festivais no continente e sobre a história do FESPACO. Esse ano o FESPACO recebeu um número inédito de filmes brasileiros e alguns deles chegaram na seleção oficial. Mas foram muito mais filmes recebidos do que, obviamente, os que estão ali. Então isso é bacana também.

FICINE – Você enxerga o Fespaco como uma ponte transatlântica entre os africanos e os afrodiaspóricos? E o que acha que o festival tem a ensinar sobre cinema para o nosso país?

Janaína Oliveira – Vou responder a essa pergunta falando como eu tomei conhecimento da existência do FESPACO. A primeira vez que fui ao FESPACO foi em 2011, então soube da existência do festival, provavelmente em 2007 ou 2008, quando comecei a frequentar o Encontro de Cinema Zózimo Bulbul e vi o Zózimo falar. O Encontro estava sempre falando como esse festival de cinema na África era uma coisa incrível. Falavam que a abertura e encerramento aconteciam em um estádio de futebol. Também falavam que era uma cidade inteira respirando cinema e pessoas de todo o continente reunidas. Eu tenho uma história muito linda que soube através do diretor do Pan-African Film Festival (PAFF), que acontece em Los Angeles. O nome dele é  Ayuko Babu, e ele me falou que a primeira vez que ele conheceu o Zózimo foi em uma praça chamada Praça dos Cineastas que fica no centro de Ouagadougou. Essa praça tem uma escultura que são rolos de câmera empilhados, mas também parece uma câmera ou uma bateria antiaérea transmitindo essa ideia de que o cinema realmente é uma arma. Na frente dessa escultura, tem uma fila de esculturas de cineastas, a começar pelo Ousmane Sembène, que nunca ganhou o prêmio principal, mas é ele segurando o Étalon d’or de Yennenga, que é o prêmio principal do FESPACO. Depois tem algumas estátuas enfileiradas de alguns cineastas mais antigos. O Ayuko Babu (foto abaixo) me contou que conheceu o Zózimo sentado aos pés da estátua do Sembène. Bom, eu penso nessa história para responder essa pergunta sobre o FESPACO ser uma ponte. O FESPACO é uma ponte transatlântica e eu aprendi muito com ela. Há uma questão pan-africana muito bonita no festival, que está na origem do Prêmio Paul Robeson. Então essa  ponte diaspórica carrega uma história muito forte,  mas que com o passar dos anos foi se desarticulando, principalmente por causa do assassinato do Thomas Sancara. Nos últimos anos, nossa presença lá vem fortalecendo essa conexão do Brasil com o Festival. Venho trabalhando para articular no festival a presença das diásporas no geral e não só a presença do Brasil. Retomar o prêmio Paul Robeson foi um passo importante por que nós destacamos a sua relevância histórica e simbólica. Mas também estamos pensando nas articulações contemporâneas, nos esquemas de coprodução entre a África e as diásporas. Então o FESPACO continua sendo essa ponte transatlântica que tem tudo para se expandir e fortalecer ainda mais essa história. Lélia González já foi para o festival provavelmente em 1989 ou em 1991. O filme Ôri, da Raquel Gerber, ganhou o segundo prêmio Paul Robeson. O Joel Zito Araújo também já ganhou o Prêmio Paul Robeson quando o FESPACO fez 50 anos. Então, usando a expressão da Beatriz Nascimento: tem muita transatlanticidade nessa história entre o FESPACO e os cinemas de diásporas. 

FICINE- Quais são os desafios do Fespaco para manter sua relevância e influência frente à crescente globalização do cinema e às mudanças nas plataformas de distribuição?

Janaína Oliveira – Antes de tudo é preciso dizer que o FESPACO é uma tradição estabelecida. Ele não precisa lutar para manter sua relevância porque ele já é relevante. Frequento o FESPACO desde 2011, então agora em 2025 serão 14 anos e 7 edições que eu participo e algo de muito bonito que acontece no FESPACO é que o festival parece uma reunião de família. Eu sinto que eu tenho uma família de cinema que se encontra a cada dois anos em Ouagadougou. E sempre que nos encontramos é como se a gente tivesse se visto todos os dias nesses dois anos. É um lugar onde estão pessoas de diferentes gerações. Há pessoas que chegaram lá, como eu, mais novas, e pessoas que já estão lá há 30 anos fazendo isso. A June Givanni, por exemplo, que é fundadora do Pan-African Cinema Archive, vai no FESPACO desde os anos 80. Esse ano ela estará comemorando 40 anos de FESPACO. O FESPACO tem uma relevância que se perpetua, porque ele tem muita história. Porém ele passa por questões que todos os festivais de cinema do sul global não hegemônicos enfrentam, que é a luta por financiamento. O FESPACO é uma iniciativa do estado, então, a situação política do Burkina Faso influencia na realização do festival. O novo presidente interino, Ibrahim Traoré, que assumiu o poder há três anos atrás, tem uma posição supercrítica em relação à França, então o país vem construindo uma aliança política com o Mali, Níger, Chade, no sentido de embargar de vez a dominação francesa na economia e nas dinâmicas culturais, e isso, obviamente, impacta na receita do festival. Por outro lado, do ponto de vista da indústria, o FESPACO vem melhorando, principalmente por causa da chegada do Alex Moussa Sawadogo na direção do festival, que vem modernizando todos os debates nos setores de indústrias e trocas. Então, o FESPACO vem se fortalecendo como esse lugar onde todo mundo quer estar porque carrega muita tradição e história, mas também por que é um lugar interessante para pensar negócios de cinema. Além do MICA, o Mercado Internacional de Cinema Africano, tem também o Yennenga Coprodução, que são laboratórios de coprodução, tem uma sessão que se chama FESPACO PRO, tem o Yennenga Connection, que reúne uma série de debates, inclusive onde vou estar moderando três mesas redondas. 

FICINE – Quais são essas mesas?

Uma mesa será sobre o Prêmio Paul Robeson, falando sobre o presente, passado e futuro dessa celebração da presença da diáspora. Outra mesa redonda será um estudo de caso sobre os acordos de coprodução entre o Brasil e a Nigéria e o Brasil e a África do Sul. Essa contará com representantes do Ministério da Cultura da Nigéria, representantes do National Film & Video Foundation (NFVF) da África do Sul e com a presença da Tatiana Carvalho, como membro do Conselho Nacional de Cinema. E uma última mesa sobre as circulações de filmes das diásporas em que a gente vai ter representantes de festivais e distribuidores fazendo essa conversa. 

FICINE –  Qual o impacto que o Fespaco teve sobre a sua visão pessoal de cinema?

