“Penso muito em continuidade porque, quando observo as minhas parceiras e contemporâneas dentro dos seus campos de atuação, desejo muito que dentro do nosso futuro a gente consiga seguir nas mobilizações que a gente tem, fortalecendo as instituições, criando novas instituições. Mas o meu sonho mesmo é que no futuro a gente tenha escolas e espaços de aprendizagem de cinema e artes que sejam pensadas, referenciadas e criadas a partir da comunidade negra, digo isso porque acho que esse cinema negro vai ser mais radical ainda, mais livre, porque desde o primeiro momento de um contato com a nossa área a gente não vai ter que passar por parâmetros de estética, comportamento e performance que passam pela branquitude”. A fala é pausada, desacelerada, dita por quem não acredita na pressa das coisas, feita no respiro de uma maturidade que sabe ser fundamental quando aquilo que se deseja requer atenção a quem está do lado. O vídeo com essa fala circulou centenas de vezes na última semana, em que o cinema brasileiro se despediu, de forma muito precoce, de Joyce Prado, a autora das aspas acima, numa entrevista dada em novembro deste ano para o podcast da Casa Sueli Carneiro.
A dimensão da força que Joyce Prado exerceu e continuará exercendo – é sim sobre “continuidade” como ela dizia – no pensar e no fazer do audiovisual negro no Brasil diz respeito ao modo como essa jovem diretora de cinema sempre se posicionou em luta e amor por uma existência coletiva desse audiovisual em toda sua potência. Na época em que estava lançando seu longa-metragem Chico Rei entre nós, em 2021, Joyce chegou a dizer: “As irmandades me ensinaram que, como coletividade, a gente nunca se desamparou. A gente olha para os quilombos, mas esquece que nos centros urbanos, as irmandades mantiveram a gente pulsando. As pessoas negras precisam aprender o quanto as irmandades foram importantes para manterem a gente em pé, assim como os terreiros e os quilombos.” Esse depoimento está em uma entrevista dada à APAN, Associação de Profissionais do Audiovisual Negro, da qual ela foi uma das fundadoras, em 2016, e cuja primeira sede foi um espaço em São Paulo, na mesma sala onde Joyce tinha sua produtora, a Oxalá Produções, que sempre fez conteúdos focados na cultura afro-brasileira.
Além de Chico Rei entre nós, Joyce tem uma série de obras audiovisuais que se tornaram referência para pensar, de um ponto de vista simultaneamente estético e político (na ideia de que toda forma produz um conteúdo), as expressividades negras no Brasil – e suas relações com o continente africano. Nascida no dia 2 de julho de 1987, Joyce se formou em Rádio e TV no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e se especializou em Roteiro Audiovisual pelo Senac. Com apenas 21 anos, fundou a Oxalá Produções e em 2015, ao lado da diretora Renata Martins, criou a websérie Empoderadas, um trabalho que trouxe visibilidade para as histórias de mulheres negras e terminou se desdobrando como um projeto maior que inclui um livro homônimo, um podcast e ações formativas que acontecem até hoje, destinadas sobretudo a mulheres negras, indígenas, trans, PCDs e pessoas periféricas.
“Ela era uma pessoa muito amorosa e muito generosa nas parcerias, muito jovem, muito sábia, muito ponderada nas decisões e nas articulações, mas, ao mesmo tempo, muito firme no que acreditava, principalmente na defesa da presença de pessoas negras e do audiovisual negro como um todo, com uma capacidade rara de conciliar uma atuação de produção, de proposição de narrativas, mas também de produção de audiovisual de uma maneira mais ampla. Ela produzia documentários, videoclipes, participava da produção de diversos tipos de produtos, como várias de nós, mas mantendo uma coerência nesse sentido de uma construção ou de colaborar para um imaginário mais povoado de imagens da nossa humanidade, da nossa alegria, do nosso afeto.” Tatiana Carvalho Costa, presidenta da APAN e membra do FICINE.
A partir de 2017, Joyce começa uma trajetória de criar imagens sínteses, imagens versos das experiências negras com clipes musicais que ela dirige para cantoras negras, com destaque para as peças audiovisuais que ela faz para Luedji Luna (Um corpo no mundo, especialmente, é uma experiência que tece, de forma poética, várias camadas das vivências negras na cidade de São Paulo), além de trabalhos como o clipe Terra Aféfé, para Margareth Menezes e o álbum audiovisual feito, em parceria com Tais Espírito Santo, para o grupo Pastoras do Rosário.
No campo documental, Joyce também assinou pelas séries Cartas de Maio, que registrava a leitura de cartas de pessoas negras contemporâneas escritas para seus ancestrais vivos no dia da assinatura da abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, The Beat Diaspora (disponível no YouTube Originals), Ancestralidades (disponível no Itaú Cultural Play) e AM/FM, além de assinar a produção executiva da série Memórias em Bronze, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e Nós, Mulheres (SESCTV, 2025), ambas realizadas pela Oxalá Produções.
“A gente conversava muito antes das reuniões do Conselho, por exemplo, e ela estava sempre muito preocupada com a política pública num sentido mais amplo, pensando para além da produção, numa dinâmica também para a circulação dos filmes, para a formação de plateia e para a formação de profissionais. Nessa atuação na formação de profissionais, ela tem também uma presença muito grande em mentorias de projetos, em aulas de desenvolvimento de projetos de filmes, seja de ficção, seja de documentário, e participação em vários festivais. Tanto que essa atuação múltipla dela, também muito generosa, afetuosa, acolhendo e estimulando individual e coletivamente várias pessoas do audiovisual negro, fez com que o falecimento dela tivesse essa repercussão desse tamanho. O velório dela, se não me engano, tinha mais de 300 pessoas. A gente viu nas redes sociais uma repercussão muito grande, na imprensa também, e todo mundo quase que em uníssono falando dessa importância dela, dessa generosidade dela.” Tatiana Carvalho Costa, presidenta da APAN e membra do FICINE.
Sua atuação no audiovisual foi muito além das peças que ela roteirizou, dirigiu e produziu. Sua presença nos espaços de formação coletiva e militância por políticas públicas deve sudear as lutas por acesso – e ações de formação – de comunidades negras no audiovisual. Atualmente, Joyce era diretora e integrante do Conselho Superior do Cinema e atuava diretamente pela implementação e regulação de ações que pudessem democratizar o acesso à produção e circulação do audiovisual negro no Brasil.
“Conheci Joyce primeiramente pelo Empoderadas, série que ela começou com Renata Martins. Depois nos encontramos nos corredores do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, nas conversas que levaram à formação da APAN, em 2015 e 2016, e depois nas reuniões de fundação da Associação, pois fazíamos parte do grupo que estava lá desde o início. Joyce sempre foi brilhante, sempre certeira nos posicionamentos e comentários, com aquele jeito firme e ao mesmo tempo doce de ser. A gente sempre ria muito e toda vez que encontrava se dava longos abraços, trocando promessas de não ficar tanto tempo sem se ver. Sua partida repentina ainda precisará de muito tempo para ser processada. E firmo aqui, com o FICINE, o compromisso de manter a sua presença em nossa história, pois, como dizem os mais velhos e mais velhas, só morre quem não é lembrado.” Janaína Oliveira, membra do FICINE e também da APAN desde sua fundação.
Nós, do FICINE, vamos sempre lembrar de Joyce como uma das figuras centrais para a consolidação dos cinemas negros brasileiros enquanto um movimento.
Fiquem vocês então com Um corpo no mundo, dirigido Joyce Prado e estrelado por Luedji Luna:
Entre a artesania espiritual e a experimentação formal, Yhuri Cruz tem construído uma obra que tensiona o arquivo, a cena e a própria ideia de imagem como monumento. Herdeiro de uma ética teatral que coloca o espectador no centro e de uma pesquisa visual que desloca os limites do cinema, ele cria dispositivos que ativam presença, memória e imaginação negra para além do registro colonial. Do gesto de retirar a mordaça de Anastácia à elaboração de “monumentos espirituais”, Yhuri insiste na voz como feitiço e no tempo como aliado, criando brechas para que a comunidade se emancipe e para que novas narrativas atravessem os períodos históricos que a branquitude monopolizou. Nesta entrevista, ele reflete sobre arquivo, cena, pretofagia, artesania digital e cinema negro, enquanto apresenta as forças que movem seu novo filme, Voz Zov Vzo (2025).
FICINE – Na sua prática artística, você frequentemente posiciona o arquivo como um “inimigo”, por ser insuficiente para registrar experiências que transcendem o papel, experiências que o seu corpo e o seu fazer artístico carregam. Diante disso, a cena emerge como um dispositivo central no seu trabalho. Gostaria de saber: o que cabe na cena, como seu espaço-tempo de performance, que o papel/arquivo não consegue dar conta?
Yhuri Cruz – Eu encaro o arquivo de duas formas: primeiro, como amigo. Começo a minha carreira me debruçando sobre o arquivo afrodiaspórico, o arquivo negro. E não só eu. Desde 2016, 2017, muitos artistas têm se debruçado sobre o arquivo como um recurso de sobrevivência, de memória e também de escavação, para tentar se encontrar um pouco mais. Eu acho isso incrível e é o que eu faço. No entanto, citando as palavras da Saidiya Hartman, professora da Universidade de Columbia, o arquivo é a tumba que a gente tem que ter coragem de encarar. Então, ao mesmo tempo que o arquivo é esse amigo, ele também tem um quê de tumba e eu sinto que nela a gente se aprisiona demais.
Então, quando eu falo que o arquivo é meu inimigo, é justamente porque eu acho que ele é um dos responsáveis por fixar a arte negra e a arte afrodiaspórica em um lugar que não consegue imaginar além do arquivo. Isso me preocupa um pouco, porque a gente está sempre se remetendo ao arquivo como se a gente não tivesse outros recursos de imaginação. E eu acho que especialmente o arquivo da escravidão, que é um arquivo colonial, de forma geral, acaba aprisionando demais a imaginação negra que busca ser anticolonial. É como se ser anticolonial tivesse sempre que se remeter ao arquivo da colonialidade. Eu acho que isso é prejudicial a uma ideia de construção de um self, sendo esse separado de um self identitário, que pertence a algum tipo de historiografia fixa no tempo. Ou seja, é um self que pode ser livre, um que, além de qualquer coisa, é gente, sabe?
Tem muitos trabalhos meus que eu faço referência ao arquivo, justamente porque discuto a negritude. Mas eu estou pensando também em ir além dele. Quando falo que o arquivo é inimigo, é justamente porque eu estou um pouco cansado de fingir que pela minha imaginação só passam essas imagens, quando não é verdade. Há também imagens da natureza, imagens da ficção científica, imagens do gozo, do prazer e outras imagens do corpo que não estão nem um pouco ligadas a esse arquivo preto, como se fosse apenas um arquivo colonial.
Você me perguntou o que cabe na cena, não foi? Na minha cena particular, eu estou muito preocupado em fazer a pretofagia. A pretofagia é como eu me refiro ao meu trabalho desde 2018, e é o meu método, é a minha prática. E a cena pretofágica está interessada em, primeiramente, trair a linguagem do que é a cena. Então, se estou nas artes visuais e eu entendo as artes visuais como um espaço de trânsito, de baixo engajamento pessoal com a obra e de uma certa elitização da presença, vou tentar sair desse espaço fazendo cenas. Fazendo uma cena que vai tentar produzir obras de alto engajamento, ou seja, obras de massa, que vão tentar construir um espaço que traia essa linguagem, que traia essa expectativa do espaço e da ética do espaço.
FICINE – Em Voz Zov Vzo, você propõe um cinema negro que dialoga com o arquivo, com a cena e com a história da ditadura militar. Como você enxerga essa relação entre formato cinematográfico e arquivo na sua prática?
Yhuri Cruz- O cinema está muito interessado no arquivo e em um espaço que, de forma geral, está refém de uma indústria cinematográfica específica, que é uma indústria do formato. E não estou tão interessado nesse formato. Claro, existem muitos tipos de cinema e eu sou um cineasta super jovem, com três filmes. O Voz Zov Vzo pensa justamente em criar, primeiro, um espaço de filme cênico. Estou falando de um espaço da negritude, de um cinema negro que está discutindo também um espaço cênico dentro do próprio cinema. Em Voz Zov Vzo eu discuto um pouco do arquivo negro, mas dentro de um lugar em que esse arquivo foi pouquíssimo explorado, que é o tempo da ditadura militar brasileira.
