Centenário Frantz Fanon: três filmes pra mergulhar no legado fanoniano

Vinicius Dórea

Neste 20 de julho, completam-se 100 anos do nascimento de Frantz Fanon, revolucionário da Martinica cuja obra transformou o pensamento anticolonial e antirracista e fundando bases para um pensamento-ação de tantos e tantos grupos revolucionários. Nas palavras de Angela Davis, ele foi “o mais poderoso teórico do racismo e do colonialismo do século”. Um ponto de virada em sua trajetória ocorreu quando deixou sua terra natal para lutar ao lado dos soldados franceses na Segunda Guerra Mundial. Lá, percebeu que havia cometido um erro ao defender os interesses da elite francesa, pois naquele contexto era visto apenas como um homem negro, um sujeito colonizado. Assim, nasce Pele Negra, Máscaras Brancas, seu primeiro livro. A partir dessa tomada de consciência radical, Fanon mergulha em uma análise profunda sobre os efeitos psicológicos do racismo e da colonização nas subjetividades negras. Sua escrita é ao mesmo tempo pensamento e ação. Não à toa, suas obras seguem influenciando os estudos pós-coloniais nos mais diversos campos como a literatura, o teatro e o cinema, formas pelas quais o povo colonizado encontra meios de resistir, imaginar e existir fora da dominação. Abaixo, indicamos três filmes que ecoam a força do pensamento fanoniano, obras que não apenas dialogam com seus escritos, mas que encarnam sua urgência política e estética. 

A Batalha de Argel – Gillo Pontecorvo, 1966

“A descolonização é sempre um fenômeno violento.” – Frantz Fanon

O filme A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, não apenas retrata o processo de libertação da Argélia do domínio francês, mas também materializa o tipo de violência colonial que Frantz Fanon conheceu de perto durante seu trabalho como psiquiatra. A experiência de Fanon com pacientes argelinos, torturados pelo exército francês, não foi apenas um dado de sua biografia, foi também o ponto de virada que o levou da medicina à militância. 

No filme, vemos em ação aquilo que Fanon descreve como a divisão absoluta entre o mundo do colono e o mundo do colonizado. A cidade, partida ao meio, separa brutalmente os corpos e seus direitos. Essa arquitetura da exclusão revela que não se trata apenas de desigualdade material, mas de uma negação sistemática da humanidade do outro. A sequência da greve, em que os trabalhadores colonizados são contidos como gado e privados de circular, ilustra o modo como o poder colonial disciplina e humilha. Situação similar, por exemplo, com o tratamento dado aos palestinos pelo estado de apartheid de Israel. 

Ao negar ao colonizado qualquer forma de cidadania, o império ensina ao colonizado que a única saída possível é responder também com brutalidade. Fanon entende que essa violência de retorno não nasce de uma suposta natureza bárbara, mas da própria pedagogia colonial, que ensinou ao oprimido que apenas a força é compreendida. 

Filme disponível no You Tube neste link.

Concerning Violence – Göran Olsson, 2014

“O colonialismo não é uma máquina pensante, não é um corpo dotado de razão. É a violência no estado de natureza.” – Frantz Fanon

Logo nas primeiras cenas de Concerning Violence, soldados armados atiram em bois indefesos. Não há explicação imediata. A câmera, impassível, registra o absurdo. Quem é o inimigo? Qual o sentido do gesto? Narrado pela voz firme e grave de Lauryn Hill, o documentário transforma as palavras de Fanon em pulsação. “O colonialismo é a violência em estado bruto”, ouvimos, enquanto o arquivo mostra corpos feridos, aldeias devastadas, crianças mutiladas. Baseado no capítulo “Sobre a violência”, do livro Os Condenados da Terra, de Fanon, o filme percorre diferentes territórios africanos que experimentaram o colonialismo europeu em sua forma mais cruel. São nove episódios que remontam as experiências de enfrentamento ao poder imperialista, em que a resistência armada surge não como opção ideológica, mas como única saída diante da opressão total. As imagens de arquivo, muitas delas raras, não romantizam a luta. Pelo contrário, mostram a dimensão humana, frágil e ao mesmo tempo irredutível daqueles que optaram por combater.

O filme não se propõe a explicar linearmente os conflitos que apresenta. A montagem constrói um confronto direto entre a racionalidade do discurso colonial e a brutalidade de suas ações. Em vez de apresentar uma denúncia explícita, o filme aposta na fricção entre palavra e imagem e é nesse atrito que sua força reside.

Filme disponível no You Tube neste link.

Pele Negra, Máscara Branca (Isaac Julien, 1996)

“O negro é olhado. É o objeto do olhar branco. Olhar que o congela, o aliena, o reduz a coisa.” – Frantz Fanon

Dirigido por Isaac Julien, Pele Negra, Máscara Branca é uma obra ensaística, que funde memória, performance e pensamento para compor um retrato multifacetado de um dos intelectuais mais radicais do século XX. Julien recusa a linearidade narrativa esperada de um documentário televisivo. Em vez disso, constrói um mosaico sensível, em que o Fanon do arquivo se mistura ao Fanon interpretado por Colin Salmon e ao Fanon que vive na fala dos outros. A montagem não busca esclarecer, mas tensionar: como representar um sujeito cuja própria luta foi contra os mecanismos que o reduziram à condição de objeto?

Assim como boa parte do trabalho de Julien, conhecido por seu investimento em filmes que mais produzem uma atmosfera que uma linha narrativa convencional, Pele Negra, Máscara Branca tenta criar dobras a partir também do Fanon psicanalista e das questões de auto-determinação implicadas em sua implicação com o mundo. 

Em entrevista, Julien chega a falar o seguinte sobre essa obra: “Penso em filmes como Fanon: Pele Negra Máscara Branca, e em trabalhos anteriores como Territories e Looking for Langston, e acho que todos esses trabalhos tentam criar uma intervenção diferente no ensaio cinematográfico e reforçar essa imagem com algo que pode ser fictício, um tableau vivant, que pode ser imagético, que pode ser tudo ou qualquer uma dessas coisas. Muitas vezes, o público sente que a codificação é muito marcada em relação à imagem, talvez codificada demais.” Descodificar a linguagem, eis aí uma chave para se relacionar com esse filme.

Filme disponível na Filmicca neste link.

Publicado por FICINE

O FICINE tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

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