Janaína Oliveira – Bom, vamos lá.  Eu e o FESPACO, o FESPACO e eu. Assim como o encontro com o Zózimo foi uma virada de chave na minha trajetória e a minha vida se divide entre antes e depois do Zózimo, creio que o FESPACO também representa essa virada de chave na minha vida. Então, ir para o FESPACO, presenciar essa história e poder falar e escrever sobre o festival aqui no Brasil foi muito importante mesmo pra mim. Foi no FESPACO que conheci pessoas que realmente mudaram minha vida. Durante muitos anos da minha vida em Ouaga, eu passei muito tempo com o cineasta de Burkina Faso, Idrissa Ouédraogo, acompanhando ele nas dinâmicas do dia a dia, e conhecendo Ouagadougou. Idrisso, infelizmente, faleceu em 2018, de desgosto, por não conseguir mais fazer filmes. Mas, enfim, passei muito tempo com o Idrissa e ele me contava a história dos cinemas africanos através da experiência dele, me contando todas as dinâmicas e fazendo análises críticas. E também como já tive a oportunidade de conversar muito com outros cineastas dessa geração mais recente e também da geração do Ousmane Sembéne. Já passei muito tempo com o Souleymane Cissé, com o Gaston Kaboré, com o Cheikh Oumar Sissoko. O Cheikh Oumar mais no Rio de Janeiro do que em Burkina Faso. Também conheci Pedro Pimenta, que é um produtor moçambicano que foi consultor da Unesco para um grande dossiê sobre os cinemas africanos. Também convivi com a June Givanni, que é um acervo vivo dos cinemas da África e da diáspora. Inclusive, minha pesquisa de pós-doutorado dialoga com o acervo dela. Tem também a Jihan El-Tahri, uma cineasta do Egito, que é também uma grande produtora de cinema e professora. Também entrevistei Moussa Sene Absa e Alain Gomis, cineastas do Senegal. Aprendi sobre os cinemas africanos vivendo o FESPACO. Como diz a frase: “Quando amamos o cinema, vivemos o FESPACO”. Então, o FESPACO é uma mudança na minha vida e estou muito feliz em estar indo novamente para o Ouagadogou este ano e viver mais uma semana de alegrias, emoções e muito cinema. Cinema de manhã, de tarde e de noite, junto com a comunidade dos cinemas africanos e pan africanos que se encontram na cidade.

Paul Robeson e os debates sobre cinema diaspórico no FESPACO

No próximo dia 22 de fevereiro começa, em Ouagadougou, capital de Burkina Fasso, uma nova edição do mais importante festival de cinema do continente africano: FESPACO. Uma edição que, precisamos ressaltar, tem uma importante e histórica presença brasileira em sua programação oficial. No festival, serão exibidos o aguardado longa de ficção de Antônio Pitanga (na competitiva de longas), Malês, e os curtas Deixa, de Mariana Jaspe, Zion, de Licínio Januário (ambos na competitiva de curtas), Jussara, de Camila Ribeiro (na competitiva de animação), Quem é essa mulher, também de Mariana Jaspe (na competitiva sessão Semana da Crítica), Othelo, o Grande, de Lucas Rossi (na não-competitiva sessão Panorama) e Origem, de Emília Sanchez (na não-competitiva sessão Fespaco VR). Trata-se de uma presença importante de ser celebrada no Brasil. Por que? Um pouco de história:

Criado em 1969, o festival começou somente nos anos 1980 a debater a presença de filmes da diáspora africana em sua programação. Esses debates levaram à criação do Prêmio Paul Robeson em 1989, como uma iniciativa para contemplar filmes diaspóricos, ou seja, de realizadores negros fora do continente. A foto abaixo, com a presença de Haile Gerima, diretor, a pensadora brasileira Lélia González e a diretora senegalesa Safi Faye, possivelmente tirada no FESPACO de 1989, é uma prova dessas conversas pan africanas. A imagem é do acervo do próprio Gerima enviada para Janaína Oliveira, cuja pesquisa de pós-doutorado em andamento é sobre este tema.

No entanto, após o assassinato de Thomas Sankara, líder político de Burkina Fasso, todos esses esforços se dissiparam gradualmente e, ainda que o prêmio continuasse a existir, sua relevância histórica e política se esvaziou.

Lutar pela presença desses filmes na programação do festival se tornou, em tempos mais recentes, uma questão importante não somente para realizadores diaspóricos vivendo no Norte Global, mas sobretudo para um território como o Brasil, que vem lutando por políticas públicas que contemplem realizadores negros.

Foi somente em 2023, na última edição, que uma nova iniciativa de integração foi tomada por meio da Conferência “A presença das diásporas no FESPACO”. O objetivo foi não apenas retomar as perspectivas históricas desse processo, mas também desenvolver um plano de ação para fortalecer a presença de cineastas e festivais da diáspora e de agências de financiamento, estimulando redes de acordos de cooperação internacional.

Cineastas e pesquisadores diaspóricos estiveram presentes no festival em 2023, assim como as seguintes instituições: SPCine Sociedade Cinematográfica e Audiovisual de São Paulo (Brasil), Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul (Brasil), MUICA – Festival de Cinema Africano da Colômbia, Toronto International Film Festival (Canadá), Festival Diasporama (Martinica) e African Film Festival New York (EUA).

Quem foi Paul Robeson? (e por que o prêmio que leva seu nome é tão importante para o FESPACO)

No fim de 1925 (leia-se, 100 anos atrás), Oscar Micheaux, precursor diretor negro estadunidense, lançava aquele que seria um dos seus filmes mais disputados criticamente: Body and soul. Em português: Corpo e alma. O filme marca a estreia de Paul Robeson no cinema e nele o ator é ao mesmo tempo um ex-presidiário que se passa por um pastor para abusar da fé de uma comunidade, além de iludir e estuprar uma moça dessa congregação, mas também interpreta o irmão gêmeo desse sujeito, o rapaz pobre e inocente da história. Um clássico absoluto do cinema negro justamente por mostrar as várias camadas o que a humanidade é capaz de revelar.

O fato é que depois disso Robeson se tornaria o primeiro protagonista negro em filmes comerciais nos EUA, alguns deles sucessos de bilheteria pra época, vale ressaltar. Mas não só isso. Foi ator de teatro, cantor e no ápice de seu sucesso, se tornou um ativista político contra o fascismo e o racismo naquela “Nação” cujo nascimento se fundava sobre bases supremacistas. Robeson foi duramente perseguido pelo macartismo, e sabe-se que o arquivo com os dados de vigilância sobre ele é, até hoje, um dos mais extensos já produzidos pelo FBI sobre um artista.

