Ary Rosa e Glenda Nicácio conversam com FICINE sobre a mostra “Cinema é Cachoeira”

Vinícius Dórea

Coletividade, economia criativa e território. Eis os três pilares do cinema feito pela dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. Não são palavras quaisquer. Elas têm o peso de uma história que precede e sucede o trabalho desses dois. Pois de 25 a 31 de julho, no IMS Paulista, a mostra “Cinema é Cachoeira – Os filmes de Ary Rosa e Glenda Nicácio” cria uma chance única para o público de São Paulo ver e rever a cinematografia contemporânea do Recôncavo Baiano pelo olhar desses dois cineastas e entender o que essas palavras produzem nas imagens. O evento acontece também em Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Poços de Caldas. 

Coprodução Produção Rosza Filmes e Elo Studios, a programação apresenta ao público um recorte da diversidade cultural, social, histórica e geográfica da região, com produções premiadas em diversos festivais e já consagradas pelo público e crítica especializada, todas codirigidas por Ary Rosa e Glenda Nicácio, parceiros há mais de uma década na direção de filmes e também curadores da mostra. São elas: Café com Canela (2017), Ilha (2018), Até o Fim (2020), Voltei! (2021) e Mugunzá (2022) – destaque para a apresentação dos ainda inéditos em circuitos comerciais Ilha, de 2018 e Mugunzá, de 2022. 

Ary e Glenda, em entrevista ao FICINE a seguir, falaram sobre a mostra, sobre as suas carreiras e os planos para o futuro:

FICINE – Quero começar falando sobre Cachoeira. O cinema de vocês lida com o trauma através de uma perspectiva coletiva, de entendimento da dor com a ajuda do outro. E vocês fazem isso utilizando um território específico, que é o recôncavo baiano. O que significa para vocês fazer arte utilizando esse território e vê-lo representado nas telas?  

Glenda Nicácio – Cachoeira é o lugar mais importante das nossas vidas. É o lugar que nos uniu e que deu início à nossa trajetória no cinema. A gente foi pra lá pra fazer o curso de cinema na UFRB, em 2010, e eu e o Ary somos da mesma turma e nossa equipe também foi da mesma turma. E isso diz muito sobre a nossa lógica de pensar o cinema de forma artesanal e íntima. Nós fazemos um cinema que é produzido no interior, com as condições que o interior nos dá, por isso nós pensamos um cinema que é feito na rua, que nasce na rua, que depende dela e da comunidade em volta dela. Aprender cinema em Cachoeira nos mostrou que o cinema além de industrial, também é feito em casa. E estamos sempre pensando em como filmar aqui, por isso eu digo que o “como” diz muito sobre as escolhas que fizemos nos últimos anos. Porque não é só “ah vamos filmar em Cachoeira”, e sim o “como vamos filmar em Cachoeira”, visto que temos uma série de impossibilidades por estar no interior da Bahia. Mas essas condições também nos diferenciam, porque esse lugar só existe aqui. 

Ary Rosa – Cachoeira é uma cidade viva. No Brasil nós temos essa concepção que cidades históricas são lugares que não se mexem, que a população fica apartada para o turismo passar, etc. E Cachoeira não é assim, Cachoeira é viva, o passado está ali e está em confronto com a gente o tempo inteiro, mas a cidade também não abre mão do seu presente e do seu futuro. Eu falo que Cachoeira é uma cidade do interior cosmopolita porque ela recebe e abraça gente do mundo inteiro, ela repele gente do mundo e vai fazendo seus próprios movimentos através de sua população e de sua história. 

FICINE Quero também perguntar sobre como vocês percebem a situaçao institucional do cinema negro brasileiro. Com a realização da mostra “Cinema é Cachoeira”, tendo a filmografia de vocês disposta lado a lado, e também com o fato de já estarem em pré-produção dos seus próximos longas, mostra que vocês continuam escolhendo o cinema. A pergunta é: de alguma forma o cinema tem escolhido vocês também?

Glenda – O cinema é sempre um jogo que nunca tá ganho. Você faz seu primeiro filme e aí diz: “nossa, entendi como é que funciona!” e aí você faz o segundo filme e aprende mais um tanto de coisas e desaprende outras. É sempre um lugar inusitado porque depende de muitas coisas  que são externas à nossa vontade, à nossa entrega, disponibilidade e organização. Mas pensando nas nossas histórias e relacionando nossos filmes com uma produção de cinema negro nacional contemporânea, enxergo cada vez mais libertador fazer cinema dentro dessa chave do cinema negro devido às políticas e os embates que têm se estabelecido nos últimos anos. Fazer cinema negro é poder ser plural. E nós pensamos nisso dentro das nossas histórias. Eu penso, por exemplo, na atriz Arlete Dias, que é negra, do bando de teatro Olodum e trabalhou com a gente em todos os nossos filmes. É muito prazeroso poder olhar pra Arlete e falar: “Qual personagem você vai fazer agora? Ah, agora você vai pra comédia, agora você vai para o drama, pra tragédia” e saber que esse corpo se reinventa e pode contar muitas histórias. Ele pode fazer escolhas de personagens que ela quiser, da forma como ela quiser, da vivência que o corpo dela abriga e isso é muito rico.