Trata-se de um tempo amplamente representado pelo cinema brasileiro, mas majoritariamente narrado pela branquitude. Muitos dos filmes brasileiros de maior circulação internacional se concentram nesse período, consolidando uma cinematografia marcada pela ditadura. Meu interesse foi revisitar esse tempo a partir de uma perspectiva negra, criando espaços de diálogo entre cinema, negritude e arquivo, e tensionando essa tradição.
FICINE – Seu trabalho “Monumento à Voz de Anastácia” devolve a voz à santa ao remover sua mordaça. Já em “Voz, Zov, Vzo”, vemos um grupo que só é ouvido quando fala no microfone do estúdio. Ambos os trabalhos tratam do mesmo tipo de “mordaça” social, ou a mordaça em “Voz, Zov, Vzo” é de outra natureza?
Yhuri Cruz- Acho que Monumento à Voz de Anastácia e Voz, Zov, Vzo lidam com o mesmo problema: a voz enquanto questão. Nos dois trabalhos, a voz é o eixo central. No Monumento à Voz de Anastácia, trato de uma voz devocional, uma voz histórica devocional. Então, a ética desse trabalho é uma ética que responde à manutenção dessa voz devocional. Já em Voz, Zov, Vzo, estou lidando com uma voz histórica muito mais ligada à política, incluindo a política do cinema. Existe uma política cinematográfica fortemente associada ao período da ditadura militar brasileira, e esse contexto histórico informa o filme. O filme é um musical de silêncios. Ou seja, como você faz um musical onde as pessoas não cantam?
No filme, o espectador não consegue ouvir o que está sendo dito em cena, a não ser que o personagem esteja diante do microfone. O microfone acaba sendo o antagonista do filme. Ele é o inimigo do filme. Ele é uma metáfora para o espaço da voz negra limitado ao púlpito, restrito a uma voz pública. É como se a voz negra não pudesse cantar uma subjetividade, apenas uma objetividade política de si. O trabalho do Monumento à Voz de Anastácia, por se tratar de um trabalho devocional, a dimensão religiosa envolve subjetividade, intimidade e vulnerabilidade. Para mim, esse monumento é a salvação de todos os meus trabalhos que lidam com repressão. É um trabalho que é a libertação de uma imagem histórica que informa pelo menos umas três gerações de afro-brasileiros, especialmente os que seguem a Umbanda ou seguem religiões dessa matriz afro-brasileira, e que estão ali, de alguma forma, tendo uma devoção a uma imagem de sujeição. E eu acho que o trabalho é assistir a sua imagem de sujeição livre. Reze para ela. E reze da mesma forma.
Em Voz, Zov, Vzo, o pano de fundo é a ditadura militar, um tempo em que pouco se falou sobre negritude fora do contexto da favela e do movimento black soul. Acho que existem filmes que lidam com isso já tem um tempo. Mas o meu filme, em poucas palavras, afirma: se alguém deseja ter voz, o microfone não basta. É preciso abandoná-lo. O microfone não pode ser o único espaço permitido para falar ou cantar.
FICINE – Yhuri, a voz, a boca e as arcadas estão muito presentes no seu trabalho. Em um país onde monumentos físicos muitas vezes celebram opressores, o que significa para você erigir um monumento com palavras? Seria a voz um feitiço?
Yhuri Cruz- A voz é completamente feitiço. Retomando a questão do arquivo, sinto que o arquivo, e já falei isso em outras entrevistas, é a justificativa formal da aniquilação humana, porque uma vez arquivadas, sociedades podem ser dizimadas. Especialmente dentro da perspectiva ocidental de arquivo, que é a perspectiva da catalogação. A voz, para mim, tem algo de feitiço no tempo porque o arquivo da voz só existe no lugar da escuta: a voz só se torna arquivo quando há alguém ouvindo. Ou seja, a voz é um arquivo da comunidade e, mais do que isso, é um arquivo livre da comunidade. O espaço oral e a memória oral me interessam profundamente, e a voz funciona como metáfora dessa memória.
Eu tenho uma série de trabalhos que eu chamo de monumentos espirituais: O Monumento à Voz de Anastácia é o principal deles. Há também o Monumento-documento à presença (2018), Monumento a Oxalá e aos Trabalhadores (2019), a Noite Faminta (2021). Faço esses monumentos porque eu estou muito interessado nessa construção que têm uma larga escala espiritual. Ou seja, é uma escala do engajamento que não está ligado à escala física nem à territorialidade. É uma escala do engajamento espiritual. Erigir um monumento envolve sempre uma demarcação de poder. Os monumentos que crio buscam demarcar o poder de entidades, figuras ou situações que não se orientam pelo tempo físico, mas por um tempo do espírito, um tempo mais generoso, aquilo que sobra de nós e que realmente nos atravessa. Muitos dos meus trabalhos lidam com viagem no tempo. O tempo é central para mim: sou filho do tempo e profundamente devoto a ele e a esse jogo de brincar com suas possibilidades. Especular o tempo implica assumir a responsabilidade do arquivo, mas também abrir espaço para o sonho. Isso me parece essencial.
FICINE –Inspirado por perspectivas de alguns povos do oeste africano que veem o artista como um sacerdote, um artesão do sagrado, fiquei pensando no seu gesto de retirar a mordaça de Anastácia. É um ato de artesania espiritual que não apenas ressignifica um símbolo, mas parece conceder a ela um novo poder de ação no mundo. Considerando a oração no santinho de “Anastácia Livre”, que fala sobre “curas, graças e milagres”, quantas dessas intervenções, sejam simbólicas, políticas ou espirituais, você acredita que “Anastácia Livre” já realizou até agora, através da sua circulação na arte, na moda e no imaginário coletivo?
Yhuri Cruz: Acho interessante essa visão do artista como sacerdote, porque a ética do meu trabalho está profundamente ligada ao espectador. Venho do teatro, e o teatro é um espaço em que o espectador é prioridade na dinâmica de poder e na própria linguagem. Quando passo para as artes visuais, levo comigo essa centralidade do espectador. De forma geral, percebo que a arte visual opera num lugar bastante autocentrado, quase eliminando o espectador; há nela um quê neoliberal que me desagrada, uma espécie de expropriação da própria forma, em que o artista cria e recria incessantemente sua obra até chegar ao produto mais belo possível, muitas vezes distanciado da relação com o público.
No teatro e no cinema, embora também haja pesquisa formal do autor, do diretor ou do texto, essa pesquisa acontece diante do público, em comunidade. Isso, para mim, tem um aspecto divino, ou talvez comunitariamente divino, porque tanto o teatro quanto o cinema são práticas comunitárias. É desse ponto que parto: meus trabalhos estão interessados na comunidade e no tempo da minha comunidade. Busco criar obras que abrem brechas de emancipação. Na definição que uso, pretofagia é trair a linguagem para emancipar movimentos; essa emancipação é parte central da minha prática. Embora seja uma ideia abstrata, estou sempre tentando chegar ao âmago dessa abstração.
Sobre a artesania espiritual que você mencionou: o Monumento à Voz de Anastácia é, sem dúvida, um gesto artesanal, mas é uma artesania digital. Se artesania está ligada às mãos, aqui são as “mãos digitais”. Com Photoshop, retiro a mordaça, busco uma boca no arquivo e a insiro na imagem. Já Voz Zov Vzo é um filme que realizei em 2021, num momento diferente da minha vida, com baixíssimos recursos. Apesar disso, ele busca emancipar a imaginação sobre a ditadura militar brasileira, um período em que pessoas negras não estavam ausentes, não eram inexistentes. Não estou reivindicando protagonismo negro na ditadura, mas sim uma presença e uma voz negra que também atravessaram aquele tempo. Estou sempre tentando puxar um fio de voz negra através dos tempos e de diversas formas.
Poucos cineastas traduziram com tanta delicadeza e força as contradições da vida negra nos Estados Unidos quanto Charles Burnett. Nascido no Mississippi e criado no bairro de Watts, em Los Angeles, Burnett fez parte do grupo de jovens realizadores da UCLA que ficou conhecido como L.A. Rebellion, uma geração que decidiu reinventar as imagens sobre a experiência afro-americana e romper com os estereótipos fabricados por Hollywood. Suas histórias nasceram da observação atenta do cotidiano: pais exaustos, crianças que crescem depressa demais, máquinas que vivem quebradas e vizinhos que se ajudam (ou se atrapalham) para seguir em frente. Em filmes como O Matador de Ovelhas (1977), O casamento do meu irmão (1983) e A aniquilação de Fish (1999), Burnett combina o seu olhar profundamente humano com as experiências negras renegadas pelo cinema hollywoodiano.
Agora, o diretor desembarca em Belo Horizonte para a 5ª Semana de Cinema Negro, onde participa, no dia 18 de outubro, de uma conversa com a curadora da programação internacional, Janaína Oliveira, no Cine Humberto Mauro. É uma oportunidade rara de ver de perto um dos grandes nomes do cinema independente americano, que construiu com delicadeza um afresco da experiência negra norte-americana.
O Matador de Ovelhas (1977)
“O que é a América para mim? Um nome, um mapa, a bandeira que vejo? Uma certa palavra, democracia?”, canta a voz grave de Paul Robeson em uma das canções cuidadosamente selecionadas por Charles Burnett nesse filme. Em O Matador de Ovelhas, acompanhamos de forma episódica o cotidiano de uma vizinhança negra de Los Angeles, centrado em uma família que tenta sobreviver em meio ao desencanto com a promessa de democracia norte-americana. Stan, o protagonista, trabalha em um matadouro e carrega no corpo e no olhar o peso de uma vida que se repete entre a exaustão e o silêncio. Ele não rouba, não mata, não trafica, não fere ninguém e por isso não cabe em nenhum dos estereótipos racistas que recaem sobre os homens negros. Stan não é um rebelde, é um homem que ainda parece acreditar no sistema, mas cuja falta de desejo sexual denuncia o cansaço de participar desse jogo. As cenas das ovelhas indo para o abate simbolizam a traição do sonho americano feita à população negra, mas o filme não se reduz a isso.
Burnett o constrói a partir de pequenos fragmentos: crianças brincando em terrenos baldios, amigos debatendo esquemas sem futuro, motores que não funcionam, vizinhos que se cruzam em ruas sujas. Nada parece de grande importância isoladamente, mas, juntos, esses momentos revelam uma humanidade rara: uma crônica de gestos simples e emoções profundas. Tudo aquilo que Hollywood se recusava a ver.
O casamento do meu irmão (1983)
Embora não tenha a mesma notoriedade que os outros filmes, sua importância dentro da filmografia de Charles Burnett é fundamental para compreendê-lo como autor. O longa acompanha Pierce, um jovem sem rumo, enquanto anda pelos espaços que constroem seu universo: a lavanderia da família, as ruas de Los Angeles com seu amigo Soldier e as casas de seus parentes. Essa narrativa solta espelha a própria falta de direção do protagonista. Seu conflito interno atinge o ápice quando o funeral de Soldier é marcado para o mesmo horário do casamento de seu irmão. Na tentativa frustrada de comparecer aos dois eventos, Pierce acaba não indo para nenhum dos dois.
O filme não segue a estrutura narrativa de O Matador de Ovelhas e apresenta apenas um protagonista como condutor individual da história. Porém, os outros membros da família encarnam as ideologias presentes no tecido social americano, em que Pierce entra em conflito. Seu irmão está se casando com uma jovem negra rica e os embates causados por isso aparecem nos diálogos ácidos das reuniões familiares. O clímax dessa disputa se materializa no dilema entre o funeral e o casamento, dois rituais fundamentais da cultura norte-americana.
A aniquilação de Fish (1999)
Uma comédia romântica sobre um homem negro chamado Fish que acredita viver em guerra com um demónio e Poinsettia, uma mulher branca que conversa com o fantasma do compositor italiano Puccini. A história se passa em uma pensão de Los Angeles, o que cria uma história dedicada a se aproximar da experiência do que é envelhecer e das relações que esse envelhecimento produz entre as pessoas. De certa forma, é possível criar um paralelo entre as crianças de O matador de ovelhas e os personagens idosos de A aniquilação de Fish, no sentido de que existe uma escuta muito atenta a essas pessoas que, por serem muito novas ou muito velhas, não obedecem aos esquemas de vidas funcionais dentro da sociedade.
