Quatro personagens da Améfrica Ladina no cinema

Vinícius Dórea

Ao estudar as formas que a colonialidade construiu as representações de mulheres, negros e indígenas no imaginário social da América Latina, a pensadora venezuela branca Beatriz González Stephan cita os dispositivos de poder que firmaram o homem branco, pai de família, casado, heterossexual, proprietário e letrado como o modelo de cidadão a ser seguido. Essa categorização “inventa o outro” no sentido que cria também um lugar subalterno que inclui todos os que não se encaixam nesse perfil. Lélia González, grande intelectual negra brasileira, nos seus estudos sobre a mulher negra latino-americana, acrescenta que essa hierarquização patriarcal-racista suprime a humanidade das mulheres porque nega não só o direito delas de serem sujeitas do próprio discurso, mas também de suas próprias histórias. No entanto, a disputa de imagens e de narrativas contra esses jogos de poder continua sendo latente, por isso neste Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha escolhemos dar destaque a quatro personagens marcantes do cinema Améfricano Ladino e caribenho. Após cada personagem, escolhemos um parágrafo de uma obra de Lélia Gonzalez para também celebrarmos a importância do seu trabalho e existência neste dia: 

Yolanda, por Yolanda Cuéllar – De cierta manera, de Sara Gomez (Cuba): 

Existem algumas mulheres em Yolanda, a personagem fictícia do primeiro e único longa-metragem da diretora cubana Sara Gomez. Vivem em sua pele várias mulheres que participaram da revolução cubana, como também está presente uma ideia de alguém que tenta questionar os padrões machistas de dentro dessa revolução, assim como, e talvez mais importante, está ali também na personagem a representação da própria diretora do filme, uma mulher revolucionária e uma das pioneiras diretoras negras na Améfrica Ladina que, tantas e tantas vezes, se viu tendo que responder, dentro e fora dos seus filmes, a um sistema patriarcal estrutural contra o qual se precisava combater dentro de um outro combate. Yolanda, a professora que tenta dialogar com seu par romântico, Mario, sobre esse sistema, é entrecortada por imagens documentais de mulheres reais em suas lutas cotidianas numa Cuba ainda muito conservadora.

“A chamada América Latina, que, na verdade, é muito mais ameríndia e amefricana do que outra coisa, apresenta-se como o melhor exemplo de racismo por denegação. Sobretudo nos países de colonização luso-espanhola, onde as pouquíssimas exceções (como a Nicarágua e o seu Estatuto de Autonomia de las Regiones de la Costa Atlántica ) confirmam a regra. Por isso mesmo, creio ser importante voltar o nosso olhar para a formação histórica dos países ibéricos. Trata-se de uma reflexão que nos permite compreender como esse tipo específico de racismo pode se desenvolver para se constituir numa forma mais eficaz de alienação dos discriminados do que a anterior.” Lélia González

Jerusa, por Léa Garcia – Um Dia com Jerusa, de Viviane Ferreira (Brasil):

Jerusa, uma senhora de 77 anos, está para receber os filhos e netos em sua casa quando conhece Silvia, pesquisadora de marketing interessada em fazer uma pesquisa sobre sabão em pó. Logo quando conhecemos Jerusa somos cativados pela performance forte que Léa Garcia entrega ao realizar atividades simples do dia-a-dia e também somos convidados a entrar em sua casa. Quando precisa responder o questionário socioeconômico que Silvia lhe faz, Jerusa prefere contar as histórias da sua vida, das pessoas que a atravessaram, do nome que carrega e dos afetos que fez na vida. A narrativa é construída na troca feita por essas personagens que não cumprem a frieza e impessoalidade dos papéis de “consumidora” e “trabalhadora”. São mulheres, são negras e sentem que possuem histórias compartilhadas

“Quando se leem as declarações de um d. Avelar Brandão, arcebispo da Bahia, dizendo que a africanização da cultura brasileira é um modo de regressão, dá pra desconfiar. Porque, afinal de contas, o que tá feito tá feito. E o bispo dançou aí. Acordou tarde porque o Brasil já está e é africanizado. M. D. Magno tem um texto que impressionou a gente exatamente porque ele discute isso. Duvida da latinidade brasileira afirmando que esse barato chamado Brasil nada mais é do que uma América Africana, ou seja, uma Améfrica Ladina. Pra quem saca de crioulo, o texto aponta pra uma mina de ouro que a boçalidade europeizante faz tudo pra esconder, pra tirar de cena. E justamente por isso tamos aí, usando de jogo de cintura, pra tentar se entender. Embora falando, a gente, como todo mundo, tá numa de escritura. Por isso a gente vai tentar apontar praquele que tascou sua assinatura, sua marca, seu selo (aparentemente sem sê-lo), seu jamegão, seu sobrenome como pai dessa “adolescente” neurótica que a gente conhece como cultura brasileira.” Lélia González 

