Vinícius Dórea
Em determinado momento do episódio Falas da Vida, da série Histórias (im)possíveis, exibida na Globo em 2023 e criada por Renata Martins, Jaqueline Souza e Grace Passô, a personagem de Andréa Beltrão, uma motorista de aplicativo, pergunta à sua misteriosa passageira qual o nome da rua do destino final da corrida. Com um sorriso de canto de boca, essa passageira responde: “Futuro. Bota só Futuro.” A atriz que interpreta a passageira é ninguém menos que Zezé Motta. No episódio da série dedicado a falar de corpos femininos e processos de amadurecimento, Zezé surge como a anunciação de outros mundos possíveis. O corpo que representa ele mesmo o Futuro, ou melhor, a Futuridade, um estado de ser no mundo. Em um curta-metragem recente do diretor Clari Ribeiro, chamado Se eu tô aqui é por mistério, Zezé surge novamente no fim da história como a bruxa Suprema (imagem acima), que encarna essa ideia de Futuro e de horizontes alternativos àquilo que se convenciona chamar de real. É assim que uma das maiores atrizes do nosso audiovisual chega aos 80 anos: como a Futuridade em si.
Com mais de 50 anos de carreira, Zezé Motta viu e viveu vários Brasis. Mais do que isso, Zezé Motta foi e segue sendo vários Brasis. Em quase todos eles enfrentou um inimigo rasteiro e covarde: o racismo. No entanto, a cantora e atriz (cantriz, como gosta de ser chamada), não gosta e não deve ser associada e reduzida somente às mazelas que enfrentou. “Eu gostaria que já estivéssemos vivendo um momento em que eu não preciso mais falar sobre racismo, quero falar das minhas conquistas e alegrias”, disse Zezé em uma das várias entrevistas em que precisou responder a isso.
O movimento de olhar para o passado é sempre mais intenso para os povos negros e originários, visto que desse olhar pode vir uma sensação de pertencimento ou de inadequação, o contato com a ancestralidade ou dessa formação de subjetividade pautada na falta, no não-saber. Falar do passado, portanto, precisa ser feito sem reprimir as dores, para que melhoremos o presente e possamos construir um futuro. Porém, na maioria das vezes em que Zezé foi entrevistada nos últimos anos as perguntas circularam em torno dos “nãos” que recebeu, do sofrimento na época da ditadura, do ódio que enfrentou quando interpretou um par romântico com um homem branco, das manchetes de jornais criticando sua aparência, etc. Mulher, negra e pobre. Deu pra sonhar Zezé?
Em Tudo que é apertado rasga, Fábio Rodrigues Filho faz um recorte poético sobre o tratamento que alguns atores negros receberam na história do cinema e da teledramaturgia brasileira, entre eles Zezé Motta. Pioneira em dizer não, Zezé recusou papeis de trabalhadora doméstica que demonstravam subserviência e não acrescentavam em nada à trama.
Quando questionada sobre a erotização da sua personagem Xica da Silva e se sentiu desconforto ao interpretá-la, Zezé categoricamente diz que não e não insiste no assunto, ela não ousa em reclamar do trabalho que a lançou para o mundo. Sobre os comentários racistas sobre a sua aparência, ela faz chacota: “Não entendo como poderiam me chamar de negra feia se eu estava tão linda nas fotos”.
Sim, porque há sempre algo que rompe, algo que, como implica o título do filme de Fábio, “rasga” a imagem: no filme em questão, Zezé termina cantando “Senhora Liberdade”, samba de Wilson Moreira em parceria com Nei Lopes que foi escrito como hino da Anistia, nas Diretas Já. A canção, no entanto, ganha outro tom diante da montagem do filme. O grito de liberdade, assim, se torna maior que a própria Zezé e a passagem do tempo diante do pedido é massacrante pois nos lembra que precisamos e continuaremos precisando de vozes como a de Zezé Motta por muito tempo para vencermos as mazelas estruturais causadas pelo racismo.
Em uma das entrevistas que assisti para escrever esse texto, o entrevistador questiona Zezé se ela acha que seria milionária se tivesse nascido nos Estados Unidos. Ela diz que sim e com muita certeza. Apesar da pergunta do entrevistador partir de um ponto de vista que valoriza a concentração monetária como indicativo de sucesso, a resposta de Zezé nos conta das dificuldades impostas por uma indústria majoritariamente branca e masculina. Quando atingiu o sucesso, Zezé disse que olhou para os lados e só havia no máximo 10 atores negros em atuação em todo o Brasil. Isso a levou a criar o Centro Brasileiro de Integração e Desenvolvimento do Artista Negro (Cidan), um catálogo, com fotos de todos os atores negros do Rio, São Paulo e Salvador. “Eu queria que os outros atores negros não encontrassem todos os obstáculos que eu encontrei e que foram tão difíceis de superar”, disse ela.