Na superfície, o filme parece se afastar das tensões sociais que atravessam os outros dois filmes citados, mas a forma como Burnett aborda o amor na velhice, mas também a loucura e a solidão, mantém o seu cinema profundamente político. Mesmo com esse desvio de tom dentro da cinematografia do diretor, ele reafirma sua posição singular no cinema negro: a de um autor que transforma a experiência marginalizada em poesia.
Entre rios de memória e um mar revolto do presente, a 5ª Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte transcorre entre os dias 16 e 24 de Outubro, desaguando em águas que conectam experiências negras no Brasil e no mundo. Para a diretora artística Layla Braz, as águas são ao mesmo tempo testemunhas e transformadoras, elas acolhem e se adaptam aos mares e rios que encontram no caminho e é nesse movimento de expansão que o festival se inspira. Essa energia também conduz a cineasta Safira Moreira, que na sessão de abertura, no dia 16, exibe seu primeiro longa, “Cais” (imagem acima). “A energia das águas é a energia que conduz a minha existência (…) A água, pra mim, é como uma atualização do próprio tempo. Um tempo onde consigo alcançar minha mãe no filme, no mistério do rio”, reflete a diretora, que realiza o seu filme entre a recente perda da sua mãe e a chegada do seu primeiro filho, navegando entre o luto e o renascimento.
A programação internacional da Semana de Cinema Negro traz pela primeira vez a Belo Horizonte o icônico cineasta afro-americano Charles Burnett, mestre em retratar o cotidiano e as complexidades da experiência negra. Como detalha a curadora Janaína Oliveira, a vinda de Burnett é uma celebração em si. O programa “Cotidiano e Revolucionário: o Cinema de Charles Burnett” exibe três de seus filmes fundamentais em restaurações recentes: “O Matador de Ovelhas” (1977), “O Casamento do Meu Irmão” (1983) e a comédia romântica “A Aniquilação de Fish” (1990) , além de um momento de conversa com o público, mediada por Janaína Oliveira, para dialogar sobre sua trajetória, que ocorrerá no dia 18 de outubro às 19h.
O diretor Charles Burnett
A proposta decolonial do cinema negro, que a curadoria internacional define como uma “afirmação do que é preciso pensar e dar a ver no presente”, ganha contornos claros em duas sessões potentes. “Experiência Vivida do Negro, Frantz Fanon 100 anos” exibe o filme “Pele Negra, Máscaras Brancas”, de Isaac Julien, revisitando o pensamento do intelectual Frantz Fanon, cuja obra, como aponta a curadoria, “nos lembra da incessante capacidade do mundo ocidental de propagar e reiterar traumas”. Esse mesmo espírito de libertação ecoa na sessão “Do Rio ao Mar: Palestina Livre”, que apresenta “Contos de Gaza” (2024), de Mahmoud Nabil Ahmed. O filme, resultado de uma oficina, tornou-se, nas palavras da curadora convidada Carol Almeida, um “testemunho de um cotidiano extinto” e uma “imagem de arquivo” de uma Gaza que um projeto específico de poder se encarregou de destruir.
Essas sessões dialogam com a essência de um cinema que se entende como ferramenta de libertação, não apenas estética, mas profundamente política. Pois a Palestina hoje se encontra no coração do mundo como o retrato máximo das consequências da predação colonial. O cinema negro, portanto, assume seu lugar nessa trincheira, advogando por uma revolução que acredita na libertação de todos os povos oprimidos.
Já no campo do cinema nacional, a mostra Cine-Escrituras Pretas apresenta 18 filmes de realizadores brasileiros, selecionados pelas curadoras Larissa Barbosa, Mariana de Souza e Tatiana Carvalho Costa. Elas descrevem os filmes como incursões narrativas e estéticas que “rompem silêncios, tradições e ritmos que se reinventam como ondas”, mergulhando no profundo e intangível das memórias. A mostra apresenta títulos de todos os cantos do país, exibindo a vitalidade da produção negra contemporânea, como por exemplo: Notas sobre a identidade de Marisa Arraes (DF); Mar De Dentro de Lia Letícia (PE); Minha Pele Preta em Terra Verde de Teddy Falcão (AC); Tigrezza de Vinícius Eliziário (BA) e E Seu Corpo É Belo de Yuri Costa (RJ). O encerramento do festival acende os refletores para outro mestre do cinema africano, com o “Tributo ao Cinema Luz de Souleymane Cissé”. O cineasta malinês, que faleceu em 2025, teve sua carreira marcada pela missão de, nas palavras da curadora Janaína Oliveira, “criar um repertório de imagens e histórias que se contrapusessem ao universo de representações negativas sobre o continente”. Sua obra-prima “Yeelen” (A Luz), vencedora do Grande Prêmio do Júri em Cannes em 1987, será exibida na sessão, que também celebra a vida e a obra do professor Mbye Cham, outro pilar dos estudos de cinema africano recentemente falecido. É o fecho perfeito para um festival que, como as águas que o inspiram, segue fluindo, conectando passado e presente, luta e celebração, em um só leito de transformação.
No último dia 29 de agosto, completaram-se 15 anos desde que a Lei de Cotas foi sancionada no Brasil, uma ação que minimamente tenta pagar a “dívida impagável” (Denise Ferreira da Silva) com grupos que foram historicamente excluídos das universidades, majoritariamente pessoas negras. O cinema brasileiro é diretamente movido pelas alterações que a lei vai produzir, principalmente quando observamos o cenário de estudantes de graduação dos vários cursos de cinema que existem hoje pelo país. Para pensar sobre essas afetações no campo do cinema, conversamos com os diretores do filme Rumo, um filme que foi lançado em 2022, no Festival de Brasília, e que nas suas derivas híbridas entre o documentário e a ficção, busca, a partir dos primeiros debates sobre cotas na UnB, a estrutura ainda bastante racista das universidades brasileiras, ao mesmo tempo em que ela – a universidade – se torna uma ferramenta importante para o adensamento do letramento racial.
FICINE – Bruno e Marcus, vocês ingressaram na Universidade de Brasília pelo sistema de cotas raciais. O que isso significou para vocês, tanto em termos de acesso à universidade quanto na experiência subjetiva como estudantes negros dentro desse espaço?
Bruno Victor – Então, eu nunca tinha passado por esse processo de inscrição pelas cotas. A minha primeira vez foi na Universidade de Brasília em 2012 e nessa época eu tinha pouquíssimo letramento racial. Entendi o quanto que era importante ter esse posicionamento quando passei pela banca de heteroidentificação e me autodeclarei negro para outras pessoas pretas. Esse processo foi ainda mais importante porque eu era uma pessoa preta de pele clara e nós sabemos os outros atravessamentos que surgem a partir disso. E isso foi muito importante para eu começar a entender quais são os meus lugares. Ao entrar na Universidade de Brasília eu tive essa percepção de que aquele ambiente ainda era extremamente branco e isso acabou unindo eu e Marcus, por sermos pessoas pretas dentro de uma sala com muitos alunos e professores brancos. Foi daí que surgiu meu entendimento que é importante produzirmos filmes que refletem a questão racial para de alguma maneira poder retribuir também. Porque é um processo contínuo. Claro que ninguém tem essa obrigação de ter que lutar, mas acho que é minimamente coerente que isso aconteça. Então além da política pública, a universidade foi um lugar de despertar racial e eu pude trazer isso para o meu cotidiano tanto dentro da Universidade quanto dentro de casa. Porque o debate das cotas sociais foi colocado também dentro da minha família e o fato da minha mãe ser pedagoga e já ter acessado a universidade me ajudou a entender a educação como uma possibilidade de mobilidade social e melhoria de vida.
Marcus Azevedo – A nossa história é muito parecida, mas eu já tinha passado pela UERJ, que foi a primeira Universidade que eu entrei e que já tinha um processo pioneiro de cotas. Mas funcionava de um jeito diferente, porque você se declarava e já era o suficiente. Eu peguei esse processo inicial onde tudo era muito violento: a reação aos alunos cotistas era extremamente violenta, os professores falavam abertamente na sala de aula que eram contrários aos alunos cotistas e às cotas. Também em alguns cursos, esses mais elitistas, os trotes foram se tornando muito violentos com os alunos cotistas. E aí, quando eu cheguei na UnB, já foi diferente porque eu tive a experiência da banca de heteroidentificação. Eu já tinha feito parte da primeira turma do AfroAtitude, que era um projeto de extensão na UERJ só com alunos negros mas foi muito imporante se autodeclarar na frente de outras pessoas negras, enquanto pessoa negra. E, naquele momento da autodeclaração, elas faziam perguntas, porque elas queriam saber como você entendia essas ações afirmativas como uma política pública e o que ela iria gerar depois. Então, isso já gera uma reflexão logo de cara. É uma coisa muito doida por que na época que eu entrei na UnB eu já tinha visto várias pessoas negras durante o momento da banca, então eu já sabia que eu iria ver a universidade muito mais negra. Mas ao mesmo tempo eu também tive a mesma percepção do Bruno. O curso de comunicação, tinha três ou quatro alunos negros. E isso porque era jornalismo, publicidade e audiovisual juntos. Hoje isso já está diferente e temos uma universidade mais negra graças a essa política. E eu tenho a mesma experiência do Bruno, o meu letramento vem da universidade. Porque foi na universidade que eu tive contato com o debate racial, com autores, com o movimento negro, que antes, para mim isso não estava dado. Imagina, eu, um homem de lá de São Gonçalo. Então, eu e Bruno temos experiências diferentes, mas que acabam convergindo para assuntos muito comuns, como ter passado pelas cotas, também por termos conseguido se enxergar diferente e também procurar uma universidade diferente. Porque nós estávamos com o olhar preparado para buscar aquela universidade das cotas, não uma universidade que já era historicamente branca.
FICINE – O filme de vocês, Rumo, se constrói a partir da memória do EnegreSer, coletivo que lutou pelas cotas na UnB. Embora vocês não tenham participado diretamente dessa militância, essa conquista é parte da trajetória de vocês. Como é assumir a narrativa de uma luta que antecede a experiência pessoal e que, de certa forma, tornou possível que vocês entrassem na universidade?
Marcus Azevedo – Isso é uma coisa que já estava posta no filme desde sempre. A gente não tinha ideia do que era o EnegreSer logo de cara, mas com o andar do filme fomos descobrindo como era algo muito maior do que a gente imaginava. Por exemplo a gente já sabia que era um movimento vindo tanto do movimento negro externo à UnB quanto da participação das pessoas negras na universidade. Sabíamos que havia uma participação de pessoas brancas também, o José Jorge, por exemplo, mas a gente também sabia que havia pessoas negras muito importantes nesse processo todo e que não estavam sendo faladas. Por isso fomos atrás dessas pessoas negras para contar essa história. E foi surpreendente e maravilhoso conseguir compreender um movimento grande e poderoso como o EnegreSer. O fato de eles serem um coletivo e terem se unido tornou eles muito maiores do que eles seriam individualmente e isso tornou a luta muito mais forte. Então o EnegreSer é essencial tanto na luta lá atrás quanto para recontar essa história sobre uma perspectiva negra nos dias de hoje.
Bruno Victor- A Dione Moura foi a relatora das Cotas Raciais durante o processo de aprovação e na universidade ela foi a nossa primeira professora preta. Ela nos apresentou o coletivo Afrobixas. E a partir disso a gente conhece BH, o protagonista do nosso primeiro documentário, Afronte (2017). E depois desse contexto de conhecer o BH, a gente conhece Lia Maria, que era do EnegreSer e nós ficamos extremamente apaixonados por todas as histórias que ela nos contou. Um dia nós ficamos apenas observando ex-membros do EnegreSer conversando e contando todas as suas memórias sobre como foi a implementação, quais foram os desafios e isso foi muito rico para nós. E é muito legal hoje a gente observar que, de fato, estava tudo conectado. Então, pra nós é um fluxo contínuo de rememorar, de reviver, de celebrar porque uma das coisas que mais impactaram a gente na pesquisa de Rumo foi que a gente não conseguia chegar nos arquivos. Até dentro da própria UNBTV, dentro dos arquivos da universidade, os arquivos eram inexistentes. Então nós tivemos que ir buscar nesse lugar mais afetivo, porque foi nesse lugar que conseguiram preservar as memórias mesmo do EnegreSer e da luta preta dentro da universidade. Quem implementou a política de cotas raciais não foi o governo Lula, não foi a instituição da Universidade de Brasília, mas sim esses jovens que se uniram e ficaram constantemente, exaustivamente, lutando pela implementação, porque chegou um momento em que não havia mais como refutar. E o nosso encontro com toda essa narrativa foi muito a partir de essas pessoas terem muito orgulho do que elas fizeram. Então, foi a partir de arquivo pessoal, arquivo de família, que a gente conseguiu, de alguma forma, trazer essa discussão.
FICINE – Então as imagens de arquivo do filme são todas de arquivo pessoal, não tem nada do arquivo da UnB?
Bruno Victor – Quando a gente estava procurando nos arquivos nós encontramos muitos filmes sobre as contas raciais que realmente eram assustadores. O primeiro documentário que a gente teve contato foi um que se chamava “Raça Humana”, que apresentava o debate de uma forma muito estranha, pra dizer o mínimo. Então, todos os materiais institucionais ou obras que a gente encontrou, são importantes, tanto que elas entraram no filme. E elas entraram não só no sentido informativo, mas também para servir como um contraponto do que a gente estava querendo falar. Por exemplo, nós temos acesso a material com falas do Demétrio Magnoli, um jornalista da Globo News, dizendo absurdos sobre as contas raciais. E até hoje ele continua falando absurdos e continua nesses espaços de poder. Então nós temos esses arquivos também, que não são só os arquivos pessoais do Grupo EnegreSer, mas que estão lá justamente para que se entenda o quão animalesco era você participar de uma discussão sobre as contas raciais naquela época. Algumas pessoas até nos questionaram se não era muito violento a gente colocar aquelas imagens e se nós não estávamos caindo em um lugar de reprodução desse discurso. Mas esse discurso existe ainda hoje. Não é uma questão que está ultrapassada. Esse discurso vem a cada ano, a cada eleição, a cada momento político do país, e aí a gente percebe que as pessoas ainda não estão nem um pouco preparadas para debater as cotas raciais. Ou pelo contrário, elas estão extremamente preparadas para invalidar as cotas sociais ou qualquer tipo de política pública.
Marcus Azevedo – Uma questão importante que a gente percebeu no Rumo é o fato de que, na verdade, é a própria população negra que está guardando a sua memória, porque as instituições em si não estão preocupadas com isso. A UnB tem um discurso de que foi um fato interno da universidade que gerou o debate das cotas. Quando na verdade os debates das cotas estavam acontecendo muito antes disso. Em nenhum momento a universidade cita a pressão que o movimento negro já fazia lá na Conferência de Durban, muito antes de toda a movimentação que aconteceu na UnB. Na verdade, o debate chegou na universidade porque o movimento negro já estava pressionando. Então somos nós que estamos guardando a nossa própria memória, porque as instituições estão prontas para dar o protagonismo para outras pessoas.
FICINE – Lançar Rumo em 2022, ano em que a Lei de Cotas foi revisada, me parece um gesto político. Como vocês perceberam a recepção do filme nesse cenário de debates sobre o futuro da política de ação afirmativa?
Marcus Azevedo – Desde que foi lançado, Rumo tem uma recepção muito boa. O filme ainda gera reações muito interessantes porque as pessoas percebem o quanto esse ainda é um debate necessário. O discurso contra as cotas continua se disseminando muito rápido na Internet e eu percebo isso no meu dia-a-dia como educador. Eu vejo o quanto jovens negros são contrários a políticas de cotas raciais mesmo já sabendo os resultados positivos que essa política afirmativa gerou. Mas além disso, alguns festivais perceberam a necessidade de ter um filme como Rumo na sua programação desde que ele estreou aqui no Festival de Brasília. Nossa última exibição foi no mês de julho, no Julho das Pretas. E depois disso já aconteceu de outras pessoas nos procurarem querendo exibir o filme. Então as pessoas continuam a entender o quanto o filme é atual. O debate é atual. Uma coisa que eu sempre falo é que quando o acesso à educação chegou para a população negra também veio um processo de precarização das políticas públicas. A partir do momento em que a população negra adentra as universidades e temos um número expressivo de alunos negros, a universidade pública começa a ser atacada e começa a ser cada vez mais precarizada. E a mesma coisa se dá com a educação básica. Então assim, Rumo nos possibilitou que a gente debatesse e refletisse sobre tantas coisas que estão além do ponto principal. Acho que o filme tem uma recepção incrível, em todos os lugares que a gente passou.
Bruno Victor – Eu tive uma experiência na Mostra OJU, que aconteceu dentro do Cinesesc de São Paulo, em que a gente recebeu quatro turmas periféricas de Ensino Fundamental. E depois da exibição do filme, havia uma quantidade expressiva de adolescentes que não sabiam das resistências e do que foi essa luta para a implementação das cotas. Porque hoje ela existe, é um direito e está garantido, na medida do possível. Mas esses adolescentes não faziam ideia desse caminho. Por isso entendi também o quão era importante o filme seguir circulando, até mais nesse viés também da educação, principalmente em escolas. A gente tem feito esse esforço também de levar o filme para as escolas por entendermos o audiovisual como ferramenta fundamental de educação. E é uma forma de integrar alunos à nossa historicidade que eu acho muito frutífera. A gente também teve exibições em contextos políticos e sociais muito interessantes também. Eu considero fundamental que a gente consiga difundir de uma forma inventiva o que foi o processo de implementação das cotas raciais. Eu acho que o Rumo traz uma linguagem que chama a atenção de outros públicos porque o filme têm um afastamento do formato do documentário. Tanto que foi um documentário que ganhou um prêmio de Direção de Arte. Então, a nossa preocupação ali não era só contar a história, mas como contar a história a partir de referências pretas. Também acredito que o filme teve muito acesso por ser um material que é muito palpável. Ele não é um documentário que você sair exaurido depois de assistir, apesar da densidade das informações que estão ali dentro e apesar de ter uma carga muito emocional que está no discurso das pessoas. Acredito que o Rumo tem esse lugar especial por onde a gente passa; muitas pessoas choram, ficam emocionadas e recontam as suas histórias também. Os debates estão sempre muito vivos. O filme ainda tem um caminho muito feliz pela frente.
FICINE – E por falar em forma, Rumo mistura depoimentos reais e elementos de ficção, sendo uma docuficção. Como vocês enxergam essa tensão entre realidade e narrativa construída e de que forma ela contribui para contar essa história de lutas e conquistas?
Marcus Azevedo – Nós já estávamos misturando narrativas ficcionais e documentários desde o filme Afronte. Então, já estamos há alguns anos nesse processo de pesquisa. Há também o fato de termos o desejo de conseguir experimentar outras construções de narrativa e de trabalhar outras questões plásticas e estéticas. Não que o documentário não permita, mas a ficção nos dá muita liberdade para fazer. Então, nós construímos a história de uma família, que na verdade é a história de muitas famílias e que acabou se misturando com a própria história documental do filme. Foi nessa possibilidade de liberdade e de também não saber exatamente quais foram os limites do ficcional e do documental na narrativa que fez a gente construir o roteiro da maneira como ele foi feito. As entrevistas são muito fortes, muito importantes e com muita informação e eu percebo que as pessoas ficam super vidradas nelas. Mas a história ficcional gera um reconhecimento também. Porque ali estão também as nossas famílias. Essa mistura de ficção e documentário nos deu muita liberdade para construir a narrativa do filme e entender que a política pública gerou mudanças em muitas famílias no Brasil todo.
Bruno Victor – Esse hibridismo foi algo que eu e o Marcos sempre trouxemos para as nossas obras. Hoje eu entendo cada vez mais que a gente tem que se livrar um pouco dessas amarras que o audiovisual propõe para construirmos ou uma ficção ou um documentário, sendo que a gente pode ter uma linguagem muito mais inventiva a partir do hibridismo. Tem coisas que só o documentário não dá conta e tem coisas que só a ficção também não dá conta.
Dentro da ficção tem um pouco das nossas experiências, enquanto pessoas que entraram através das cotas raciais também. Essa valorização de uma mãe que faz isso tudo pela filha para entrar dentro da universidade. Foi uma oportunidade muito rica, não só para a gente, mas também para a nossa equipe, que era uma equipe majoritariamente preta e que também acessou as contas raciais. No processo de ficcionalizar, a gente também teve um lugar de escuta ativa com a equipe. Eu lembro que a gente compartilhava muito as nossas escritas. E foi muito interessante, porque, de fato, a gente sabia que a gente estava criando uma história coletiva. E isso também ajudou a complementar o que era documental também. Então, acredito que o filme precisava ser dessa forma mesmo. Nós usamos todas as ferramentas possíveis para contar essa história: Imagens de arquivo, cabeça-falante, ficção, performance, afrofuturismo.
A gente sabe que pessoas pretas dentro do audiovisual acabam ocupando um sistema de castas em que elas não acessam, por exemplo, a direção, a câmera, a fotografia, a direção de arte, etc. Então, todos no set estavam também entendendo o filme como uma oportunidade de fazer algo que o cinema não estava deixando até então, ou deixava com muita dificuldade. Se eu e o Marcos não criássemos as nossas próprias obras, dificilmente a gente estaria dirigindo alguma outra obra, porque a gente não seria convidado. Então, experimentar a ficção e o documental ali foi muito importante também para a gente mostrar os nossos processos criativos. Estava todo mundo ali com muita sede de mostrar isso. Muita gente na equipe estava pela primeira vez assinando uma direção de departamento em um longa-metragem.
FICINE – Rumo é uma palavra que aponta para frente, mas só existe porque houve um caminho atrás. A luta do EnegreSer abriu a estrada, o filme registra essa memória, e agora vocês também fazem parte desse percurso. Para onde segue esse rumo?
Marcus Azevedo – Eu estou nesse processo de me estabelecer enquanto profissional do audiovisual. Estou trabalhando em várias frentes, conseguindo participar de alguns projetos que para mim têm sido muito importantes. Estou também construindo algumas parcerias, além da minha parceria com o Bruno, que continua. A Edileuza Penha é também outra parceira e eu tenho feito uns trabalhos com ela. Tenho tentado conseguir realizar outros filmes porque isso é um processo longo e demorado. Eu ainda não vivo essencialmente do cinema, então, por isso que eu falo que ainda estou num processo de me consolidar e acreditar que realmente eu tenho uma carreira cinematográfica. Enquanto isso, em paralelo, venho fazendo minhas pesquisas. Neste momento, estou começando a minha pesquisa no doutorado para investigar o envelhecimento LGBT no cinema. Bruno Victor – Eu estou concluindo o meu mestrado. Eu pesquiso memória do arquivo no cinema negro e cinema-ensaio feito por pessoas pretas. Mais especificamente, os filmes Travessia, da Safira Moreira, Tudo que é apertado rasga, do Fabio Rodrigues Filho e Fartura, da Yasmin Thayná. Eu continuo fazendo trabalhos que envolvem questões de raça, gênero e sexualidade. Ano passado, como roteirista, eu lancei a primeira série que eu escrevi, para Paramount e MTV, que é a Helipa – Um Autorretrato, que é um doc reality sobre pessoas periféricas que moram em Heliópolis. Eu também tenho feito curadorias. Já é o segundo ano que eu faço a curadoria de curtas nacionais do Festival de Brasília. Eu sou também conselheiro de diversidade do Cine Brasília e curador dos curtas nacionais que passam junto com a programação do cinema. Atualmente estou desenvolvendo alguns trabalhos autorais, como um documentário sobre uma boate chamada Aquarius, dos anos 70/80, em Brasília, que era um lugar de potência de travestis, transformistas e drag queens e que viveu um momento de repressão policial. Mas é isso, eu sigo muito nesse lugar de sempre estar buscando projetos que tragam pautas raciais e de gênero.