A proposição de Gerima de ter Paul Robeson no nome de um prêmio para o cinema negro feito fora do continente africano, mas profundamente afetado pelas violências coloniais que sangraram esse mesmo continente, é uma forma de lembrar que o gesto político é indissociável do cinema.

Em 2025, o prêmio Paul Robeson voltará a ser a celebração da presença das diásporas no Fespaco e será anunciado na mesma cerimônia de premiação dos principais prêmios do festival, no dia 1º de março. O júri é composto por Nataleah Hunter-Young (programadora do Toronto Internacional Film Festival) como presidente, o programador independente anglo-francês Themba Bhebbe e o cineasta Franco-burkinabé Fabien Dao.

Além dele, o evento contará com debates que vão reunir profissionais e pesquisadores do audiovisual para pensar diálogos diaspóricos que vão discutir: o passado, presente e futuro da própria ideia do prêmio Paul Robeson, experiências concretas de co-produção entre Brasil e Nigéria e Brasil e África do Sul e circulação de filmes africanos fora do continente africano.

Janaína Oliveira, membra do FICINE e uma das curadoras do FESPACO, é quem desde 2023 organiza os debates sobre a presença das diásporas no Fespaco e o Prêmio Paul Robeson.

Descolonizando telas: o FESPACO e os primeiros tempos do cinema africano

O texto abaixo é uma versão reduzida do artigo publicado por Janaína Oliveira no primeiro catálogo da Semana de Cinema Negro de BH, de 2021. Para ler a versão completa, com todas as referências bibliográficas, clique aqui. Este é o primeiro de alguns textos que vamos publicas nas próximas semanas sobre o FESPACO, cuja edição 2025 começa no próximo dia 22 de fevereiro, e contará com a presença de membras do FICINE.

Janaína Oliveira

“Quando amamos o cinema, vivemos o FESPACO”. Lemos esta frase em uma faixa de rua eternizada em foto de Michel Ayrault. A faixa, afixada em uma rua no centro de Ouagadougou, capital de Burkina Faso, nos fornece uma dica sobre a importância que este Festival possui para o cinema africano: amar o cinema (africano) é viver o Festival Pan-Africano de Cinema Televisão de Ouagadougou. Criado em 1969, o FESPACO é uma parte fundamental na trajetória do cinema africano de tal forma que é possível ter na sua história um fio condutor para entender as diversas nuances, dinâmicas e complexidades que apontam o curso dos acontecimentos que marcam o fazer filmes no continente nas últimas cinco décadas.

Segundo festival de cinema criado na África – o primeiro foi a Jornada Cinematográfica de Cartago em 1966 –, o FESPACO tornou-se já nas primeiras edições o maior do continente. Para que se dimensione o tamanho do evento, na última edição, ocorrida em 2015, foram recebidos 720 filmes, dos quais 134 foram selecionados para exibição durante os sete dias de Festival. As projeções ocorrem da manhã à noite, em salas de cinema no centro e na periferia de Ouagadougou. Além disso, as cerimônias de abertura e encerramento do Festival acontecem no estádio de futebol, com apresentações de dança, música, acrobacias e fogos de artifício. Trata-se de uma festa aberta ao público e que mobiliza toda a capital.

Os acontecimentos que levaram ao surgimento do FESPACO, os cineastas, filmes e países que passam a integrá-lo, os vencedores dos Étalons de Yennenga (prêmios concedidos aos filmes na mostra competitiva), os diversos prêmios distribuídos, a aclamação do público, a presença da mídia internacional, enfim, todos os elementos que compõem sua história, têm servido a cineastas, curadores, pesquisadores e estudiosos da temática tanto como um termômetro de tendências cinematográficas quanto de direcionamento das políticas de cultura presentes nos caminhos do cinema continente. Além disto, sua história se conecta diretamente com os acontecimentos e debates no âmbito das políticas do continente, como por exemplo da consolidação e crise do movimento pan-africanista e dos dilemas observáveis nos processos de estabelecimento das nações após as independências. “O Fespaco é um festival que se integra plenamente na evolução do continente”.

Busco aqui apresentar alguns dos elementos que entrelaçam o desenvolvimento do cinema africano à história do FESPACO, no intuito de montar não só um panorama histórico do Festival mas também para procurar elementos que ajudem a compreender o cenário de desenvolvimento da produção de filmes na África. O caminho aqui escolhido segue a linha de debates que vêm acontecendo em um campo de pesquisa diverso chamado “Estudos de Cinema e Mídia Africanos”. Trata-se de um campo de investigação relativamente recente que se consolida sob o signo do múltiplo, com discursos que buscam abordagens baseadas em referenciais multidisciplinares. Mais especificamente, é um caminho no qual a produção cinematográfica é sempre analisada em uma perspectiva que conjuga os processos de produção de filmes na África com considerações sobre os contextos culturais, políticos e econômicos mais amplos.

Em outras palavras, os campos da estética e da história são pensados de forma conectada, sem hierarquias fixas ou pré-determinadas, mas sempre de maneira relacional. Tal como afirma Mbye Cham, um dos maiores especialistas nas cinematografias africanas, quando diz que os filmes africanos “constituem uma forma de discurso e prática que não é só artística e cultural, mas também intelectual e política. É uma forma de definir, de descrever e interpretar as experiências africanas cujas forças modelaram seu passado e seguem modelando e influenciando o presente”.

A opção por pensar de maneira relacional processos estéticos, políticas de produção e distribuição de cinema aliados a contextos históricos, se coaduna também com o escopo das discussões que predominam em parte dos fóruns de cinema que ocorrem no continente e na diáspora africana. Espaços de discussão como, por exemplo, a ABCD (Câmara criada pela Unesco para discussão e fomento dos cinemas de África, Brasil, Caribe e Diáspora, composta por realizadores africanos e afrodiaspóricos), e também nos colóquios que ocorrem por exemplo durante os festivais. Ou ainda nos debates que se passam nos colóquios que o CODESRIA (Conselho para o Desenvolvimento das Ciências Sociais em África) realiza regularmente durante o FESPACO, visando diminuir a distância existente entre realizadores/as e intelectuais que pensam o cinema africano.

Assim sendo, começarei as reflexões aqui propostas a partir do contexto de surgimento do FESPACO, contexto este que coincide com os primeiros tempos do cinema africano. Entender as questões em pauta naquele momento nos ajuda a compreender as dificuldades oriundas do impacto da dominação colonial nos modos de fazer cinema que refletiram de diversas formas nas produções africanas nas décadas subsequentes. Trata-se de compreender, mesmo que brevemente, o momento em que a África não era ainda objeto de si mesma no campo audiovisual, existindo apenas cinematografada pelo olhar europeu e como audiência para filmes estrangeiros.

