Cineclubismo quilombola: sobre escuta e pertencimento

Foto: Pritty Reis

“É preciso a imagem para recuperar a identidade.”

Beatriz Nascimento

Ayalla Anjos (em colaboração com o FICINE)

Nas noites acendidas pelo brilho de um projetor, o cinema reencontra uma de suas potências fundadoras: a de criar comunidade. A tela improvisada, erguida em meio a olhos atentos, não apenas exibe filmes. Ela convoca presenças, costura afetos e reativa memórias. É nesse gesto político e poético que se inscreve a Rota dos Quilombos, circuito cineclubista promovido pelo Cineclube Candeeiro com curadoria da EGBÉ — Mostra de Cinema Negro. Em comunidades quilombolas do interior de Sergipe, como Mussuca, Brejão dos Negros e Aguada, o cinema chega como encontro e como direito.

Transformar a exibição de filmes em um bem partilhado entre vizinhos, crianças, griôs e juventudes é continuar uma longa tradição de práticas negras de resistência. A sessão coletiva, gratuita e reflexiva torna-se, nesses territórios, mais do que acesso à cultura. É afirmação de identidade, reconexão com a ancestralidade e reinvenção do cotidiano.

No cineclubismo quilombola, o cinema opera como dispositivo de escuta e pertencimento. Não se trata de impor narrativas externas, mas de criar espaço para que a comunidade se veja, se ouça e se afirme. Cada sessão é seguida por uma roda de conversa. Cada conversa é território simbólico onde política, memória e afeto se entrelaçam. Como dizia Beatriz Nascimento, o corpo de um é o reflexo do outro. E, nessa lógica, o cinema torna-se espelho e multiplicação.

A curadoria da Rota dos Quilombos se constrói a partir dessa ética do reflexo. A programação se divide em duas sessões: uma voltada ao público infantil, outra dedicada a jovens, adultos e idosos. Em ambas, os filmes selecionados revelam uma pluralidade de vivências negras, indígenas e periféricas. As narrativas transitam entre o cotidiano, o fantástico e o histórico, atravessando sertões, recôncavos e florestas de Iansã. Ao romper com uma visão homogênea da negritude, esses filmes ampliam o repertório de imagens e afirmam a diversidade das existências negras no Brasil.

A presença desses filmes em espaços não hegemônicos desloca a centralidade do cinema das salas comerciais para os quintais, as associações e as praças. Desloca também o lugar de enunciação. Na Mussuca, o cinema se une ao Arraiá Cultural da Cozinha de Vó, cozinha ancestral construída coletivamente por mulheres quilombolas, que articula saberes culinários, memória e agroecologia como formas de resistência.

Em Brejão dos Negros, a sessão é organizada junto ao Coletivo Dandaras, formado por mulheres negras da comunidade que atuam na defesa do território, da ancestralidade e dos direitos quilombolas. Em Aguada, o cinema se junta ao centenário grupo Samba de Aboio, guardião de uma tradição musical herdada dos tempos da escravidão e mantida pelas vozes e pelos corpos da comunidade. Em cada território, o gesto cinematográfico se conecta a práticas culturais vivas, dissolvendo a fronteira entre espectador e realizador.

O cineclubismo quilombola é também uma prática de invenção. Reinventa o cinema como ferramenta de reconstrução da história negra no Brasil e reposiciona a recepção cinematográfica como um ritual coletivo e partilhado. Reinventa o território não como margem, mas como centro pulsante de produção cultural. O que se produz nessas noites é um tipo de memória viva, que passa pelos olhos atentos das crianças, pelas risadas dos mais velhos e pelos relatos que emergem após os créditos.

Em tempos de desmonte de políticas públicas, apagamento de vozes negras e controle algorítmico da cultura, o cineclubismo é também uma forma de insurgência. Ele desafia os monopólios, as estéticas pasteurizadas e os circuitos fechados de distribuição. E faz isso com algo simples, mas radicalmente transformador: o encontro. Onde há tela, roda e escuta, há futuro sendo tecido com as mãos da memória e com os olhos da invenção.

Ayalla Anjos é jornalista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais (UFS), pesquisadora do Laboratório de Pesquisa e Produção Audiovisual (LAPPA/UFS) desde 2012. Suas pesquisas abordam cinemas de periferia, branquitude e narrativas contra-hegemônicas no audiovisual brasileiro. Coordena a comunicação de mostras e festivais, assessora filmes e atua em projetos culturais e cineclubistas que fortalecem a visibilidade de realizadores negros e periféricos.

Publicado por FICINE

O FICINE tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

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