Nas noites acendidas pelo brilho de um projetor, o cinema reencontra uma de suas potências fundadoras: a de criar comunidade. A tela improvisada, erguida em meio a olhos atentos, não apenas exibe filmes. Ela convoca presenças, costura afetos e reativa memórias. É nesse gesto político e poético que se inscreve a Rota dos Quilombos, circuito cineclubista promovido pelo Cineclube Candeeiro com curadoria da EGBÉ — Mostra de Cinema Negro. Em comunidades quilombolas do interior de Sergipe, como Mussuca, Brejão dos Negros e Aguada, o cinema chega como encontro e como direito.
Transformar a exibição de filmes em um bem partilhado entre vizinhos, crianças, griôs e juventudes é continuar uma longa tradição de práticas negras de resistência. A sessão coletiva, gratuita e reflexiva torna-se, nesses territórios, mais do que acesso à cultura. É afirmação de identidade, reconexão com a ancestralidade e reinvenção do cotidiano.
No cineclubismo quilombola, o cinema opera como dispositivo de escuta e pertencimento. Não se trata de impor narrativas externas, mas de criar espaço para que a comunidade se veja, se ouça e se afirme. Cada sessão é seguida por uma roda de conversa. Cada conversa é território simbólico onde política, memória e afeto se entrelaçam. Como dizia Beatriz Nascimento, o corpo de um é o reflexo do outro. E, nessa lógica, o cinema torna-se espelho e multiplicação.
A curadoria da Rota dos Quilombos se constrói a partir dessa ética do reflexo. A programação se divide em duas sessões: uma voltada ao público infantil, outra dedicada a jovens, adultos e idosos. Em ambas, os filmes selecionados revelam uma pluralidade de vivências negras, indígenas e periféricas. As narrativas transitam entre o cotidiano, o fantástico e o histórico, atravessando sertões, recôncavos e florestas de Iansã. Ao romper com uma visão homogênea da negritude, esses filmes ampliam o repertório de imagens e afirmam a diversidade das existências negras no Brasil.
A presença desses filmes em espaços não hegemônicos desloca a centralidade do cinema das salas comerciais para os quintais, as associações e as praças. Desloca também o lugar de enunciação. Na Mussuca, o cinema se une ao Arraiá Cultural da Cozinha de Vó, cozinha ancestral construída coletivamente por mulheres quilombolas, que articula saberes culinários, memória e agroecologia como formas de resistência.
Em Brejão dos Negros, a sessão é organizada junto ao Coletivo Dandaras, formado por mulheres negras da comunidade que atuam na defesa do território, da ancestralidade e dos direitos quilombolas. Em Aguada, o cinema se junta ao centenário grupo Samba de Aboio, guardião de uma tradição musical herdada dos tempos da escravidão e mantida pelas vozes e pelos corpos da comunidade. Em cada território, o gesto cinematográfico se conecta a práticas culturais vivas, dissolvendo a fronteira entre espectador e realizador.
O cineclubismo quilombola é também uma prática de invenção. Reinventa o cinema como ferramenta de reconstrução da história negra no Brasil e reposiciona a recepção cinematográfica como um ritual coletivo e partilhado. Reinventa o território não como margem, mas como centro pulsante de produção cultural. O que se produz nessas noites é um tipo de memória viva, que passa pelos olhos atentos das crianças, pelas risadas dos mais velhos e pelos relatos que emergem após os créditos.
Em tempos de desmonte de políticas públicas, apagamento de vozes negras e controle algorítmico da cultura, o cineclubismo é também uma forma de insurgência. Ele desafia os monopólios, as estéticas pasteurizadas e os circuitos fechados de distribuição. E faz isso com algo simples, mas radicalmente transformador: o encontro. Onde há tela, roda e escuta, há futuro sendo tecido com as mãos da memória e com os olhos da invenção.
Ayalla Anjos é jornalista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais (UFS), pesquisadora do Laboratório de Pesquisa e Produção Audiovisual (LAPPA/UFS) desde 2012. Suas pesquisas abordam cinemas de periferia, branquitude e narrativas contra-hegemônicas no audiovisual brasileiro. Coordena a comunicação de mostras e festivais, assessora filmes e atua em projetos culturais e cineclubistas que fortalecem a visibilidade de realizadores negros e periféricos.
Neste 20 de julho, completam-se 100 anos do nascimento de Frantz Fanon, revolucionário da Martinica cuja obra transformou o pensamento anticolonial e antirracista e fundando bases para um pensamento-ação de tantos e tantos grupos revolucionários. Nas palavras de Angela Davis, ele foi “o mais poderoso teórico do racismo e do colonialismo do século”. Um ponto de virada em sua trajetória ocorreu quando deixou sua terra natal para lutar ao lado dos soldados franceses na Segunda Guerra Mundial. Lá, percebeu que havia cometido um erro ao defender os interesses da elite francesa, pois naquele contexto era visto apenas como um homem negro, um sujeito colonizado. Assim, nasce Pele Negra, Máscaras Brancas, seu primeiro livro. A partir dessa tomada de consciência radical, Fanon mergulha em uma análise profunda sobre os efeitos psicológicos do racismo e da colonização nas subjetividades negras. Sua escrita é ao mesmo tempo pensamento e ação. Não à toa, suas obras seguem influenciando os estudos pós-coloniais nos mais diversos campos como a literatura, o teatro e o cinema, formas pelas quais o povo colonizado encontra meios de resistir, imaginar e existir fora da dominação. Abaixo, indicamos três filmes que ecoam a força do pensamento fanoniano, obras que não apenas dialogam com seus escritos, mas que encarnam sua urgência política e estética.
A Batalha de Argel – Gillo Pontecorvo, 1966
“A descolonização é sempre um fenômeno violento.” – Frantz Fanon
O filme A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, não apenas retrata o processo de libertação da Argélia do domínio francês, mas também materializa o tipo de violência colonial que Frantz Fanon conheceu de perto durante seu trabalho como psiquiatra. A experiência de Fanon com pacientes argelinos, torturados pelo exército francês, não foi apenas um dado de sua biografia, foi também o ponto de virada que o levou da medicina à militância.
No filme, vemos em ação aquilo que Fanon descreve como a divisão absoluta entre o mundo do colono e o mundo do colonizado. A cidade, partida ao meio, separa brutalmente os corpos e seus direitos. Essa arquitetura da exclusão revela que não se trata apenas de desigualdade material, mas de uma negação sistemática da humanidade do outro. A sequência da greve, em que os trabalhadores colonizados são contidos como gado e privados de circular, ilustra o modo como o poder colonial disciplina e humilha. Situação similar, por exemplo, com o tratamento dado aos palestinos pelo estado de apartheid de Israel.
Ao negar ao colonizado qualquer forma de cidadania, o império ensina ao colonizado que a única saída possível é responder também com brutalidade. Fanon entende que essa violência de retorno não nasce de uma suposta natureza bárbara, mas da própria pedagogia colonial, que ensinou ao oprimido que apenas a força é compreendida.
“O colonialismo não é uma máquina pensante, não é um corpo dotado de razão. É a violência no estado de natureza.” – Frantz Fanon
Logo nas primeiras cenas de Concerning Violence, soldados armados atiram em bois indefesos. Não há explicação imediata. A câmera, impassível, registra o absurdo. Quem é o inimigo? Qual o sentido do gesto? Narrado pela voz firme e grave de Lauryn Hill, o documentário transforma as palavras de Fanon em pulsação. “O colonialismo é a violência em estado bruto”, ouvimos, enquanto o arquivo mostra corpos feridos, aldeias devastadas, crianças mutiladas. Baseado no capítulo “Sobre a violência”, do livro Os Condenados da Terra, de Fanon, o filme percorre diferentes territórios africanos que experimentaram o colonialismo europeu em sua forma mais cruel. São nove episódios que remontam as experiências de enfrentamento ao poder imperialista, em que a resistência armada surge não como opção ideológica, mas como única saída diante da opressão total. As imagens de arquivo, muitas delas raras, não romantizam a luta. Pelo contrário, mostram a dimensão humana, frágil e ao mesmo tempo irredutível daqueles que optaram por combater.
O filme não se propõe a explicar linearmente os conflitos que apresenta. A montagem constrói um confronto direto entre a racionalidade do discurso colonial e a brutalidade de suas ações. Em vez de apresentar uma denúncia explícita, o filme aposta na fricção entre palavra e imagem e é nesse atrito que sua força reside.
“O negro é olhado. É o objeto do olhar branco. Olhar que o congela, o aliena, o reduz a coisa.” – Frantz Fanon
Dirigido por Isaac Julien, Pele Negra, Máscara Branca é uma obra ensaística, que funde memória, performance e pensamento para compor um retrato multifacetado de um dos intelectuais mais radicais do século XX. Julien recusa a linearidade narrativa esperada de um documentário televisivo. Em vez disso, constrói um mosaico sensível, em que o Fanon do arquivo se mistura ao Fanon interpretado por Colin Salmon e ao Fanon que vive na fala dos outros. A montagem não busca esclarecer, mas tensionar: como representar um sujeito cuja própria luta foi contra os mecanismos que o reduziram à condição de objeto?
Assim como boa parte do trabalho de Julien, conhecido por seu investimento em filmes que mais produzem uma atmosfera que uma linha narrativa convencional, Pele Negra, Máscara Branca tenta criar dobras a partir também do Fanon psicanalista e das questões de auto-determinação implicadas em sua implicação com o mundo.
Em entrevista, Julien chega a falar o seguinte sobre essa obra: “Penso em filmes como Fanon: Pele Negra Máscara Branca, e em trabalhos anteriores como Territories e Looking for Langston, e acho que todos esses trabalhos tentam criar uma intervenção diferente no ensaio cinematográfico e reforçar essa imagem com algo que pode ser fictício, um tableau vivant, que pode ser imagético, que pode ser tudo ou qualquer uma dessas coisas. Muitas vezes, o público sente que a codificação é muito marcada em relação à imagem, talvez codificada demais.” Descodificar a linguagem, eis aí uma chave para se relacionar com esse filme.
Um mês inteiro dedicado a revisitar a obra de um dos maiores cronistas – em cena e fora de cena – do Brasil: Grande Otelo, o ator, mas também cantor, compositor e poeta foi foco da Mostra Intérprete do Brasil, que aconteceu no Cine Humberto Mauro, em Belo Horizonte, durante junho de 2025. A mostra teve curadoria de Fábio Rodrigues Filho, pesquisador que há vários anos trabalha com uma pesquisa sobre essa figura fundante do cinema brasileiro. Conversamos com Fábio sobre as ideias que deram contorno a essa curadoria e podemos dizer que, nas próximas linhas, estamos diante de um documento muito importante para pensar a história desse mesmo cinema. A entrevista foi feita por Vinícius Dórea.
FICINE – Fabio, você realizou a curadoria da Mostra Intérprete do Brasil que posiciona o corpo negro de Otelo como central na história do cinema brasileiro. E fiquei pensando que esse ano o Otelo faria 110 anos e o cinema brasileiro acaba de completar 120 anos. Há, então, uma relação muito aproximada entre esses dois tempos históricos. Como a mostra articula a obra de Grande Otelo com alguns títulos contemporâneos, gostaria de saber como você percebe a importância de Grande Otelo na continuidade da escrita da história do cinema brasileiro ainda hoje.
Fabio Rodrigues Filho – Primeiramente, há uma questão nebulosa sobre essas datas, que talvez seja onde o jogo começa. Veja, alguns biógrafos do Otelo já colocaram em suspeita essa questão do Otelo ter nascido em 1915. É muito possível que ele tenha mentido o ano de nascimento para justamente trabalhar mais cedo. Então tem uma questão sobre essa efeméride de 110 anos, mas ainda assim, em que pese essa atitude feita, é de fato alguma coisa para celebrar mesmo. A história do cinema brasileiro se confunde com a história do Otelo, e vice-versa. O Otelo transitava entre diferentes campos: foi compositor, sambista, entrevistador e poeta. Mas, fundamentalmente, no cinema, ele atravessou períodos decisivos. Então, uma coisa interessante que esta mostra faz tem a ver com uma certa dimensão celebrativa, mas não repousa só nisso.
