“Penso muito em continuidade porque, quando observo as minhas parceiras e contemporâneas dentro dos seus campos de atuação, desejo muito que dentro do nosso futuro a gente consiga seguir nas mobilizações que a gente tem, fortalecendo as instituições, criando novas instituições. Mas o meu sonho mesmo é que no futuro a gente tenha escolas e espaços de aprendizagem de cinema e artes que sejam pensadas, referenciadas e criadas a partir da comunidade negra, digo isso porque acho que esse cinema negro vai ser mais radical ainda, mais livre, porque desde o primeiro momento de um contato com a nossa área a gente não vai ter que passar por parâmetros de estética, comportamento e performance que passam pela branquitude”. A fala é pausada, desacelerada, dita por quem não acredita na pressa das coisas, feita no respiro de uma maturidade que sabe ser fundamental quando aquilo que se deseja requer atenção a quem está do lado. O vídeo com essa fala circulou centenas de vezes na última semana, em que o cinema brasileiro se despediu, de forma muito precoce, de Joyce Prado, a autora das aspas acima, numa entrevista dada em novembro deste ano para o podcast da Casa Sueli Carneiro.
A dimensão da força que Joyce Prado exerceu e continuará exercendo – é sim sobre “continuidade” como ela dizia – no pensar e no fazer do audiovisual negro no Brasil diz respeito ao modo como essa jovem diretora de cinema sempre se posicionou em luta e amor por uma existência coletiva desse audiovisual em toda sua potência. Na época em que estava lançando seu longa-metragem Chico Rei entre nós, em 2021, Joyce chegou a dizer: “As irmandades me ensinaram que, como coletividade, a gente nunca se desamparou. A gente olha para os quilombos, mas esquece que nos centros urbanos, as irmandades mantiveram a gente pulsando. As pessoas negras precisam aprender o quanto as irmandades foram importantes para manterem a gente em pé, assim como os terreiros e os quilombos.” Esse depoimento está em uma entrevista dada à APAN, Associação de Profissionais do Audiovisual Negro, da qual ela foi uma das fundadoras, em 2016, e cuja primeira sede foi um espaço em São Paulo, na mesma sala onde Joyce tinha sua produtora, a Oxalá Produções, que sempre fez conteúdos focados na cultura afro-brasileira.
Além de Chico Rei entre nós, Joyce tem uma série de obras audiovisuais que se tornaram referência para pensar, de um ponto de vista simultaneamente estético e político (na ideia de que toda forma produz um conteúdo), as expressividades negras no Brasil – e suas relações com o continente africano. Nascida no dia 2 de julho de 1987, Joyce se formou em Rádio e TV no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e se especializou em Roteiro Audiovisual pelo Senac. Com apenas 21 anos, fundou a Oxalá Produções e em 2015, ao lado da diretora Renata Martins, criou a websérie Empoderadas, um trabalho que trouxe visibilidade para as histórias de mulheres negras e terminou se desdobrando como um projeto maior que inclui um livro homônimo, um podcast e ações formativas que acontecem até hoje, destinadas sobretudo a mulheres negras, indígenas, trans, PCDs e pessoas periféricas.
“Ela era uma pessoa muito amorosa e muito generosa nas parcerias, muito jovem, muito sábia, muito ponderada nas decisões e nas articulações, mas, ao mesmo tempo, muito firme no que acreditava, principalmente na defesa da presença de pessoas negras e do audiovisual negro como um todo, com uma capacidade rara de conciliar uma atuação de produção, de proposição de narrativas, mas também de produção de audiovisual de uma maneira mais ampla. Ela produzia documentários, videoclipes, participava da produção de diversos tipos de produtos, como várias de nós, mas mantendo uma coerência nesse sentido de uma construção ou de colaborar para um imaginário mais povoado de imagens da nossa humanidade, da nossa alegria, do nosso afeto.” Tatiana Carvalho Costa, presidenta da APAN e membra do FICINE.
A partir de 2017, Joyce começa uma trajetória de criar imagens sínteses, imagens versos das experiências negras com clipes musicais que ela dirige para cantoras negras, com destaque para as peças audiovisuais que ela faz para Luedji Luna (Um corpo no mundo, especialmente, é uma experiência que tece, de forma poética, várias camadas das vivências negras na cidade de São Paulo), além de trabalhos como o clipe Terra Aféfé, para Margareth Menezes e o álbum audiovisual feito, em parceria com Tais Espírito Santo, para o grupo Pastoras do Rosário.
No campo documental, Joyce também assinou pelas séries Cartas de Maio, que registrava a leitura de cartas de pessoas negras contemporâneas escritas para seus ancestrais vivos no dia da assinatura da abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, The Beat Diaspora (disponível no YouTube Originals), Ancestralidades (disponível no Itaú Cultural Play) e AM/FM, além de assinar a produção executiva da série Memórias em Bronze, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e Nós, Mulheres (SESCTV, 2025), ambas realizadas pela Oxalá Produções.
“A gente conversava muito antes das reuniões do Conselho, por exemplo, e ela estava sempre muito preocupada com a política pública num sentido mais amplo, pensando para além da produção, numa dinâmica também para a circulação dos filmes, para a formação de plateia e para a formação de profissionais. Nessa atuação na formação de profissionais, ela tem também uma presença muito grande em mentorias de projetos, em aulas de desenvolvimento de projetos de filmes, seja de ficção, seja de documentário, e participação em vários festivais. Tanto que essa atuação múltipla dela, também muito generosa, afetuosa, acolhendo e estimulando individual e coletivamente várias pessoas do audiovisual negro, fez com que o falecimento dela tivesse essa repercussão desse tamanho. O velório dela, se não me engano, tinha mais de 300 pessoas. A gente viu nas redes sociais uma repercussão muito grande, na imprensa também, e todo mundo quase que em uníssono falando dessa importância dela, dessa generosidade dela.” Tatiana Carvalho Costa, presidenta da APAN e membra do FICINE.
Sua atuação no audiovisual foi muito além das peças que ela roteirizou, dirigiu e produziu. Sua presença nos espaços de formação coletiva e militância por políticas públicas deve sudear as lutas por acesso – e ações de formação – de comunidades negras no audiovisual. Atualmente, Joyce era diretora e integrante do Conselho Superior do Cinema e atuava diretamente pela implementação e regulação de ações que pudessem democratizar o acesso à produção e circulação do audiovisual negro no Brasil.
“Conheci Joyce primeiramente pelo Empoderadas, série que ela começou com Renata Martins. Depois nos encontramos nos corredores do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, nas conversas que levaram à formação da APAN, em 2015 e 2016, e depois nas reuniões de fundação da Associação, pois fazíamos parte do grupo que estava lá desde o início. Joyce sempre foi brilhante, sempre certeira nos posicionamentos e comentários, com aquele jeito firme e ao mesmo tempo doce de ser. A gente sempre ria muito e toda vez que encontrava se dava longos abraços, trocando promessas de não ficar tanto tempo sem se ver. Sua partida repentina ainda precisará de muito tempo para ser processada. E firmo aqui, com o FICINE, o compromisso de manter a sua presença em nossa história, pois, como dizem os mais velhos e mais velhas, só morre quem não é lembrado.” Janaína Oliveira, membra do FICINE e também da APAN desde sua fundação.
Nós, do FICINE, vamos sempre lembrar de Joyce como uma das figuras centrais para a consolidação dos cinemas negros brasileiros enquanto um movimento.
Fiquem vocês então com Um corpo no mundo, dirigido Joyce Prado e estrelado por Luedji Luna:
