Regulação do VoD: um debate central para o audiovisual negro brasileiro

Vinícius Dórea

Não é de hoje que o audiovisual brasileiro precisa lutar pela dignidade de sua existência dentro da cadeia produtiva econômica, e novamente estamos agora diante de mais uma batalha que tem potencial de definir não apenas que histórias serão contadas nos próximos anos, mas sobretudo quem terá direito de contar essas histórias e, atado a isso, de que forma e em que endereços o dinheiro vai circular. Sim, a regulação dos chamados VoD, leia-se, Video on Demand, ou Vídeo sob Demanda, é um assunto que diz respeito aos cinemas negros produzidos no país, porque ela está diretamente relacionada com mecanismos de desigualdades raciais que marcam a história de nosso cinema e TV.

O audiovisual brasileiro sofre de uma assimetria regulatória e tributária causada pela falta de regulação para os serviços de VoD e streaming. O início desse debate sobre a regulamentação se deu no governo Dilma (2011-2016), porém andou pouco no governo Temer e desapareceu por completo no governo Bolsonaro. Atualmente, circulam no congresso nacional duas propostas de regulação, o PL 2.331/2022, mais recente, que foi aprovado pelo senado e agora segue na câmara dos deputados e o PL 8889/2017, mais antigo, que agora circula em caráter de urgência na Câmara, esse sendo de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT/SP) que regulamenta e cria uma cota para produções nacionais para as empresas de streaming que atuam no país. 

A regulação do VoD é, dessa forma, uma pauta urgente justamente porque precisa ser pensada como uma forma de corrigir desigualdades raciais que ainda são latentes no setor audiovisual do país. Segundo um estudo feito pela Ancine e pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar em Ações Afirmativas da UERJ (GEMAA), entre os anos 1970 e 2022 temos os seguintes dados sobre a produção independente brasileira realizada com recursos públicos via FSA: 

– Da direção de filmes com mais de 500.000 espectadores em salas de cinema entre 1970 e 2016, temos: 90% de homens brancos, 10% mulheres brancas e 0% pessoas negras. 

– Dos projetos selecionados por chamada pública do FSA entre 2018 e 2022 tivemos: 85,7% de pessoas brancas na direção e 86,3% de pessoas brancas no roteiro. Já as pessoas negras representam 3,8% na direção e 2,2% no roteiro. 

– Em 2016, das obras que foram incentivadas por recursos públicos geridos pela Ancine, 100% foram de pessoas brancas.

Não se faz política pública sem dados e esses levantamentos, um deles feito inclusive pelo próprio governo, escancaram a discrepância racial no setor audiovisual brasileiro e nos mostram como necessitamos de uma regulação que dê conta de reparar o racismo estrutural e institucional que ainda atua nesse mercado

A Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN) lançou em maio a Carta do Audiovisual Negro Por Uma Regulação Antirracista do VoD em apoio ao PL 8889/2017, compreendendo que esse ainda não é o modelo ideal de regulação, mas é o possível dentro das negociações que foram feitas até o presente momento. Em entrevista, a presidenta da APAN Tatiana Carvalho sinaliza a importância da manutenção de pontos chaves desse projeto de lei, que são: a defesa da produção independente brasileira tal como ela está descrita na Lei do Audiovisual (ver glossário abaixo), bem como o conceito de produtoras vocacionadas, a previsão de destinação de 10% do recurso da Condecine para essas empresas e a possibilidade de destinação de recursos para plataformas VoD independentes. 

Sobre esse último tópico Tatiana pontua que “a inclusão das plataformas VoD independentes na regulação é um passo importante visto que essas são responsáveis em grande parte pela circulação da produção audiovisual negra e podem ajudar que curtas metragens sejam contabilizados em uma dinâmica econômica, diferente da relação que as salas de cinema tem com os curtas que é de ignorá-los.”

Há no momento uma movimentação da ala conservadora do congresso para barrar o PL 8889/2017 se apoiando em uma rede de fake news que tenta gerar alarde na sociedade civil. Sobre isso, Tatiana Carvalho comenta que “a extrema direita tem comprado um discurso que na verdade é entreguista, visto que o cinema dos EUA só é do tamanho que é porque tem proteção do Estado”. Precisamos, portanto, de uma regulação que proteja a produção independente nacional, combata o racismo, estimule a diversidade e lute contra as práticas de concentração econômica.  

Glossário

Condecine – um tributo no Brasil sobre produção, distribuição, exibição e importação de filmes, é regulamentado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) e tem como objetivo fomentar o desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira.

FSA – O Fundo Setorial do Audiovisual é um mecanismo de financiamento público destinado a impulsionar o setor audiovisual no Brasil. Gerido pela Ancine, ele apoia a produção, distribuição e exibição de conteúdos cinematográficos, televisivos e de jogos eletrônicos brasileiros.

Produtoras vocacionadas – Empresas brasileiras que têm pelo menos 51% do capital total e votante sob a titularidade direta ou indireta de pessoas pertencentes a grupos incentivados.

Grupos incentivados – mulheres, pessoas negras, indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, pessoas com deficiência, e grupos em situação de vulnerabilidade social.

Produtora independente brasileira – produtora brasileira que não esteja ligada a programadoras, empacotadoras, distribuidoras ou concessionárias de serviço de radiodifusão de sons e imagens.

Link da Carta do Audiovisual Negro Por uma Regulação Antirracista do Vod

Entrevista de Tatiana Carvalho para a Tv Senado:

Publicado por FICINE

O FICINE tem por objetivo a construção de uma rede internacional de discussões, projetos e trocas que tenham como ponto de partida e ênfase a reflexão sobre os Cinemas Negros na diáspora e no continente africano.

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