Da África cinematografada à África Cinematográfica

As expressões “África cinematografada, África cinematográfica” foram cunhadas pelo cineasta francês René Vautier e sintetizam as transformações nos modos de produção e circulação das imagens em movimento durante o início da segunda metade do século XX.14 Em certo sentido, a África cinematografada diz daquele universo de imagens e práticas as quais o realizador se recusou a corroborar quando de seu primeiro contato direto com processo de colonização. Contratado em 1949 pela Liga Francesa de Ensino para fazer uma reportagem sobre a vida nas colônias da França no centro-oeste africano, Vautier, chocado com a realidade que encontrou, se negou a fazer um filme de propaganda colonial (a rigor, a reportagem tinha propósitos pedagógicos). Ao invés disto, realizou um filme de crítica ao sistema, denunciando a violência e abusos sofridos pelos povos africanos nas colônias francesas. Surgiu assim Afrique 50 (imagem abaixo), curta-metragem preto-e-branco com dezessete minutos, feito em 16mm e considerado o primeiro filme anticolonialista feito sobre e no continente africano. A filmagem, montagem e difusão do filme foram feitas totalmente na clandestinidade e Vautier foi punido posteriormente pelo governo francês, tendo sido condenado a um ano e um dia de prisão.

A história de Afrique 50 nos ajuda a compreender as estruturas criadas pelo sistema colonial que justificam o aparecimento tardio do cinema africano na década de 1950. Quando Vautier chega no oeste africano vigorava desde 1934 um decreto regulamentando a produção de filmes nesta parte do continente. Implementado por Pierre Laval, responsável pela estrutura colonial na época, o Decreto de Laval, tal como ficou conhecido, estabelecia que para se fazer filmes era preciso obter autorização prévia do Ministro das Colônias Francesas. Cabia ao Ministro autorizar não só roteiro mas também as pessoas envolvidas na produção, tendo o poder de vetar tudo aquilo que estivesse em desacordo com a perspectiva do colonizador francês.

Além da censura da produção de filmes, também a distribuição e exibição das películas eram reguladas pelo governo da França. Assim sendo, mesmo que algum realizador chegasse a concluir um filme, a possibilidade de vê-lo distribuído e projetado em uma sala de cinema local era difícil. Isto porque duas companhias francesas, a Companhia Africana Cinematográfica Industrial e Comercial (COMACICO) e a Sociedade de Exploração Cinematográfica Africana (SECMA) controlavam a distribuição de filmes e os programas das salas de cinema.

Em tal contexto, em termos do que era assistido predominavam os filmes hollywoodianos. Sobretudo as películas de faroeste. É comum ler nas entrevistas dos cineastas que compõem a primeira e mesmo a segunda geração de realizadores africanos menções ao gênero como aquele que a maioria viu nos primeiros contatos com cinema durante a juventude. A presença de westerns encontra-se também referenciada nos filmes, como, por exemplo, na construção de um dos personagens principais de Touki Bouki, a viagem da hiena, do senegalês Djibril Diop, filme de 1972 que inaugura a vanguarda do cinema africano. Mori, protagonista do primeiro longa-metragem Mambéty, é um vaqueiro que traz em suas roupas o estilo dos vaqueiros de bangue-bangue estadunidense.

Ainda sobre este universo de influências retratado nas telas, merece destaque o filme O Retorno de um Aventureiro (1966) (imagem abaixo), do nigerino Moustapha Alassane, o primeiro faroeste feito no continente. Neste curta-metragem, Alassane faz uma sátira ao gênero ao colocar um grupo de jovens que tentam ser cowboys em uma aldeia no interior do Níger. No filme, há uma crítica à importação de valores estrangeiros e, também, a vitória da tradição sobre os mesmos. Assim que não resta dúvida na mensagem do realizador neste primeiro filme: ainda que tenham sido formados cinematograficamente com estas imagens, estas não são capazes de dominar por muito tempo as culturas locais.

Portanto, a África cinematografada é a África presente nas imagens produzidas e reiteradas no âmbito da dominação colonial em suas múltiplas formas. Imagens em consonância com as percepções negativas construídas desde os primeiros tempos do contato do colonizador europeu com o continente, tendo em comum o preconceito inúmeras vezes pronunciado que propalava o caráter não civilizado, para não dizer primitivo, dos povos africanos. Mas também é a África receptora de imagens eurocêntricas. Assim, se por um lado se produziram imagens dos povos africanos de forma negativamente estereotipada, por outro, foram projetadas nas telas tantas outras imagens que reiteravam e glamourizavam como superiores as culturas do ocidente, corroborando assim com a ideologia de dominação colonial.

Os primeiros tempos do cinema africano: criação dos Festivais de Cinema de Ouagadougou

A necessidade de descolonização das telas de cinema do continente está na base do movimento que faz surgir os festivais de filmes africanos. Foi pensando nesta dimensão que Tahar Cheriaa criou o primeiro festival de cinema do continente: as Jornadas Cinematográficas de Cartago, em 1966, abrindo assim não só uma janela para exibição de filmes mas criando também um espaço político para debate das estratégias a serem seguidas visando a ampliação da difusão e políticas de incentivo à produção de cinema.

As Jornadas Cinematográficas de Cartago (JCC) nascem com uma perspectiva de integração geopolítica, contentando com a participação de países abaixo do Saara, tanto que o filme La noire de… (imagem abaixo) de Ousmane Sembène ganhou o Tanit d’or (Tanit de Outro), prêmio da Jornada. Porém, fazem uma distinção entre o que os tunisianos chamam de tradições “africanas” e “árabes” que, segundo a pesquisadora inglesa Lindiwe Dovey, constitui uma das diferenças entre as JCC e o FESPACO e um possível motivo para explicar o fato da menor importância que as Jornadas possuem no contexto continental.

De todo modo, Cartago funcionou também como um ponto de encontro para os cineastas e um difusor da vontade por parte do público africano de ver nas telas filmes que contassem suas histórias. É interessante perceber que o clamor por parte dos realizadores por um cinema africano também se encontra presente em um certo público, formado por amantes de cinema. E foi este público, composto por cinéfilos e críticos, o responsável pelo nascimento do FESPACO.