É por isso que gosto de chamar a atenção para essa suspeita da data, porque é preciso celebrar, mas tem um outro trabalho, que é olhar Otelo a partir do agora, do hoje, desse momento histórico do cinema brasileiro em que estamos. Por isso, o título da mostra: “Intérprete do Brasil”. Intérprete de pelo menos três esferas: A primeira é de um ator que encarnou personagens que atravessaram uma história. Ele esteve presente em filmes da chanchada, cinema novo, cinema marginal, e houve as suas passagens entre um período e outro.
A segunda dimensão do intérprete seria aquela relacionada àquele que comenta, que observa criticamente. Seria essa dimensão da interpretação, como atualmente falamos, da interpretação pessoal ou de imagem. É aquele que não só, portanto, encarnou, mas observou criticamente. Nós podemos fazer o movimento de discordar dessa interpretação, mas acho que é importante reconhecer que ele também foi um observador crítico, inclusive nos filmes. A professora Leda Maria Martins esteve com a gente em uma sessão e ela apontou justamente sobre a posição do ator grande Otelo no filme Assalto ao Trem Pagador.
E tem uma terceira dimensão, que não pode deixar de ser levada em consideração e que vem junto à pesquisa do professor Luis Felipe Kojima Hirano, de onde parte o título da mostra, que é a dimensão do intérprete como tradutor, mediador entre mundos. Esse trabalho do Otelo me parece bastante relevante, porque está nos filmes e nos personagens que ele encarnou, mas ele mesmo como um ator social, na sua vida, na sua postura, fez também, ao seu modo, essa forma de tradução. Ele era, ao ser intérprete, também tradutor de profundezas de um certo Brasil, que quis usar ele, que o quis como personagem de uma certa narrativa de país. E o Otelo, ao seu modo, escapou. Ele escapou da condenação, do aperto e sobreviveu. Fez isso inventando uma poética própria, inventando uma forma, que podemos chamar de um leque de estereótipos.
Mas tinha também a ginga, a inteligência e as tentativas de driblar um sistema muito codificado para o ator negro como um todo, particularmente para ele, que por muitas vezes foi infantilizado e colocado só no campo da comédia. Quando, na verdade, a gente pode pensar em alguns filmes em que o Otelo tinha traços de um certo regime de atuação da comédia mas também fazendo um drama. Também Somos Irmãos, por exemplo, é um filme estritamente dramático mas também que tem um certo tom de comédia e eu enxergo um Otelo muito plural ali.
Então sobre a mostra, a ideia geral era utilizar a luz do agora e olhar Otelo na sua multiplicidade de forma digna múltipla e contraditória e apresentá-lo a uma nova geração que, porventura, não tenha conhecido ele. O Otelo morreu em 1993, já são 32 anos da sua morte e isso quer dizer que pelo menos duas gerações não conheceram Otelo. Ele fez mais de 118 filmes, a gente exibiu apenas 37, mas, ainda assim, são traços de um ator que ainda temos muito a conhecer, a explorar e a investigar.
Fábio Rodrigues Filho. Foto: Jorge Silvestre
FICINE- No seu filme Tudo que é apertado rasga, você utiliza a montagem como método para costurar um pensamento em torno do ator negro brasileiro. Me parece que, com essa mostra, você dá continuidade a esse trabalho de construção de sentido, agora por meio da seleção e justaposição de filmes que, ao se relacionarem, também se transformam. Gostaria que você comentasse sobre esse processo curatorial, especialmente pela escolha de abrir a mostra com The Kid, do Charles Chaplin, o que me pareceu uma decisão tão inesperada quanto interessante.
FRF – Vou começar pelo último dado que você citou porque eu acho que ele é importante. Aquela exibição do Charlie Chaplin pra mim é o prólogo da mostra. E isso tem muito a ver com o meu trabalho na montagem. Eu adoro prólogos, tendo a fazer filmes que vão ter prólogos porque me lembra um pouco uma peça teatral. Sei que não é a mesma coisa, mas tem um pouco dessa questão de pensar a montagem como um espetáculo teatral. A minha pira de fazer imagens ou especialmente de fazer arquivos contracenarem vem um pouco desse delírio meu, que informa a minha prática. E na mostra a gente tentou experimentar isso, eu propus que tivesse essa exibição do Charlie Chaplin como um prólogo porque The Kid foi um filme muito importante para o Otelo. Volta e meia ele coloca esse filme como um filme paradigmático para ele começar a atuar no cinema. Foi muito curioso que o Chaplin abriu a mostra porque eu tenho a impressão que esse modo da comédia é um tanto clownesca. Por vezes naquilo que o clown tem que é do pensamento sobre a mecânica do riso e também do drama que está por trás disso. E aqui nós podemos falar de uma gramática otelística de atuação, que vai desde arregalar os olhos, trejeitos, caretas, entonação da fala, etc. No próprio Assalto ao Trem Pagador, acho que tem um modo como o Otelo anda, que me lembra um tanto traços do próprio Charlie Chaplin.
Quanto ao meu trabalho de montagem nos filmes e a relação com a mostra, tenho a impressão que o meu trabalho já na montagem parte de uma perspectiva curatorial porque estou selecionando e vendo os filmes para depois escolher os trechos. Antes de montar o Tudo Que É Apertado Rasga,eu havia começado uma pesquisa para uma mostra chamada “Mostra Performance Negra no Cinema” em Cachoeira – BA, que aconteceu em 2018, junto ao Cineclube Mário Gusmão, que eu fazia parte na época. Durante a pesquisa de filmes para a construção dessa mostra, fui vendo algumas imagens, que podemos chamar de paralelas, que são entrevistas, fotografias, que, a bem dizer, não entrariam na mostra. Mas conforme fui vendo essas imagens, tive a impressão que era preciso uma outra coisa, que não está só na ordem de exibir, que é o que faz uma mostra, não está na ordem só do falar, que é o que, de alguma forma, um cineclube rende após a exibição. Isso porque eu não conseguia falar direito e achava que exibir não dava conta do que se mostrava conforme eu ia entrando nesses arquivos.
Um exemplo desses é o que está no filme, que é quando a Zezé Motta disse que o Antônio Pompeu morreu de tristeza por falta de oportunidade. Aquele material, em específico, quando eu vi, me doeu profundamente. E assim foi aos poucos que eu entendi que era preciso uma intervenção, porque aquilo não parava de se repetir. Primeiro, tinha a ver com uma certa roda morta. Eu via acontecer com pessoas muito próximas de mim, atores que caíam no ostracismo, que, enfim, entravam em depressão e tinham suas vidas à beira de um abismo, em maior ou menor grau. A gente sabe de histórias como essas, na atuação, mas acho que marca um pouco a história de artistas negros e negras, no geral.
O que eu queria chamar a atenção é que, portanto, exibir e falar não dava conta. Embora exibir e tentar falar tenha sido uma pedagogia muito importante para a montagem, ficava e restava uma certa dimensão incomunicável que eu não conseguia precisar. E aí foi quando eu pensei assim: “eu acho que preciso montar.” Eu preciso mostrar, mostrar o que se mostra, que é um pouco o que a montagem faz, ou pelo menos tenta fazer. Não é o filme tomando posse dos arquivos, mas, ao contrário, é retirando trechos por um momento para devolver aos filmes de origem.
São trechos de muitas obras, de muitos materiais, entrevistas, programas televisivos, etc, para criar uma montagem, retomar uma outra montagem e devolver aos próprios trabalhos. Veja, devolver diferente, tentando mudar um pouco a nossa postura de olhar. Mas acho que tem, sobretudo, uma devolução a quem tem direito, devolver ao território de fato da política, do terreno social, para retirar do juízo final, do julgamento e da condenação. Esses atores, essas atrizes foram condenados não só nos seus papéis muitas vezes estereotipados, mas condenados num certo modo em que foram interpretados. Me parecia, na época, que a história era um pouco mais complexa, que houve tentativas de furar, tentativas de intervenção na narrativa, de realizar um rasgo na imagem. E essas tentativas não foram só nos filmes, mas no próprio tecido narrativo do país que os queriam, de certa maneira, ou somente até certo ponto. Então, estou chamando atenção a isso, porque, embora o trabalho de montagem não se confunda com o trabalho de pesquisa para uma mostra, podemos pensar pontos de interseção, mas são coisas diferentes. Mas foi importante ter feito aquela primeira mostra com aquele coletivo, porque me veio o desejo de intervir nessas imagens, porque elas também me feriam.
FICINE – A Mostra apresenta títulos raros, como Exu-Piá: Coração de Macunaíma e A Força de Xangô, incluindo cópias em película e outras restauradas em DCP. Você poderia comentar sobre os desafios de encontrar essas obras para exibição pública?
FRF – Para operacionalizar uma mostra é preciso uma equipe. Tivemos a Layla Braz, na direção artística, o Vitor Miranda, na gestão do cinema, a Juliana Gusman, na produção de cópias, e a Glaura Cardoso Vale, na edição do catálogo. Uma equipe pequena, mas que a gente esbarrou numa limitação grande, porque alguns filmes que a gente queria que estivessem na mostra não tinham cópias possíveis de serem exibidas. A gente conseguiu os direitos de muitos filmes que a gente queria muito, outros não, mas muitos a gente conseguiu através do trabalho persistente dessa equipe que estava envolvida, especialmente a Layla e a Juliana na produção de cópias. A questão da preservação das cópias é imensamente importante pois possibilita que a gente as veja em 35mm, como é o caso de Amei um Bicheiro, que era um filme muito importante para o Grande Otelo. Também Matar ou Correr, que é um filme que não tem uma cópia digital boa. É muito importante ter uma qualidade boa pois possibilita um pensamento sobre o ator e o trabalho de atuação que faz. A gente viu o Rio, Zona Norte projetado em uma cópia excelente, e isso é fundamental para a gente conseguir complexificar a história do ator e da atriz negra no cinema. Porque a intervenção, a força da atuação, a tentativa de alterar o estereótipo dentro de um sistema muito codificado, muitas vezes está na nuance, no gesto pequeno.
FICINE – Quando pensamos na memória audiovisual negra, a névoa do esquecimento parece muitas vezes não ser acidental, mas construída. A cineasta Adélia Sampaio, por exemplo, falou sobre o desaparecimento dos negativos de seus filmes no acervo do MAM-RJ. Como você lê esse tipo de apagamento? O que isso revela sobre a preservação e a memória da nossa imagem no cinema brasileiro?
Fabio Rodrigues Filho – Esses dias eu estava lembrando do filme Abolição do Zózimo Bulbul. E o Zózimo sempre quis dirigir um filme com o Grande Otelo. Tanto é que no Tudo Que É Apertado Rasga tem um trecho que ele fala assim: “O Otelo é o norte de todos nós que queremos fazer cinema no Brasil.” Há uma história complexa entre os dois. O Otelo já criticou algumas produções do Zózimo, até mesmo o Alma no olho. Mas eu queria chamar a atenção para uma coisa: no filme Abolição, que a gente exibe na mostra e inclusive tem o Otelo, ele é dedicado a algumas pessoas: ao Leon Hirszman, ao Glauber Rocha e ao cineasta negro Hermínio de Oliveira. E eu fiquei bem impressionado com isso porque eu nunca tinha escutado falar sobre o Hermínio de Oliveira. Então fui atrás e achei um texto do Zózimo que falava do Hermínio e de dois filmes que ele havia dirigido. Um filme sendo sobre o Grande Otelo e esses dois filmes estão desaparecidos. Depois fui pesquisando nos jornais e em algumas hemerotecas e fui tentando achar o rastro desse cineasta. Nessa pesquisa inicial que eu fiz eu descobri que ele produziu em volta da ditadura e que ele foi se exilar fora do país. Estou falando disso porque talvez essas estratégias de preservação da nossa memória têm sido feitas especialmente por nós mesmos. Então, pode ser que eu esteja supervalorizando mas tem um certo trabalho de fundar um arquivo nos filmes. Tanto no Tudo Que Apertado Rasga como no Não Vim No Mundo Para Ser Pedra fiz uma tentativa de fundar um arquivo lidando com outros materiais.