Se abandonarmos a ideia colonial do tempo visto como uma reta que sempre aponta para a frente, linear e irreversível e pensarmos no tempo como uma encruzilhada com suas implicações e intersecções, Zezé Motta hoje vive no futuro construído por ela mesma, por Zózimo Bulbul, Grande Otelo, Ruth de Souza, Léa Garcia, Luiza Maranhão e tantos outros. A presença do passado é abraçada para construir um amanhã em que Zezé está e estará presente. Quando fala das suas conquistas, a musa inspiradora da canção “Tigresa” de Caetano Veloso gosta de falar da sua vaidade, do seu apartamento no Leme (que também já foi da Clarice Lispector), dos seus cinco casamentos e do seu passado como Testemunha de Jeová. Hoje, nos seus 80 anos, Zezé é ela mesma a própria fabulação de futuros. Não pensa em largar os palcos e faz planos em dirigir espetáculos. Ainda bem! Muito obrigado a Zezé Motta e seus gritos de liberdade.
Filmografia de Zezé Motta:
Transplante de Mãe (1970)
Em Cada Coração um Punhal (1970)
Cleo e Daniel (1970)
Vai Trabalhar Vagabundo (1973)
Missa do Galo (1973)
A Banana Mecânica (1974)
A Rainha Diaba (1974)
Um Varão Entre As Mulheres (1974)
Xica da Silva (1976)
A Força de Xangô (1977)
Cordão De Ouro (1977)
Tenda dos Prazeres – Ouro Sangrento (1977)
O Bom Marido (1978)
Tudo Bem (1977)
Se Segura Malandro (1978)
Águia na Cabeça (1984)
Para Viver um Grande Amor (1984)
Quilombo (1984)
Jubiabá (1986)
Anjos da Noite (1987)
Natal da Portela (1988)
Prisoner of Rio (1988)
Mestizo (1988)
Dias Melhores Virão (1989)
O Gato de Botas Extraterrestre (1990)
Acorda Raimundo…Acorda! (1990)
A Serpente (1992)
Memorial de Maria Moura (1994)
Tieta do Agreste (1996)
O Testamento do Senhor Napumoceno (1997)
Orfeu (1999)
Polémica (1999)
Cronicamente Inviável (2000)
A Negação do Brasil (2000)
Poeta de Sete Faces (2002)
Xuxa e os Duendes 2 – No caminho das Fadas (2002)
Carolina (2003)
Saudade (2003)
Viva Sapato! (2003)
Xuxa e o Tesouro da Cidade Perdida (2004)
Quanto Vale ou É por Quilo? (2005)
O Amigo Invisível (2006)
Kinshasa Palace (2006)
A Ilha dos Escravos (2006)
Cobrador: In God We Trust (2006)
Deserto Feliz (2007)
Xuxa em O Mistério da Feiurinha (2009)
Bróder (2010)
Bom Dia, Eternidade (2010)
Gonzaga, de Pai pra Filho (2012)
O Canto da Sereia (2013)
O Lucro Acima da Vida (2014)
Irmã Dulce (2014)
Justiça (2016)
Pitanga (2016)
Cora Coralina – Todas As Vidas (2017)
O Nó do Diabo (2017)
Comédia Divina (2017)
Tudo que É Apertado Rasga (2018)
Eu Sou Brasileiro (2019)
Juntos a Magia Acontece (2019)
M8- Quando a Morte Socorre a Vida (2020)
Todas as Melodias (2020)
Novo Mundo (2020)
4×100 – Correndo por um sonho (2021)
Doutor Gama (2021)
Mise en Scène: a Artesania do Artista (2021)
Galeria Futuro (2021)
Intervenção: É Proibido Morrer (2021)
Alemão 2 (2022)
Fim de Semana No Paraíso Selvagem (2022)
Na Rédea Curta (2022)
Gota D’Água (2023)
Eulália (2023)
A Última Festa (2023)
Deixa (2023)
Gerson King Combo – O filme (2023)
Falas da Vida: Histórias Impossíveis (2023)
Othelo, O Grande (2023)
União Instável (2023)
Fim de Semana no Paraíso Selvagem (2023)
Se Eu tô Aqui é Por Mistério (2024)
Príncipe Lu e a Lenda do Dragão (2024)