O contexto de surgimento do Festival é marcado por histórias diferentes e por vezes contraditórias entre si. Por exemplo, em conversas informais durante o FESPACO de 2015 com estudiosos do cinema e alguns realizadores mais velhos, ouvi uma versão que coloca os realizadores da 1ª geração à frente do protagonismo que criou o Festival. Contaram-me que com o intuito de expandir a proposta lançada pelas JCC, isto é, da criação de um festival de cunho pan-africano abaixo do Saara, um grupo de realizadores capitaneados por Ousmane Sembène teria iniciado o processo. Em um primeiro momento, teriam tentado efetivar o projeto em Dakar, que vinha então da realização do Festival de Artes Negras em 1966. O governo senegalês, na figura do presidente Léopold Senghor, teria declinado a ideia, fazendo com que os supostos propositores levassem a ideia para Alto Volta (nome de Burkina Faso então).

Esta versão constitui uma possibilidade atraente pois fornece ao Festival uma origem de renome, ao atribuir sua paternidade aos primeiros realizadores africanos. Contudo, ela não dialoga com algumas dimensões do contexto da época como, por exemplo, o fato de Alto Volta ser um país sem condições financeiras para patrocinar um festival de cinema, passando por uma crise econômica nos primeiros anos após a independência.

Ao atribuir a iniciativa de criação do festival aos primeiros realizadores africanos articulados ao Estado Voltaico desconsidera-se também o fato de que as políticas de cultura por parte deste mesmo Estado praticamente inexistiam nos anos subsequentes à independência. As dinâmicas culturais daquele momento partem de iniciativas privadas, são grupos e associações culturais diversos que movimentam a vida do antigo Alto Volta.

O governo de Maurice Yaméogo (1960-1966), primeiro presidente após a  independência, caracterizou-se por uma verdadeira apatia com respeito às iniciativas culturais. Esta apatia, contudo, não contaminava a sociedade. Ao contrário, no âmbito da vida cotidiana, os cidadãos e cidadãs do novo Estado formado ansiavam por dar sequência ao processo de descolonização. E coube à população local tomar esta iniciativa de abandonar a herança colonial e resgatar os valores africanos. De tal modo que é possível afirmar que na primeira década de independência a história da vida cultural do Alto Volta é marcada pelo papel decisivo da sociedade, isto é, de pessoas desconectadas do poder estatal.

Surgem então numerosas associações universitárias, escolares, étnicas compostas por intelectuais, mas não só. Entre as mais importantes estão a Associação Voltaica para a Cultura Africana (AVCA), criada em 1963 e presidida pelo renomado historiador Joseph Ki-Zerbo e o Círculo de Atividade Literária e Artística do Alto Volta (CALAHV, sigla em francês), liderada por Augustin Sondé Coulibaly.

O cinema se vê representado pelas atividades do Centro Cultural Franco-Voltaico (CCFV) no âmbito das associações culturais que se destacam naquele momento. Em 1968, CCFV realizava frequentemente projeções e debates para um público formado por estudantes, professores e funcionários. Já nas sessões, o público frequentador do cineclube do CCFV, ciente do grau de colonização das telas, não só no Alto Volta mas também no continente, passou a demandar pela projeção de filmes africanos. A esta altura, já circulavam as informações sobre as primeiras produções do continente que ganharam fama através das notícias acerca do Festival de Artes Negras de Dakar e da primeira Jornada Cinematográfica de Cartago, ambos ocorridos em 1966.

Imbuídos da vontade de colaborar para o fim da invisibilidade das produções africanas, os cinéfilos do CCFV reuniram em novembro de 1968 e propuseram a criação de um festival de cinema africano em Ouagadougou para as atividades do ano seguinte. A mesma inquietação de Tahar Cheriaa quando da criação das JCC se percebe presente aqui: além dos filmes, era preciso promover a circulação destas imagens, fazer com que elas chegassem a um público mais amplo. E assim, por duas semanas, entre 1 a 15 de fevereiro de 1969, aconteceu a primeira edição do Festival de Cinema Africano de Ouagadougou, a partir de uma iniciativa privada e desconectada das dinâmicas oficiais do Estado voltaico.

Das muitas histórias contadas sobre o FESPACO, são lendárias as que falam das reuniões dos cineastas à beira da piscina no Hotel Indépendence, em uma mesa situada à frente do quarto onde se hospedava Ousmane Sembène. Muito do lugar do realizador senegalês como pai do cinema africano se relaciona às articulações e encaminhamentos resultantes dessas reuniões ocorridas durante o FESPACO. Para que se tenha uma ideia, há em Ouagadougou uma praça no centro da cidade, no caminho para a sede do Festival, que se chama Praça dos Cineastas. Inaugurada em 1987, tem em seu centro uma escultura que lembram latas de rolos de filmes em película empilhados verticalmente e que, se imaginamos na horizontal, se assemelha a uma câmera.

Em frente a esta escultura, no início de uma das avenidas há uma série de estátuas de realizadores que foram ganhadores do prêmio principal do FESPACO. Ali vemos perfilados Gaston Kaboré, Idrissa Ouedraogo, Souleymane Cissè. E a frente de todos, Sembène, que nunca ganhou o Étalon de Yennenga mas, como se vê, foi uma figura decisiva na história do Festival. A estátua de Sèmbene foi colocada ali em 2009, em cerimônia de libação durante a 1ª edição que aconteceu após sua morte (ocorrida em junho de 2007) e é como um local de “peregrinação” para os que vão ao FESPACO.

Na escassa bibliografia sobre o nascimento do Festival, do mesmo modo que pouco se fala da atuação dos realizadores, pouca atenção também é dada aos antecedentes históricos das políticas culturais de Alto Volta e à conexão com contexto mais amplo do que se passava no continente. De um modo geral, a ênfase nas análises recai sobre a quantidade de filmes e países, os recursos empregados e as dinâmicas culturais surgidas a partir de então. Na argumentação de Dupré, em consonância com os passos de Hamadou Ouegdraogo na obra de referência citada anteriormente, parte-se do estudo das políticas culturais da época para demonstrar a origem popular do FESPACO a partir da iniciativa de um grupo de pessoas que frequentava as sessões do cineclube do Centro Cultural Franco-Voltaico, sendo mesmo possível afirmar que a interação da população burkinabé com o cinema, fato que impressiona a todos que alguma vez já estiveram no FESPACO, está na origem mesma do Festival, tornando sua história ainda mais singular.

FESPACO e a luta pela descolonização das telas

“Facilitar a disseminação dos filmes africanos, assim como permitir contatos e confrontações de ideias entre realizadores. O objetivo era também contribuir para o desenvolvimento como meio de expressão, educação e uma forma de elevar as consciências”, assim a direção do FESPACO definiu os objetivos do festival em documento de 1985. Como se percebe, os objetivos são em certa medida, os mesmos das intenções das edições iniciais, porém ampliados. É na 3ª edição, ocorrida em março de 1972, que surge a premiação com o troféu Étalon de Yennenga. De acordo com as regras de então, apenas poderiam concorrer os filmes africanos. A competição só seria aberta à diáspora ao final dos anos 1980, como fruto dos esforços do cineasta da Mauritânia Haile Gerima, que há muito tempo encontra-se radicado nos Estados Unidos.