Curiosamente, por outro lado, muitos filmes do Otelo, de fato, estão perdidos. Por exemplo, um dos primeiros filmes que o Otelo atuou, que é o Moleque de Tião, que é inspirado na vida dele, está perdido, não existe mais. Não sei se consigo responder direito a sua pergunta mas eu acho que essa mostra tem sido muito incrível, não só porque é uma oportunidade de conversar com o público em geral e com especialistas sobre o Grande Otelo mas também por que acho que tem uma coisa incrível que está acontecendo com ela, que é saber que um traço de um cinema do país que está sendo ali dobrado a partir da memória do Otelo. Esses trabalhos de memória que nós temos feito, cada um ao seu modo, permite que a gente possa recuperar algum gesto esquecido. Isso é também uma insurreição em relação ao cinema que quis na ausência construir não-existências. O que talvez os atores tenham nos mostrado é que não necessariamente a ausência é uma não-existência. A própria Zezé Motta fez um catálogo de atores e atrizes negras (via CIDAN, Centro de Informação e Documentação do Artista Negro), junto com o Antônio Pompeu, para, justamente, não terem desculpas para não contratarem o ator e a atriz negra. Essas estratégias, talvez não nos servem mais hoje mas eu acho que é preciso atentar-se a outras estratégias e contra-estratégias. Mas não só continuar, sabe? Mas também permanecer. Talvez seja isso: permanecer.
FICINE – Fico pensando que esse lugar de celebração na sua curadoria acaba reconstituindo uma presença a partir da falta…
FRF – Eu sempre tenho muito receio com a questão da celebração nos filmes que eu faço, na pesquisa que eu nutro a nível acadêmico e nas mostras que realizo. Acho que é preciso celebrar. O movimento político tem uma certa relação com a festa mesmo. Mas acho que tem uma outra coisa que talvez seja mais importante que a celebração. Na abertura da mostra eu disse assim: “Olha, alguns filmes que a gente vai exibir aqui tem suas grandes complicações. Filmes como Carnaval Atlântida ou Sinhá Moça, eu pessoalmente tenho questões sérias.” Eu falo não só do racismo mas de postulações sobre o racial, sobre hierarquias raciais e essencialismos raciais postulados que estão nos filmes. Portanto, claro que tem uma dimensão celebrativa, mas tem uma outra dimensão que exige uma implicação. Exige um certo diálogo, exige uma certa vontade de se demorar um pouco mais na imagem e não só comemorar. Desde que eu comecei a montar eu digo que é um jogo não ganho. É sempre uma tentativa de transcodificar, de instaurar, de mudar o significado dentro do próprio filme. Essas contra-estratégias de intervenção por parte dos atores e das atrizes, ainda que isso aconteça, são coisas mínimas e talvez a gente precise colecionar esses pequenos momentos para inclusive enquadrar o enquadrador. É preciso entender como a violência se opera e entender como ela se atualiza. Por que o fenômeno do racismo também se aperfeiçoa. Tenho a impressão que é preciso celebrar sim, são existências incríveis mesmo que devem ser homenageadas, mas tem um outro trabalho que a gente não deve se furtar de fazer, que é um trabalho que nos exige um pouco mais de concentração, um pouco mais de calma, não se apressar muito. Porque talvez para ver a contradição ou para entender o modo como a violência opera, é preciso que a gente vá sem tanto furor, sem tanta animosidade. Para que a gente consiga criar, ao nosso modo, estratégias para mudar essa história.
FICINE – Para encerrar, acho que a gente falou de um Otelo geracional, de um Otelo do presente, mas fico pensando se no cinema negro feito por realizadores jovens hoje há ecos, continuidades desse legado de Otelo. Que Otelo ainda vive no cinema que está por vir?
FRF – Nossa, meu Deus, eu não sei responder isso (risos). Quando fiz essa mostra agora, os jornalistas me procuraram para entrevistas. E tem a questão do tempo da pesquisa. Eu comecei essa pesquisa na graduação e agora estou no doutorado, então, é um tempo considerável mesmo pesquisando. E aí percebi que as pessoas vinham a mim um pouco afoitos querendo saber o que eu descobri ao longo desse tempo. Claro que algumas coisas fui criando métodos para demonstrar e qualificar argumentos, hipóteses, caminhos, pelo menos eu suspeito. Mas tenho a impressão, que fui com o tempo me apressando menos em relação ao Grande Otelo. Quando comecei a pesquisa do mestrado houve um momento que eu travei na montagem. Não conseguia fazer e não me satisfazia com aquilo que estava sendo feito. Pensei que ia abandonar o filme e eu tive uma grande crise e ela só destravou quando eu entendi que o Otelo era muito mais que aquilo. O Otelo escaparia daquilo. No fundo não era sobre o Otelo. O Otelo era muito mais do que qualquer filme e pensar assim foi muito importante. Parece uma coisa muito simples, mas não é. E isso me permitiu dar margem para dúvidas, e não me apressar a conhecer. Hoje o Otelo é muito mais misterioso pra mim do que era antes quando eu comecei a pesquisa. Eu tenho mais questões hoje do que eu tinha antes. E quando eu falo que sei menos hoje não significa um niilismo em relação à pesquisa. É por que agora é um saber que precisa passar por um certo nível de discussão, embates e fricção com a matéria real. É preciso consultar as fontes, por exemplo. Então, eu não me apresso tanto assim.
Fiquei muito feliz que essa mostra está acontecendo por tudo isso que você já falou: os possíveis 110 anos de Otelo, por ser no mês em que se comemora o dia do cinema brasileiro, por ser uma mostra no próprio estado onde o Grande Otelo nasceu, por ser uma mostra que a gente consegue exibir títulos muito raros. Wilson Moreira tem uma música que chama Okolofé, feita para o Grande Otelo e ele diz assim: “velho mestre Sebastião Prata, vinho de boa pipa”. É lindo isso, porque conforme o tempo vai passando o Otelo está envelhecendo melhor. A gente consegue com esse lastro do tempo olhar algumas coisas que eu tenho a impressão que antes a gente não conseguia. A gente exibiuTambém Somos Irmãos, um filme de 1949. E algumas pessoas falaram que o filme defende a democracia racial. Tenho minhas questões e eu não concordo propriamente com isso. Mas à luz do presente é possível dizer que a gente tem olhado os filmes de outra maneira. Abrindo-se mais a dúvidas e formulando questões mais complexas. Acho que o Otelo fala ao presente e ao futuro. Na vinheta da mostra que eu fiz há um trecho de um programa que chama “Quem Tem Medo da Verdade”, e o Otelo fala assim:“Eu sou o amanhã, eu estou caminhando com aqueles trabalhadores que estão indo pisar para o norte do país”. Tem outra hora que ele fala assim:“Ao me condenar, vocês estão condenando o Brasil”. Acho muito interessante essa estratégia discursiva, porque o Otelo encarnou alguns signos fundamentais para uma certa ideia de identidade nacional: o sambista, o negro, o pai, o alcoólatra, o malandro. No entanto, nesse último trecho é como se ele revertesse a coisa. É ele dizendo por ele mesmo que ele é o país e ele projeta isso para o amanhã. Não à toa, no Também Somos Irmãos, a música que ele compôs, diz assim: “a vida não vale nada, há de passar cem anos até que se esqueçam de mim”. Talvez seja esse passado que agora se sente visado por esse presente que estamos.
O poeta mineiro Edimilson de Almeida Pereira falou que a ideia do ancestral talvez seja uma pessoa que encarnou em si dilemas imanentes e não a de um sujeito perfeito. O ancestral visto como alguém que respondeu e lidou com questões que continuam hoje a nos atravessar. O exercício é esse: pensar como o Otelo encarnou esses dilemas. Respondeu, criou, gingou, dançou, a partir daquelas questões. Ao mesmo tempo precisamos checar se essas estratégias ainda nos servem. O movimento a ser feito é inspirar-se nele para construir, porque efetivamente os problemas continuam a querer nos apertar e continuam a nos condenar.
Fábio Rodrigues Filho atua em curadoria, montagem, pesquisa e crítica de cinema. Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais, é mestre pela mesma Universidade. Baiano, graduou-se na UFRB. Desde 2023, está na coordenação do Cinema do Dragão, em Fortaleza/CE. Compôs a comissão de seleção de festivais, mostras e labs como o CachoeiraDoc, FestCurtasBH (2019 a 2023), Goiânia Mostra Curtas (2022 e 2023), Festival Internacional do Audiovisual Negro, Mostra Sesc de Cinema (2023), Dialab (2018), entre outros. Em 2025 foi o curador da retrospectiva “Intérprete do Brasil: uma homenagem a Grande Otelo”, realizada pelo Cine Humberto Mauro. Realizou e montou os filmes “Tudo que é apertado rasga” (2019) e “Não vim no mundo pra ser pedra” (2021). É membro do grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Atua também como cartazista de filmes e cineclubista, tendo coordenado o Cineclube Mário Gusmão (2016 a 2018) e participado de outros projetos de exibição.
Trecho de “Cantiga Quase de Roda” de Thiago de Mello
Como medir uma vida? Por poesia? Por dores? Por conquistas? Por tudo isso junto? Aparentemente essas são perguntas que somente quem carrega uma vida inteira de experiências consegue responder. Ruth de Souza, grandiosa atriz brasileira, estaria hoje, no dia 12 de maio, completando 104 anos de idade e de muitas histórias para contar. Ela, que foi a primeira atriz brasileira a ser indicada a um prêmio internacional, no festival de Veneza em 1953 por seu papel em Sinhá Moça, se empenhava bastante para contar a história de sua vida. Como se fosse um exercício de memória, Ruth aceitava todos os convites para entrevistas, publicações de livros e produção de filmes sobre a sua trajetória como atriz. Até o fim da sua vida, em 2019, ela esteve diante das câmeras, exercitando seus talentos e lembrando do passado. E fez isso pela última vez em parceria com Juliana Vicente no documentário Diálogos com Ruth de Souza (2022).
Em determinado momento do filme, Ruth tenta lembrar de cabeça o poema de Thiago de Mello que abre este texto. A declamação vem logo após ela se lamentar que não consegue mais andar por causa da sua idade. Considero esse momento do filme de uma beleza tão singular, pois o que temos ali é a recompensa de uma vida inteira vivida através da ótica da arte. Ruth se apega à poesia até quando suas pernas não a obedecem mais. De certa forma, foi a arte que carregou o seu corpo pelo mundo e agora, na velhice, é o que continua o sustentando.
De todas as histórias que foram contadas durante os 100 minutos do filme quero destacar a parceria que Ruth teve com Abílio Pereira de Almeida, diretor de Candinho (1954). Ruth interpretaria Bastiana, logo após ter feito Terra é Sempre Terra (1951) e também ter interpretado uma personagem chamada Bastiana nesse filme. Muito questionadora Ruth pergunta ao diretor se não havia outro nome para a personagem, no que ele diz: “Toda negra se chama Sebastiana”. Ela retruca: “Toda negra não, eu me chamo Ruth!”. E assim a personagem recebeu outro nome, escolhido pela própria Ruth. Foi nessa ousadia que a nossa estrela conseguiu superar as barreiras racistas e fazer um nome para si mesmo.
Ruth foi pioneira em diversos momentos da sua carreira. Foi a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Também foi a primeira atriz negra a protagonizar um filme no Brasil, “Sinhá Moça” (1953), dirigido por Tom Payne. Por essa atuação, foi a primeira atriz brasileira indicada a um prêmio internacional de cinema: o Leão de Ouro de Veneza. Foi a primeira atriz negra a protagonizar uma telenovela na Rede Globo em A Cabana do Pai Tomás (1969). No teatro interpretou a primeira Desdêmona negra do Brasil. No filme de Juliana Vicente, quando perguntada se era isso tudo que almejava para sua carreira, Ruth diz que ela só queria mesmo trabalhar e não buscava o estrelato. Mas por toda a vida ela constantemente se perguntava: “O que eu quero? Como é que vou conseguir isso? Como é que vou chegar onde quero?”. Ruth de Souza, a nossa dama negra da dramaturgia, era uma pessoa alinhada com o seu desejo e fez o que lhe mandava o coração.
