A linda pintura do audiovisual negro por trás do Natal dos Silva

Vinicius Dórea

Como alguém que não teve tradição natalina na família, confesso que sempre tive curiosidade sobre os diferentes modos como as convenções sociais em torno da celebração da data se apresentam em cada casa brasileira. Interessa-me, sobretudo, observar a construção coletiva daquilo que costumamos chamar de “espírito natalino”. Na minha visão, esse processo começa ainda em novembro, quando os panetones surgem nas prateleiras dos supermercados. Na primeira semana de dezembro, os primeiros pisca-piscas passam a reluzir timidamente em alguns lares, enquanto as prefeituras começam a decorar as ruas. Imagino que seja também nesse período que as famílias passam a pensar na ceia e a organizar o amigo secreto, ritual que exige tempo, negociação e expectativa. Na televisão, os canais anunciam suas programações especiais: reprises de filmes clássicos (quase sempre hollywoodianos) e episódios natalinos de produções já em exibição. Essa, para mim, é a receita de bolo do ritual natalino.

Esse espírito, porém, tem data de validade. No dia 26 de dezembro, já não faz sentido se despedir com um “feliz natal” do motorista de aplicativo, da caixa do supermercado ou, especialmente, de um ente querido. Este texto, inclusive, já parece nascer com prazo de validade. A atenção logo se desloca para as luzes do ano que virá e, em seguida, para o carnaval que se anuncia no horizonte. Ainda assim, penso que um pouco de generosidade que só o tempo é capaz de prover, é fundamental apreciar essa série brasileira que toma o Natal como pano de fundo para refletir algo muito maior que um evento de calendário. O Natal aqui é o “gatilho” para pensar o contemporâneo. A série em questão é “O Natal dos Silva”, de Gabriel Martins (Gabito), produção da mineira Filmes de Plástico.

Na série de cinco episódios, vemos quase todos os Silva retornarem à rua Jaboatão, nº 62, no bairro Milanez, em Contagem, Minas Gerais, para a tradicional reunião familiar, agora sem a presença da matriarca Dona Zelina, falecida entre esse Natal e o anterior. Gosto de delimitar o Natal como um marco temporal para essa família, pois os próprios personagens o fazem. Mas a celebração funciona também como uma espécie de espaço simbólico: é ali, e somente ali, que certos assuntos podem, e devem, ser tratados. Lembranças de natais passados deixam claro que, dentro daquele Natal específico, habitam muitos outros. Talvez sessenta, talvez mais. Conversas nostálgicas sobre a presença-ausência da matriarca daquela família escancaram a falta que ela deixou e estimulam uma disputa barulhenta entre as irmãs Izabel (Rejane Farias) e Lúcia (Carlandréia Ribeiro) pela ocupação desse lugar vago. A pontuar: duas atuações de ouro dessas atrizes.

O fio condutor e ponto de vista central da série, no entanto, vem de fora da família: “Apesar dos pesares, estou feliz de estar aqui”, diz Lin, personagem interpretada por Aisha Brunno, cuja presença amplia de maneira decisiva o debate de gênero proposto pela série. Por ser uma mulher trans e namorar Luciano, Lin atravessa aquela reunião constantemente apreensiva quanto à sua aceitação. O casal planeja se casar, e Lin também se tornará uma das matriarcas da família, perspectiva que parece intensificar as tensões já existentes. Se discursos reacionários insistem em alegar que debates de gênero visam à “destruição da família”, O Natal dos Silva apresenta justamente o contrário: a expansão do próprio conceito de família. Uma família que se reinventa ao abrigar corpos diversos, em vez de rejeitá-los. Uma família que vive, incorpora e se digladia com as diferenças, sem, no entanto, produzir separabilidade.

Os pesares mencionados por Lin, para além da violência que ela sofre durante o amigo secreto, atravessam toda a ceia. São discussões que emergem simultaneamente, sobrepostas, e que dizem respeito à divisão da herança, aos vícios, aos lutos não elaborados e às feridas abertas que insistem em retornar justamente nesse espaço-tempo chamado Natal. 

É impossível afirmar que qualquer produto audiovisual seja capaz de transmitir uma experiência universal de família – mesmo porque a própria noção de universalidade é uma invenção da branquitude. Por isso mesmo, fomos historicamente ensinados a aceitar como “universais” as narrativas centradas em famílias brancas, com suas dores, seus conflitos e seus protagonismos sempre colocados no centro da cena. O Natal dos Silva desloca esse eixo ao construir, com delicadeza e coragem, um retrato familiar que não busca idealização. As sombras da família Silva funcionam como espelho: uma ceia atravessada por brigas constantes, dificuldades financeiras expostas à mesa e um peru queimado não apontam para uma falha moral, mas para a recusa da fantasia da família perfeita, porque ela simplesmente não existe. 

A felicidade dos Silva emerge justamente dessa infelicidade particular, do emaranhado de afetos, ruídos e contradições. É essa complexidade que precisamos reivindicar para personagens negros. “Há uma pintura muito bonita por trás dessa bagunça”, diz Lucimara ao observar a obra em homenagem a Dona Zelina, frase que sintetiza com precisão o gesto da série. O espírito natalino pode até já ter ficado para trás, mas O Natal dos Silva deixa em circulação algo mais duradouro: a aposta num audiovisual brasileiro capaz de acolher, sem concessões, a pluralidade das experiências negras.

Publicado por FICINE

O FICINE tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

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