É nesta edição também que o governo de Burkina Faso institucionaliza o FESPACO e definitivamente o festival passa ser uma instituição do Estado. Essa apropriação, segundo Lindiwe Dovey, era organizacional, financeira e, também, ideológica, com o Estado financiando a maior parte do Festival. Para Dovey, essa integração com o Estado foi definitiva também para que o FESPACO sobrevivesse aos sucessivos golpes de estado e diferentes regimes. Independentemente de quem estivesse à frente do governo, o Estado burkinabé sempre se organizou para seguir na promoção do cinema.

Consolida-se cada vez mais no âmbito das discussões do FESPACO a necessidade de se ampliar o debate sobre a circulação dos filmes. Como se viu, desde o primeiro momento o Festival explicitava claramente uma forte oposição contra formas de distribuição de filmes francesa que monopolizavam o mercado na África do Oeste. E esta crítica seguiria mesmo depois da nacionalização das salas em Burkina Faso. Para descolonizar as telas era preciso descolonizar a produção e também as formas de circulação dos filmes. A nacionalização das salas em Burkina Faso e nos países vizinhos deram o pontapé inicial mas ainda havia uma longa trajetória a ser percorrida visando que, dentre outras coisas, os Estados se engajassem no desenvolvimento dos cinemas nacionais. Cheriaa proferiu essa urgência reiteradas vezes, como mencionado, “Quem possui a distribuição, possui o cinema”, disse o tunisiano em 1978.

Em realidade, a década de 1970 foi um momento de extrema tensão entre distribuidores e realizadores, sobretudo os que estavam afiliados a FEPACI. O crescimento do FESPACO só acirrou esse conflito, como aparece retratado no documentário do cineasta tunisiano Férid Boughedir, Camera Afrique (1983), no qual faz um balanço do cinema africano vinte anos após o seu surgimento. Em um trecho do filme, é mostrado um debate entre o presidente da principal companhia francesa fornecedora de filmes para a África do Oeste.

Ele afirma estar ali no intuito de ajudar o desenvolvimento na política de cinema e se diz desapontado com a produção de filmes africanos, pois “as tradições africanas do continente não estão traduzidas nas obras. Ao invés disto, vemos gritos de revolta”, diz J. C Edeline. Moustapha Alassane, um dos pioneiros do cinema africano e presente desde a primeira edição do FESPACO, e também na formação da FEPACI, em resposta à hipocrisia e à crítica de Edeline, declara: “Se nossa cultura lhes interessasse, vocês iriam querer de fato trabalhar conosco. Mas não. Você está aqui para negócios e não admite. Se você admitir isso, podemos tentar trabalhar”. Naquele momento, como forma de retaliar a expansão do cinema africano e tentar voltar o público contra os realizadores e festivais que surgiram, sete países africanos (Alto Volta, Guiné, Quênia, Tanzânia, Congo, Ghana e Madagascar) estavam sendo boicotados pelos fornecedores ocidentais por terem nacionalizado os sistemas de importação e distribuição de filmes.

O fato é que são múltiplas as possibilidades de abordagem da história do cinema africano, mas indubitavelmente, acompanhar seus desdobramentos a partir do nascimento do maior festival do continente constitui um caminho profícuo, pois não só lida com as questões relacionas às dimensões políticas e econômicas e como estas se refletem no setor audiovisual, mas também, possibilita perceber a dimensão formativa presente na base do Festival, aliás como nas questões curatoriais de um modo geral. Propor a realização de um Festival nada mais é se dedicar a formar público para o cinema e este constitui, ainda nos dias de hoje, um dos maiores desafios para as cinematografias africanas. Em certo sentido, essa foi a minha intenção ao abordar aqui essa história, pois como dito anteriormente, ainda são poucos os trabalhos acadêmicos nesse recorte existente em português, na mesma medida que ainda é relativamente pequeno o interesse do público brasileiro pelo cinema africano. Espero assim ter ajudado a compreender a frase mencionada no início deste texto, pois estou convicta desde a primeira vez que vivenciei o Festival que, de fato, os que amam o cinema africano, vivem o FESPACO.

Fórum de Tiradentes: Desafios da política pública para cinema e por que isso NOS diz respeito

Uma boa parte do Brasil repercute neste momento o feito inédito de ter um filme nacional – Ainda estou aqui – concorrendo à categoria mais importante (Melhor Filme) e a duas outras (Melhor Atriz e Melhor Filme Estrangeiro) da premiação mais famosa do cinema, o Oscar. Mas enquanto as celebrações parecem passar ao largo das disputas pela valorização real do cinema brasileiro e, sobretudo, pela possibilidade de distribuição do dinheiro do audiovisual para grupos que historicamente tiveram seus acessos negados a esses valores, um evento importante dá o pontapé para as discussões sobre ações que podem ser tomadas a partir de 2025 para que não somente o cinema, mas toda a cadeia de audiovisual brasileira seja cada vez mais valorizada dentro e fora do país.

A partir dos próximos dias, na cidade de Tiradentes-MG, teremos a reunião de mais de 70 profissionais discutindo descentralização, diversidade, democracia, desenvolvimento econômico e social desse audiovisual. Todas essas pessoas estarão divididas em cinco grupos de trabalho – formação, produção, exibição/difusão, distribuição/circulação e preservação e observatórios -, para esboçar recomendações específicas e transversais, diante de temas centrais e urgentes às políticas públicas de nosso cinema. Tudo isso se dará na programação do Fórum de Tiradentes – Encontros pelo Audiovisual Brasileiro, que realiza sua terceira edição, entre os dias 25 e 29 de janeiro, como parte da programação da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes

O Fórum segue sendo um grande acerto da Mostra por proporcionar um espaço de ponto de encontro para vários segmentos do audiovisual brasileiro na busca por diagnóstico dos pontos críticos da atividade. O FICINE participa do Fórum com a presença de Tatiana Carvalho, presidenta da Associação de Profissionais Audiovisuais Negros – APAN, que mediará a sessão de abertura, chamada “O Desenvolvimento do audiovisual como política estratégica do estado brasileiro”, com a presença da Ministra da Cultura Margareth Menezes, da Secretária Nacional do Audiovisual Joelma Gonzaga, da deputada federal Benedita da Silva, do deputado federal Reginaldo Lopes, do filósofo Leonardo Boff, da Secretária Municipal de Cultura de Belo Horizonte Eliane Parreiras e do Secretário de Estado de Cultura do Espírito Santo Fabrício Noronha.