FICINE – Os filmes de vocês costumam ser produzidos na maioria das vezes com a mesma equipe e elenco e eles costumam ser mencionados como produtos da Rosza Filmes. Eu lembrei de uma frase da Leda Maria Martins que disse que nas artes antigas o mais importante é que a arte seja acima de tudo um bem coletivo. Por isso gostaria de saber como vocês enxergam a autoria no cinema de vocês. 

Ary – Nós trabalhamos com um tripé que sustenta o nosso ofício: a coletividade, a economia criativa e o território. Essas três ferramentas são muito importantes e uma não vive sem a outra. Assim como o território vibra muito no nosso trabalho, a gente também pensa isso de uma forma que envolva a cidade de uma maneira econômica e que a cidade entenda que é um ofício, um trabalho. A coletividade também é uma coisa básica, porque nós escolhemos trabalhar com editais, mas também escolhemos trabalhar de maneira independente, ou seja, com dinheiro próprio. E é nessa hora que a equipe é fundamental. Nós iremos gravar três filmes agora nos próximos meses e é muito bom já ter uma equipe que entende os processos criativos e já sabe para onde caminha esse cinema que criamos em conjunto. 

FICINE – Recentemente saiu uma notícia que Café com Canela (2017) seria adaptada para uma série para o Canal Brasil e eu gostaria de saber se vocês podem dar mais detalhes sobre a produção, o que muda em relação ao filme e quando irá estrear. 

Ary – É verdade! Está sendo por um edital da Ancine e ainda estamos na fase de liberação, mas já está sendo muito empolgante trazer os mesmos personagens do filme de volta e com a equipe sendo basicamente a mesma. Vai ser literalmente um reencontro com esses personagens alguns anos mais velhos, novas experiências, novas possibilidades. Quando a gente fez Café, começamos a pensar em como colocar aqueles personagens juntos e vimos que tínhamos muitas ligas de humor, dramas e possibilidades, foi muito interessante ver que a história continua pulsando com esses personagens que são tão vivos no nosso imaginário. 

Glenda – E pensar também que Café é nosso primeiro longa, então de alguma forma nós aprendemos a ser diretores com esse filme. Esse filme nos ensinou muitas das escolhas que faríamos na nossa trajetória. Então está sendo muito prazeroso voltar depois de mais de 10 anos. E voltamos com essa sensação de que aqueles personagens continuaram suas vidas depois que os créditos subiram. Se nós somos pessoas diferentes, a Violeta também está diferente, a Margarida também mudou. Está sendo bonito reencontrar esses personagens e pensar: “caramba Violeta, que saudades que eu tava de você”. 

FICINE – Vocês consideram essa Mostra como uma espécie de balanço sobre a carreira de vocês? 

Glenda – Com certeza. A mostra é uma possibilidade de celebrar a trajetória da nossa produtora Rosza Filmes e dos nossos processos de produção. Acreditamos que esses filmes dialogam com os atravessamentos que ocorreram no país durante os períodos de produção, e que afetaram diretamente as nossas histórias.

FICINE – Para finalizar, quero saber quais filmes nacionais vocês destacariam como fundamentais na formação de vocês? E quais filmes contemporâneos vocês consideram ser essenciais de serem vistos/falados mas que talvez ainda não saltaram aos olhos do público? 

Glenda – Tenho que dar essa lista agora? Olha vou ser bem sincera com você eu sou péssima de nomes. Tem que ser agora? Olha depois a gente conversa no zap não sei (risos)

Ary– Eu posso mencionar agora algumas produções contemporâneas que em alguns pontos dialogam com a gente que são: as produções da Filme de Plástico, que tem feito uma cinematografia bem potente, também o Adirley em Brasília, que tem me chamado muita atenção. Tem também muitas produções acontecendo agora em Cachoeira e é muito legal se retroalimentar com essas visões de Cachoeira que não são mais as nossas e que vêm através de curtas, séries e documentários feitos pelos alunos da UFRB. 

A lista de cidades, datas e de cinemas participantes será continuamente atualizada nesse site. E o valor do ingresso para os filmes é o já cobrado por cada exibidor, nas cidades participantes. Viabilizada pela Lei Paulo Gustavo, a mostra “Cinema É Cachoeira – Os filmes de Ary Rosa e Glenda Nicácio” é coprodução Rosza Filmes e Elo Studios, com apoio do Governo do Estado da Bahia e do Governo Federal.

Publicado por FICINE

O FICINE tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

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