100 anos de James Baldwin: uma leitura de Meeting the man em seu olhar opositivo

Vinícius Dórea

Em 8 de dezembro de 1987, na suntuosa Catedral de São João, em Nova York, a escritora Toni Morrison, futura ganhadora do prêmio Nobel de Literatura, embargava a voz para se despedir do amigo: “Há coisas demais a pensar sobre você, e coisas demais a sentir. A dificuldade é que sua vida rejeita ser resumida, sempre rejeitou, e convida, no lugar, a ser contemplada.” Foi assim que ela tentou, já ciente da impossibilidade de conseguir, dizer adeus a James Baldwin.

Neste 2 de agosto, dia em que celebramos o centenário desse escritor, dramaturgo, poeta, pensador e tantas outras coisas impossíveis de serem “resumidas”, é importante não sintetizar Baldwin a suas obras, ao seu ativismo e às pautas negras que o cercavam, mas sim lembrar dele por ser um homem que se recusou a ser capturado pela transparência da opressão

Nascido no Harlem, bairro negro de Nova York, Baldwin realizou uma leitura crítica do território onde ele viveu por muito tempo e o disparate entre os Estados Unidos serem um país extremamente racista, tendo ao mesmo tempo uma história intrinsecamente ligada com à sua população negra. 

Em Meeting the Man: James Baldwin in Paris, filme de Terence Dixon feito em 1970, temos um vislumbre interessante desse intelectual que não permitiu ser limitado às fronteiras do pensamento branco. Enquanto Baldwin passeia às margens do Rio Sena, um locutor, provavelmente o diretor do filme, anuncia que estaria fazendo um documentário sobre a vida de Baldwin como um escritor e não como uma figura política. 

Logo nos primeiros minutos, vemos que as visões de mundo de entrevistado e entrevistador não se encontraram e temos durante todo o filme um embate dessas visões, poderíamos dizer até um embate entre produções do Olhar. Com uma conversa diante da Bastilha, símbolo da revolução francesa, a tensão aumenta e Baldwin provoca: “As pessoas vieram daquelas ruas, não faz muito tempo, para derrubar essa prisão. E o meu argumento é que a prisão ainda está aqui”. O diretor retruca dizendo que Baldwin não quer falar do seu trabalho e sim do que está sentindo e ele responde: “Não é sobre o que eu sinto, Terry. É sobre o que eu sei.” 

Quando ele falava sobre a sua decisão de deixar os EUA, sobre ainda se sentir em uma prisão e comparar a sua vida à Bastilha, Baldwin de certa forma estava também falando do seu trabalho como escritor. Dixon não se interessou por isso pois já tinha uma ideia esquemática do filme que tentou atingir a todo custo. Baldwin percebe essa roteirização sobre a sua vida e claramente não permite ser resumido ao que um homem branco acha que ele é. E é justamente nesse embate entre um diretor branco que olha para um intelectual negro sem compreende-lo que mora a força do filme. 

Quando questionado se escrevia para pessoas brancas, Baldwin responde que não acredita na existência de brancos ou negros, mas que mesmo assim ele entende o que é nascer negro nos EUA. Esse aparente conflito de ideias ilustra bem a não crença de Baldwin em um sistema de representatividade que tenha o poder de falar pelo outro. O seu segundo livro, O Quarto de Giovanni, um romance sobre dois homens brancos, fugia do que era esperado do autor. Nessa tentativa de enquadrá-lo em categorias performáticas do ativismo social, alguns críticos passaram a nomeá-lo como porta-voz da comunidade LGBT, no que ele retrucava: “Não escrevi um livro sobre homossexualiade. Isso é superficial, fortuito. Eu escrevi um livro sobre os labirintos do amor”.

O legado de Baldwin segue vivo mesmo após quase 40 anos da sua morte. Antes de morrer ele trabalhava em um manuscrito sobre os assassinatos dos seus amigos Medgar Evers, Martin Luther King Jr e Malcom X, que depois serviu de base para o roteiro do filme Eu não sou seu negro (2016) que entrelaça os escritos de Baldwin com a luta atual dos direitos civis no EUA. Esse título parece captar bem o pensamento de um intelectual que não aceitava ser reduzido a categorias homogeneizantes de pensamento, mas que desenhou em seus trabalhos, à procura de uma libertação, um olhar interseccional entre raça, sexualidade e religião. 

O que assistir: 

Meeting the Man: James Baldwin in Paris, de Terence Dixon (1970)
Eu não sou seu negro, de Raoul Peck (2017)

O que escutar: 

Playlist com os discos que encontraram na casa de James Baldwin

O que ler:

Mente vazia, oficina do Diabo: Ensaios sobre a política racial do cinema americano
O quarto de Giovanni
Notas de um filho nativo
Da próxima vez, o fogo
Terra estranha

Publicado por FICINE

O FICINE tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

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