A mulher-memória, por Anyès Noel – Arando as estrelas, de Wally Fall e Anyès Noël (Guadalupe): 

Enquanto vai ao encontro do seu pai, uma mulher se depara com um país vazio e aos poucos as memórias de uma vida passada retornam. O que é real? O que é fantasia? O que dói na memória, dói na carne? Em função da colonização ter nos empurrado silêncios através dos seus assaltos e violações, um estranho olhar ao mundo é evocado através dessa mulher. Ela duvida do que vê e se recusa a não mais expressar sua estranheza. O que ela enxerga agora é toda a violência de uma nação nos olhos do seu pai e pede que ele não mais se cale. A mulher-memória habita Guadalupe, um conjunto de ilhas no sul do mar do Caribe com formato parecido com uma borboleta, porém ela também poderia ser brasileira visto que esse conto colonial também nos atravessa (e algumas imagens do filme fazem referência direta ao nosso território). Ao cruzar a história da sua vida com a história da ilha, o olhar dessa mulher nos mostra imagens que desafiam a realidade e, portanto, criam futuros. 

“Os termos ‘afro-american’ (afro-americano) e ‘african-american’ (africanoamericano) nos remetem a uma primeira reflexão: a de que só existiriam negros nos Estados Unidos, e não em todo o continente. E a uma outra, que aponta para a reprodução inconsciente da posição imperialista dos Estados Unidos, que afirmam ser ‘A AMÉRICA’. Afinal, o que dizer dos outros países da AMÉRICA do Sul, Central, Insular e do Norte? Por que considerar o Caribe como algo separado, se foi ali, justamente, que se iniciou a história dessa AMÉRICA? É interessante observar alguém que sai do Brasil, por exemplo, dizer que está indo para ‘a América’. É que todos nós, de qualquer região do continente, efetuamos a mesma reprodução, perpetuamos o imperialismo dos Estados Unidos, chamando seus habitantes de ‘americanos’. E nós, o que somos, asiáticos?” Lélia González

A “Voz”, por Grace Passô – Vaga Carne, de Grace Passô e Ricardo Alves Jr. (Brasil):

Uma voz passeia no escuro. Uma energia sem matéria descreve a sua existência descorporificada e afirma poder habitar qualquer coisa que existe. Escolhe, no entanto, o corpo preto de uma mulher e descreve as sensações ao invadir-morar essa carne. Com uma estranheza em existir, “a Voz” investiga a linguagem, os buracos do corpo, os vazios; e se vê ora algoz, ora refém desse corpo preto. Quem corporifica essa voz é a grandiosa atriz Grace Passô, que em certo momento pede que a plateia alimente a voz com palavras para que ela possa devolvê-las. Amor. Política. Corpo. Esses vocábulos se entrelaçam e a voz descobre que invadiu uma carne alvo. O corpo da mulher negra é assim denunciado e vindicado. 

“Trata-se de um olhar novo e criativo no enfoque da formação histórico-cultural do Brasil que, por razões de ordem geográfica e, sobretudo, da ordem do inconsciente, não vem a ser o que geralmente se afirma: um país cujas formações do inconsciente são exclusivamente europeias, brancas. Ao contrário, ele é uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o T pelo D para, aí sim, ter o seu nome assumido com todas as letras: Améfrica Ladina (não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no racismo o seu sintoma por excelência). Nesse contexto, todos os brasileiros (e não apenas os “pretos” e os “pardos” do IBGE) são ladino-amefricanos. Para um bom entendimento das artimanhas do racismo acima caracterizado, vale a pena recordar a categoria freudiana de denegação (Verneinung): “Processo pelo qual o indivíduo, embora formulando um de seus desejos, pensamentos ou sentimentos, até aí recalcado, continua a defender-se dele, negando que lhe pertença”. Enquanto denegação de nossa ladino-amefricanidade, o racismo “à brasileira” se volta justamente contra aqueles que são o testemunho vivo da mesma (os negros), ao mesmo tempo que diz não o fazer (“democracia racial” brasileira).” Lélia González 

Publicado por FICINE

O FICINE tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

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