Gosto de imaginar a quantidade de meninas negras dos anos 60 e 70 que viram a imagem de Ruth na televisão e se chocaram com a possibilidade de viverem outra configuração de vida. Uma que as permitissem sonhar. Sobre a sua infância, Ruth disse: “As pessoas não acreditavam que uma menina negra tivesse sonhos – e quando digo isso é a pura verdade. Não acreditavam que eu pudesse ter sonhos.”Essa vontade de realizar foi alimentada por sua mãe, Alaíde Pinto de Souza, que nasceu no Rio de Janeiro e se mudou para Minas Gerais após se casar. Alaíde contava para Ruth como as ruas do Rio de Janeiro eram iluminadas e limpas e como ela sentia falta de morar lá. A pequena Ruth então tentava colocar vagalumes em fileira para recriar as ruas desse Rio de Janeiro falado por sua mãe, mesmo sem ainda ter ido lá. Já estava ali uma atração pela representação, pelo palco. Uma instiga em fazer teatro.
Em Diálogos com Ruth de Souza, além de presenciarmos 10 anos de conversas com a nossa estrela negra, a diretora Juliana Vicente escolheu criar momentos ficcionais de uma mulher que caminha, encontra companheiras e atravessa obstáculos. Apesar de Ruth chegar nos últimos anos da sua vida sentada em uma cadeira de rodas, prefiro me apegar à imagem de Ruth como uma mulher que caminha, que atravessa e rasga. Ruth recontava a história da sua vida como afirmação do seu trabalho e como possibilidade de perpetuação. A sua existência será lembrada por gerações a vir como uma mulher que sonhou o seu lugar no mundo. Termino essa homenagem à nossa grande dama com o epitáfio do poema citado por Ruth no filme e que inicia esse texto: “O canto desse menino talvez tenha sido em vão. Mas ele fez o que pôde. Fez sobretudo o que sempre lhe mandava o coração”.
Escrevo esso texto na tentativa de elaborar a respeito da minha experiência como participante na 8ª edição da Mostra de Cinema Negro Egbé, que aconteceu na cidade de Aracaju, Sergipe, entre o final do mês de março e o início de abril do corrente ano. Utilizo a palavra “elaborar” pois penso que a Egbé apresentou dinâmicas plurais e interessantes que me atravessaram de forma pessoal e escrever sobre elas funciona como uma espécie de revelação, com seus códigos, sobre uma ordem de pensamento minha que relaciona o cinema, a vida, algumas identidades e um território. Território esse que vivo e que faz com que eu escreva esse texto a partir das experiências que tive nele.
Pretendo então escrever sobre a Mostra de forma cronológica, mas também transgredir essa lógica e obedecer a não-cronologia da minha memória. Espero que esse texto faça jus a essa edição da Egbé tanto em sua programação heterogênea em forma e conteúdo, mas também à quantidade de sentimentos que a Mostra me provocou. Nesse sentido, vejo que a construção de pensamento por trás dessa 8ª edição da Egbé demonstrou um cuidado em não fornecer respostas para as questões postas, mas trabalhou para estimular a realização de perguntas.
Teatro e cinema negros
Na mesa de abertura, “Atravessamentos entre Teatro e Cinema Negro”, os convidados, Severo D’Acelino, Jonathan Rodrigues e Rita Maia discutiram as raízes do teatro negro sergipano e o seu estado atual. A presença de Severo D’Acelino na mesa é de grande valor à Mostra, pois além de ser uma figura importante para o Teatro Sergipano, Severo é também uma das maiores lideranças do Movimento Negro em Sergipe. Não à toa o Troféu Homenagem da Mostra de Cinema Negro Egbé recebe o nome de Severo, sendo ele o primeiro à recebê-lo. Falando de sua trajetória como ator, Severo D’Acelino disse que todos os seus personagens foram negros, sergipanos e, de certa forma, foram Severo(s). Ele construiu uma identidade pessoal e profissional que são atravessadas por um território, colocando o que ele acredita ser mais rico na sua atuação, que é ele próprio. Severo desafia convenções sociais que tendem a limitar o que são essas experiências coletivas: ser negro e ser sergipano. Ele se apropria dessas ideias e as utiliza em seu trabalho para criar uma ideia de sergipanidade e negritude que se encaixam no seu corpo.
Nessa 8ª edição os homenageados foram Mariano Ântonio e Valdice Teles, personalidades que contribuíram e contribuem para a construção do imaginário negro brasileiro. Confesso que senti falta de ter um contato maior com a trajetória de vida de Valdice e Mariano durante a Mostra. Apesar da Egbé ter produzido dois episódios de podcasts (episódio sobre Mariano Antonio, episódio sobre Valdice Teles) trazendo um apanhado geral da vida dos homenageados, penso que alguma exposição sobre os seus trabalhos com apoio de trabalhos arquivistas no geral iriam enriquecer o trabalho de formação dessa edição. Porém, é notório que a razão dessa falta também nos diz algo muito importante: porque ela se dá pela escassez de pesquisas sobre Mariano Antônio e Valdice Teles, mesmo suas mortes já terem acontecido há 20 e 30 anos, respectivamente. Poucas informações sobre seus trabalhos aparecem em buscadores online ou em portais de pesquisa acadêmica e isso revela não somente a ausência de pesquisas como o apagamento de arquivos sobre figuras negras históricas do território sergipano. No entanto, há também nesse vazio um convite para que novas mobilizações surjam e possamos agir para perpetuar as suas memórias.
A intersecção entre cinema e teatro que essa edição da Mostra realizou, tanto na performance, como também na homenagem e convite dessas figuras emblemáticas do teatro sergipano é muito rica, pois mostra que há uma conversa entre eles no sentido que o teatro sergipano entendeu que o como é mais importante do que a coisa. E o teatro parece incorporar esse como, que vem de uma tradição das religiões de matriz africana, mais especificamente do Candomblé, através de um trabalho de preparação corporal e referência estética.
Sergipanidade, a que será que se destina?
Outro convidado da mesa de abertura, Jonathan Rodrigues, fez uma provocação acerca do conceito de sergipanidade. Ele captura esse conceito e se pergunta se esse não estaria sendo utilizado por interesses escusos na tentativa de apagar as raízes afro-diaspóricas e indígenas do nosso estado. A partir desse primeiro momento já fica claro que a Mostra se colocou em um lugar que possibilite a elaboração de perguntas que provoquem um tensionamento e essas só surgiram através de um trabalho de valorização do pensamento.. Essas perguntas ganham uma extensão e corpo na performance do próprio Jonathan Rodrigues que aconteceu na sexta-feira, 4 de abril, no Centro de Criatividades.
Jonathan utiliza seu próprio corpo na performance “Corpo Terra” para indagar esse lugar de sergipanidade e questionar o eurocentrismo do seu próprio trabalho como dançarino e performer. Ele aponta certos desvios que são normalizados na cultura e demonstra violências cotidianas como o fato de seu corpo sergipano ser muitas vezes enxergado como um corpo baiano. É como se o cabelo black e a sua cor retinta não combinassem com o território sergipano e isso diz muito sobre qual é a imagem que a sergipanidade tenta alcançar. É um conceito que não chega nas periferias, que não chega nos becos enlamaçados e que não chega nos quilombos. A sergipanidade é, nesse sentido, um produto utilizado para vender. Jonathan em sua performance nos lembra dos “nomes de autoridades” que nomeiam as praças e ruas da cidade, leia-se, imperadores, políticos, advogados e desembargadores, o que só revela uma dissonância que essas homenagens carregam quando reforçam que a imagem representativa que Sergipe tenta trazer não é de um corpo preto parecido com o seu.
As indagações de Jonathan puderam ser observadas na prática durante a realização dessa 8ª edição da Egbé visto que a escolha dos espaços para a realização da Mostra foram também escolhas políticas. Primeiramente, o Centro de Criatividade, um espaço localizado ao lado de um quilombo urbano, a Maloca, e que precisa ser melhor utilizado como um espaço para se pensar arte na cidade. Além disso, o Cine Vitória, o único cinema de rua do estado de Sergipe, que se localiza no espaço da Rua 24h em Aracaju. A diretora-geral da mostra, Luciana Oliveira, falou da dificuldade que teve para conseguir que as portas principais do espaço ficassem abertas durante a realização da Egbé e para que isso acontecesse foi-se necessário uma mobilização que envolveu até parlamentares locais. Uma indicação grave de como Sergipe pensa na cultura como uma possibilidade de economia, de forma geral, somente quando se intitula de “país do forró” durante o mês de junho. A imagem da “sergipanidade” utilizada na publicidade tem dado resultado pois vende e vende muito bem. Esse conceito tenta se infiltrar no cinema através dos editais de cultura que ditam que essa identidade construída por instituições apareça em filmes e produtos audiovisuais no geral. O erro central dos gestores é não perceber que as identidades são processos criados por atores sociais, pelo povo. Essas propagandas institucionais disfarçadas de cultura são tão fechadas em conceito que cabe uma reflexão: como pode um filme ser mais sergipano que o outro? Essa sergipanidade só consegue ser expressa através de araras, caranguejos, amendoins, cajus e outros totens?
O cinema do tempo-memória
Para falar da curadoria dos filmes dessa edição da Egbé menciono dois filmes que me tocaram bastante e que enxergo uma relação com o restante da Mostra: “Quando Aqui” (2024), de André Novais, e “Os ouvidos que ouvem” (2016), filme angolano de Hugo Salvaterra. O primeiro abre com a frase do geógrafo Milton Santos: “O espaço é a acumulação desigual de tempos” e, a partir daí, trabalha um local específico, que de início parece querer dar uma continuidade ao gesto de docuficção já feito pelo diretor, mas que começa a tratar do espaço como agente transformador e como ele também é capaz de ser transformado através da vivência. André Novais viaja através desses tempos, na linguagem cinematográfica, se utilizando da relação entre presente, passado e futuro. O filme consegue pensar em diferentes existências e relacionar o corpo negro à própria história do planeta Terra. Já o filme do Hugo Salvaterra, na mostra dos filmes angolanos, curada pela professora Yérsia Assis, trata de um casal novaiorquino que se conecta através da música e carrega um debate sobre não-monogamia e existencialismo. Durante a sessão, “Os Ouvidos que Ouvem” parecia revelar um deslocamento de narrativa e de linguagem quando comparado com os outros filmes angolanos. Isso devido ao fato do seu diretor ter transposto para as imagens essa experiência corporal, nesses espaços que ele habitou, durante a sua vida. Isso é rico, porque mostra que o cinema negro não cabe em caixinhas e precisamos lidar com essas definições a partir dos filmes, ou seja, tratar o cinema negro como uma pergunta e não como uma resposta.
A Egbé também teve um espaço de formação que foi com a oficina “Som e Oralidade” dos oficineiros Edwyn Gomes e Gabriel Muniz que tratavam de suas pesquisas de formas separadas, mas que se relacionavam entre si. Edwyn falava da sua pesquisa com ancestralidade pesquisando a própria família, ensinando como ele a realizou e mostrando como os participantes da oficina poderiam também realizar essa pesquisa para descobrir mais informações sobre seus antepassados. Já a pesquisa de Gabriel Muniz trabalha com dimensões conceituais de paisagens sonoras afro-diaspóricas ou paisagens afro sonoras tanto como conceito como categoria de análise dessa ancestralidade. Ele discorreu sobre como a captação desses registros orais podem ser utilizados como documentários audiovisuais. Um dos caminhos para criar essas áudio narrativas são os métodos de expressão e de performance dos corpos, realizados na prática através de uma caminhada no quilombo urbano Maloca.
Intuições de futuro
Para encerrar, penso na fala da professora Kênia Freitas na mesa de encerramento da Mostra em que ela parafraseia Mark Dery, no seu texto fundador do afrofuturismo, quando ele se pergunta se o povo preto pode construir futuros possíveis tendo um passado tão violento e tão apagado. A Egbé mostra que é possível sim que esse futuro seja construído e que ele só se dará com esse retorno ao passado e as suas experiências. Tanto no sentido de dor e aprendizado, como também para aguçar a nossa intuição para o futuro. Pois o futuro é negro e ele está sendo pensado através da negritude. Desejo uma vida longa a Mostra de Cinema Negro Egbé, que novas edições possam acontecer para que nós possamos demarcar esse território de uma forma que pense o corpo negro como participante dele e que seja um corpo capaz de elaborar perguntas para que nós possamos imaginar novas formas de viver e novas construções de pensamento. Porque é disso que se trata o cinema negro: de uma vida plural, existente e possível, que precisa ser contada através de autorias negras.