De Charles Burnett à Palestina:  5ª Semana de Cinema Negro traz programação internacional gratuita

Vinicius Dórea

Entre rios de memória e um mar revolto do presente, a 5ª Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte transcorre entre os dias 16 e 24 de Outubro, desaguando em águas que conectam experiências negras no Brasil e no mundo. Para a diretora artística Layla Braz, as águas são ao mesmo tempo testemunhas e transformadoras, elas acolhem e se adaptam aos mares e rios que encontram no caminho e é nesse movimento de expansão que o festival se inspira. Essa energia também conduz a cineasta Safira Moreira, que na sessão de abertura, no dia 16, exibe seu primeiro longa, Cais” (imagem acima). “A energia das águas é a energia que conduz a minha existência (…) A água, pra mim, é como uma atualização do próprio tempo. Um tempo onde consigo alcançar minha mãe no filme, no mistério do rio”, reflete a diretora, que realiza o seu filme entre a recente perda da sua mãe e a chegada do seu primeiro filho, navegando entre o luto e o renascimento. 

A programação internacional da Semana de Cinema Negro traz pela primeira vez a Belo Horizonte o icônico cineasta afro-americano Charles Burnett, mestre em retratar o cotidiano e as complexidades da experiência negra. Como detalha a curadora Janaína Oliveira, a vinda de Burnett é uma celebração em si. O programa “Cotidiano e Revolucionário: o Cinema de Charles Burnett” exibe três de seus filmes fundamentais em restaurações recentes: “O Matador de Ovelhas” (1977), “O Casamento do Meu Irmão” (1983) e a comédia romântica “A Aniquilação de Fish” (1990) , além de um momento de conversa com o público, mediada por Janaína Oliveira, para dialogar sobre sua trajetória, que ocorrerá no dia 18 de outubro às 19h. 

O diretor Charles Burnett

A proposta decolonial do cinema negro, que a curadoria internacional define como uma “afirmação do que é preciso pensar e dar a ver no presente”, ganha contornos claros em duas sessões potentes. “Experiência Vivida do Negro, Frantz Fanon 100 anos” exibe o filme “Pele Negra, Máscaras Brancas”, de Isaac Julien, revisitando o pensamento do intelectual Frantz Fanon, cuja obra, como aponta a curadoria, “nos lembra da incessante capacidade do mundo ocidental de propagar e reiterar traumas”. Esse mesmo espírito de libertação ecoa na sessão “Do Rio ao Mar: Palestina Livre”, que apresenta “Contos de Gaza” (2024), de Mahmoud Nabil Ahmed. O filme, resultado de uma oficina, tornou-se, nas palavras da curadora convidada Carol Almeida, um “testemunho de um cotidiano extinto” e uma “imagem de arquivo” de uma Gaza que um projeto específico de poder se encarregou de destruir.

Essas sessões dialogam com a essência de um cinema que se entende como ferramenta de libertação, não apenas estética, mas profundamente política. Pois a Palestina hoje se encontra no coração do mundo como o retrato máximo das consequências da predação colonial. O cinema negro, portanto, assume seu lugar nessa trincheira, advogando por uma revolução que acredita na libertação de todos os povos oprimidos.

Já no campo do cinema nacional, a mostra Cine-Escrituras Pretas apresenta 18 filmes de realizadores brasileiros, selecionados pelas curadoras Larissa Barbosa, Mariana de Souza e Tatiana Carvalho Costa. Elas descrevem os filmes como incursões narrativas e estéticas que “rompem silêncios, tradições e ritmos que se reinventam como ondas”, mergulhando no profundo e intangível das memórias. A mostra apresenta títulos de todos os cantos do país, exibindo a vitalidade da produção negra contemporânea, como por exemplo: Notas sobre a identidade de Marisa Arraes (DF); Mar De Dentro de Lia Letícia (PE); Minha Pele Preta em Terra Verde de Teddy Falcão (AC); Tigrezza de Vinícius Eliziário (BA) e E Seu Corpo É Belo de Yuri Costa (RJ). O encerramento do festival acende os refletores para outro mestre do cinema africano, com o “Tributo ao Cinema Luz de Souleymane Cissé”. O cineasta malinês, que faleceu em 2025, teve sua carreira marcada pela missão de, nas palavras da curadora Janaína Oliveira, “criar um repertório de imagens e histórias que se contrapusessem ao universo de representações negativas sobre o continente”. Sua obra-prima “Yeelen” (A Luz), vencedora do Grande Prêmio do Júri em Cannes em 1987, será exibida na sessão, que também celebra a vida e a obra do professor Mbye Cham, outro pilar dos estudos de cinema africano recentemente falecido. É o fecho perfeito para um festival que, como as águas que o inspiram, segue fluindo, conectando passado e presente, luta e celebração, em um só leito de transformação.

Publicado por FICINE

O FICINE tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

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