Tatiana vai estar também no debate da sessão “Pluralidade Audiovisual e Democratização do Acesso” e ainda vai participar da leitura da Carta de Tiradentes 2025, um documento que reunirá o conjunto das discussões realizadas nos GT’s. A sessão de abertura propõe destacar o tema central da edição da Mostra Tiradentes que é a revitalização da política nacional do audiovisual, a ênfase à pauta regulatória dos serviços de streaming e às políticas públicas nacionais de execução compartilhada e fomento do setor com ênfase na Lei Aldir Blanc e arranjos regionais.  

A temática “Que cinema é esse?” da Mostra Tiradentes servirá como um norte para as discussões do Fórum, que precisam pensar não somente em novas respostas, mas também em novas perguntas para que toda a cadeia produtiva do cinema brasileiro esteja preparada para os desafios futuros. Além da luta pela regulação dos streamings no Brasil – uma das pautas centrais quando se fala em política pública para o audiovisual hoje – existem ainda questões que se colocam no horizonte de desafios, como, por exemplo, a TV 3.0 e, claro, o preocupante uso da inteligência artificial sobre a atividade audiovisual.

Cristina Amaral: tensionar imagens, criar mundos.

Vinicius Dórea

Friccionar imagens. Gerar faíscas. Contar o mundo, suas contradições, impurezas, incompletudes e belezas. A partir disso poder transformar a vida, o tempo e suas possibilidades. Esses gestos políticos que se encontram no trabalho de montagem feito por Cristina Amaral atravessam a história do cinema brasileiro e nos movem a celebrá-los na chegada desses quase 40 anos de carreira da realizadora. Através de parcerias que firmou durante a sua vida com diretores consagrados como: Raquel Gerber, Andrea Tonacci, Carlos Reichenbach, Edgard Navarro, Adirley Queiroz, etc, Cristina pôde esculpir um novo olhar através dos processos de junção, justaposição e aglutinação sobre as imagens. 

O gesto político de Amaral se encontra também nas escolhas profissionais que realizou e no tipo de cinema que decidiu montar. Se mantendo fiel aos seus princípios, Cristina, em 2020, recusou o convite da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood para ser uma das votantes do Oscar. Justificou a recusa por falta de tempo para exercer a função apropriadamente. “Eu não abdicaria do que considero urgente, que é a sobrevivência do cinema brasileiro”, disse ela. 

Somente este ano Cristina Amaral recebeu homenagens nos festivais Cabíria e forumdoc.bh, na 14ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos, realizada pelo Ministério da Cultura, além de mostras pontuais como uma na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre (a pontuar que em 2023 ela também foi a homenageada da Goiânia Mostra Curtas). Esses tributos são importantes por celebrarem em vida o trabalho de uma mulher negra que não está na posição de direção, mas sim de montadora. A montagem de Cristina segue um fluxo muito sincero, que parece partir dela mesmo e de uma conversa e encontro com as imagens e com os realizadores com quem ela trabalha.

Eis aqui cinco exercícios de montagem em sua carreira que consideramos aulas:

Serras da desordem, de Andrea Tonacci: está nesse filme de 2006, montado para seu parceiro de vida Andrea Tonacci, um dos seus mais primorosos trabalhos. É latente a confiança posta nas imagens em conversar com o espectador, entortá-lo, levá-lo à vertigem. A sequência inicial de 20 minutos nos instiga a viver com o povo Awá-Guajá, na Amazônia. A montagem dilata o tempo e somos desafiados a estar presentes. Somos lembrados, sem o uso de palavras, que a existência dos povos indígenas representa uma ameaça ao liberalismo econômico. O tempo das suas vidas não são baseadas no lucro e no aproveitamento. O capitalismo ali só existe como ameaça, não como vivência. A serenidade dos planos, acompanhados por um som de flauta que se assemelha ao apito de um trem, nos colocam em outro regime de tempo. É interessante pensar que na montagem do filme a imagem de um trem, símbolo inaugurante do cinema,  representa a ideia do falso progresso capitalista atrelada à destruição do planeta. E em nome do progresso derrubam-se árvores e presidentes, abrem-se estradas e alas de escola de samba e explora-se pessoas e bichos. Em uma sequência de 4 minutos em Serras da Desordem a brilhante montagem de Amaral, juntamente com a direção de Tonacci, resume um país, não em uma tentativa de limitá-lo, mas de expandi-lo, de recriá-lo. 

Já visto, jamais visto, também de Andrea Tonacci, nasce sem intenção de nascer. E esse se torna o maior desafio de sua montagem. Explica-se: no desejo de conseguir recursos para restaurar alguns materiais já filmados por Tonacci e mandar esses materiais para fora do Brasil, o diretor inscreveu o projeto num edital que exigia a entrega de um filme. Mas nunca houve a ideia de um filme a priori, somente a intenção de recuperar esse material já filmado. E eis que assim surge um filme feito nessa colagem muito delicada de imagens que oscilam entre o pessoal e o histórico, entre a evidência dos arquivos e a imaginação de ficções, entre imagens de filmes inacabados e a ideia de criar um projeto de montagem, ele mesmo, usando a incompletude como motor movente. “Foi um processo que eu não sei racionalizar muito, foi meio assim, as coisas foram se encaixando”, diz Cristina na entrevista que deu ao catálogo do Forumdoc 2024.  

Alma corsária, de Carlos Reichenbach. Existe toda uma história sobre a montagem desse filme, interna e externa às suas imagens. A interna é de conhecimento público, o trabalho de Cristina Amaral em amarrar os vários flashbacks que o filme traz desses dois poetas que, juntos, colecionam memórias de seus primeiros encontros, é uma referência pra pensar como colocar em linguagem cinematográfica a arbitrariedade desses flashs desordenados e não-lineares que temos de nossas vidas e transformar isso num modo de comunicação em si mesmo. Externamente, é preciso lembrar que essa foi a primeira parceria entre Carlão e Cris Amaral, e que foi graças a uma insistência dela em não parar o processo de montagem, mesmo com a produção pressionando pra que eles acabassem o filme para sua estreia no Festival de Brasília, que Alma Corsária teve esse corte que conhecemos hoje. E sim, ele conseguiu ficar pronto a tempo de estrear em Brasília, onde levou quatro prêmios. 

Mato seco em chamas, de Adirley Queirós. A modulação etérea entre ficção e documentário faz de Mato Seco em Chamas um filme incomparável. Adirley Queirós expressa o desamparo insólito e pontual da ascensão da extrema direita ao poder através da reação das margens, que se juntam para a formação de um partido, o PPP (Partido do Povo Preso). A montagem de Cristina Amaral favorece as personagens, que são duras e fugidas, deixa o plano repousar sobre elas, cria uma dilatação do tempo muito específica, que dura às vezes o tempo de um cigarro inteiro. Destaque para um dos cortes mais incríveis do cinema nacional contemporâneo: a passagem entre as mulheres cantando, dançando e se pegando no ônibus para o mesmo enquadramento, só que com o ônibus indo para um presídio. A própria Cristina diz que o filme tem um movimento de explosão e implosão, que constroi o seu próprio tempo.

Eu sei que você sabe, de Lina Chamie põe à prova o diálogo. Através da montagem de Amaral, que ridiculariza a singularidade da comunicação humana, particularmente de uma burguesia às voltas com gestos vazios, que parecem estar sempre num eterno looping de repetições dentro de sua incomunicabilidade, o filme vai se montando como uma sátira que Cristina Amaral costura muito bem com a trilha sonora extra-diegética, nesse cinema que faz graça com o timing e os rostos publicitárias da TV brasileira. Um bom e curto exemplo de como o trabalho de Cris Amaral está completamente modulado pela criação de ritmos específicos que criam narrativas e sensações específicas.

15 filmes brasileiros para descolonizar seu olhar

20 de Novembro por uma Descolonização do Olhar: 15 filmes do cinema negro brasileiro disponíveis 0800 que você pode exibir em escola/cineclube/praça/sala de casa e debater. Uma lista de curtas e longas feita por nós, com link pra todos (e aí? quantos dessa lista você já viu? quantos mais sugere?):

  1. A Piscina de Caíque, de Raphael Gustavo da Silva (2017) – Tá calor e Caíque quer brincar. E quem aí nunca escorregou pelo chão jogando balde d’água nele? O status cinematográfico da brincadeira, com participação especial de ninguém menos que Antônio Pitanga. https://www.youtube.com/watch?v=K83LMpjPENk

    2. Olhos de Erê, de Luan Manzo (2020) – “Dá um oi pra o meu canal, gente” diz o pequeno Luan enquanto filma o terreiro de candomblé da sua vó. A percepção de uma criança de 6 anos e o modo como seu corpo-erê-câmera se move pelo espaço são a riqueza desse filme. https://www.youtube.com/watch?v=l4W_-h2AiG8

    3. A Câmera de João, de Thiti Cardoso (2020) João olha para o mundo e devolve esse olhar em fotografias na tentativa de enxergar o que o seu avô anteriormente enxergava (essa versão aqui tem audiodescrição!) https://www.youtube.com/watch?v=MhRMEirjhTU

    4. Em Busca de Lélia, de Beatriz Vieirah (2017). Talvez um dos filmes mais importantes da lista em termos de produção de memória. Neste caso, memória de uma das maiores intelectuais brasileiras: Lélia Gonzalez. Biografia afeto recheada de depoimentos importantes. https://embaubaplay.com/catalogo/em-busca-de-lelia/

    5. Noirblue, de Ana Pi (2018): tem que aprender a respirar, e no respiro entender que o futuro, lá e cá do Atlântico, já aconteceu e está entre nós. Os corpos que dançam juntos nunca desaprendem a saber os saberes. anazpi.com/noirblue/

    6. Quintal, de André Novais (2015): quando o cotidiano e o extraordinário funcionam no mesmo plano de imagens de uma família em Contagem, Minas Gerais, a gente se pergunta: do que se alimenta a ficção? https://www.youtube.com/watch?si=590Z9h-1aa8CAPCo&v=p6BwKHlIT3U&feature=youtu.be

    7. A batalha do passinho, de Emílio Domingos (2013): Nesse filme que dança, os discursos e corpos de três amigos costuram o filme nos apresentando a cultura do passinho no Rio de Janeiro https://assista.itauculturalplay.com.br/ItemDetail/62014a1b3d46172001207a76/66477630054dd7352ffa0eca

    8. Cores e Botas, de Juliana Vicente (2010): a música diz que “o sonho sempre vem pra quem sonhar”, mas sobre que tipos de sonhos se erguem o imaginário de uma criança negra no Brasil dos anos 1990? https://www.youtube.com/watch?si=c6XkU3aLWPrbJH3o&v=Ll8EYEygU0o&feature=youtu.be

    9. Travessia, de Safira Moreira (2017): o plano e o contraplano sobre o direito à imagem, o direito ao registro de si mesmo, de nomear esse registro. Um filme de 5 minutos sobre mais de 500 anos de Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=9CePRp0wvCw

    10. Deus, de Vinícius Silva (2017): dentro de um apartamento na Zona Leste da cidade de São Paulo, mãe e filho transformam as ações mais banais em grandes gestos cinematográficos. vimeo.com/214680258

    11. Kbela, de Yasmin Thayná (2015): Um filme que celebra a mulher negra, seus cabelos e o poder coletivo que surge quando elas se fortalecem juntas, num filme ensaio que, na sua forma, é irmão de sangue de Alma no olho, de Zózimo Bulbul. https://www.youtube.com/watch?v=LGNIn5v-3cE

    12. Café com canela, de Ary Rosa e Glenda Nicácio (2017): O afeto de Violeta é o motor que ajuda Margarida a reconstruir sua vida após experimentar um longo luto pela morte do seu filho. Cachoeira e São Félix são colocadas no mapa do cinema brasileiro. https://assista.itauculturalplay.com.br/ItemDetail/66a90638072ed97546dd86d2/63b87dc2a2fa055cc23fa44f

    13. Tudo que é apertado rasga, de Fábio Rodrigues (2019): através da remontagem de imagens de arquivo do cinema e da TV no Brasil, o filme escreve um olhar denunciatório sobre a situação da atriz e do ator negro neste país. https://embaubaplay.com/catalogo/tudo-o-que-e-apertado-rasga/

    14. Alma no Olho, de Zózimo Bulbul (1973): O corpo de Zózimo, ao som de John Coltrane, traz o registro do corpo negro desde a abdução em África e escravidão nas Américas, até o prolongamento das mazelas racistas que nos assolam até hoje. https://www.youtube.com/watch?v=IbCa5ufiV3s

    15. República, de Grace Passô (2020) “O teu Brasil acabou e o meu nunca existiu! Nunca existiu!” Possivelmente, o filme que melhor torce o nó simbólico sobre que ideia de “Brasil” – e sobre que corpos – este país se fundou. https://www.youtube.com/watch?v=Cil9R4C-SMw